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Os únicos que não estão cegos: Entrevista com morador em situação de rua

“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. Essa frase do escritor português José Saramago, encontrada no livro “Ensaio sobre a cegueira”, fala sobre a dificuldade existente em se enxergar o outro, em querer enxergar o outro.

Há milhares de indivíduos invisíveis ao olhar alheio e, só na cidade do Rio de Janeiro, encontram-se aproximadamente 15 mil pessoas vivendo em situação de rua, sendo o último número coletado por um levantamento feito pela Defensoria Pública do estado.

Morador em situação de rua
Morador em situação de rua

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Universitária entrevista morador em situação de rua

Luiz Fernando Lopez da Silva não sabe exatamente a idade que tem, a
informação preciosa que carrega é o ano de seu nascimento: 1972. Desde novo mora na rua, desentendeu-se com sua família e mudou de rumo e endereço. Sua aparência o aproxima a do cantor Bob Marley e do personagem Jack Sparrow.

Falam que pareço com eles, mas não acho não, deve ser por causa das trancinhas”

Migrou da Zona Oeste, região em que nasceu, para a Zona Sul. Atualmente
pode ser encontrado frente ao ponto de ônibus do Pinel, em Botafogo. 

Acidentou-se diversas vezes, sendo a mais severa tragédia um atropelamento que o deixou com uma das pernas machucada, que o fez andar de muletas, objeto que foi um presente de uma conhecida de rua. Luiz não gosta do termo “presente” pois, de acordo com ele, não quer sentir que deve algo a alguém.

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A ferida causada pelo atropelamento não foi cicatrizada de forma correta e dói constantemente. Luiz faz o próprio curativo, às vezes conseguindo caminhar até um posto de saúde em busca de ajuda.

Os acidentes seguintes só pioraram sua situação pois ele é catador de latinhas e de outros tesouros, precisa caminhar muito para encontrar esses objetos. Ferido, não consegue coletar a quantidade necessária para se sustentar: 1 kg de recicláveis rende três reais. Ele evita pedir ajuda para as pessoas.

Não tenho o dom de pedir dinheiro, comida, nada do tipo, não quero que sintam pena de mim. Pego as coisas que as pessoas jogam fora”

Afirmou com ímpeto.

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Para ele, as pessoas procuram ajudar para ficar com a consciência tranquila.

Meu pai sempre falou que a gente precisa trabalhar para ter as coisas, aqui na rua as pessoas oferecem algo e falam ‘estou dando isso pra você’, não é dar, eu não pedi nada”.

Luiz foi preso algumas vezes. Não sabe quanto tempo passou na cadeia, nem a idade que tinha, mas uma coisa ele tem certeza: a rua é muito melhor que a prisão.

Aqui (na rua), você ainda tem pra onde correr, na cadeia não. Naquele lugar acontece de tudo, vi gente ser morta dentro das celas e, no dia seguinte, era como se nada tivesse acontecido.”

Contou ele

Mesmo preso, Luiz ainda era invisível:

Na prisão eu também não era ninguém, por isso não faziam nada comigo, ficava o dia todo quieto no meu canto”.

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Além de tudo isso, ele vive sozinho na rua. Das vezes que tentou andar com
um grupo ou se aproximar de outras pessoas na mesma situação que ele, foi roubado. Roubaram as latinhas que passou o dia todo coletando, além de pertences de uso pessoal, comida e até mesmo seu labrador preto que fora encontrado, assim como ele, abandonado na rua.

Aqui na rua é olho por olho, dente por dente, o melhor que podemos fazer é não ser inimigo de ninguém”

Aconselhou ele

Luiz não sabe quanto tempo está em situação de rua. Sabe que o flamengo é
campeão, pois ouve as comemorações. É tricolor de coração. Às vezes revira o lixo em busca de comida. Fica debaixo das marquises até ser expulso.

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A pior parte de morar na rua é quando chove”

Afirmou o morador em situação de rua.

Luiz conta que anda pelas ruas encontrando pessoas, sem ser ele mesmo encontrado por nenhuma delas. Reconhece que elas são cegas que vêem, cegas que mesmo vendo não vêem, pois dá menos trabalho fingir que não vê e deixar para reparar depois.

Por Bruna Martins – Fala! UFRJ

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