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Rio de Janeiro: Cidade Maravilhosa para uns, hostil para outros

Com o intuito de expulsar os sem-teto, o Rio de Janeiro adota a instalação de objetos da arquitetura hostil

Banco de praça com divisória em frente ao Theatro Municipal, no Centro do Rio de Janeiro.
Banco de praça com divisória em frente ao Theatro Municipal, no Centro do Rio de Janeiro. | Foto: Carlos Vinícius Magalhães.

Uma superfície inclinada, repleta de buracos e fina, bastante fina. Nas laterais, os braços são afiados de modo que um desavisado pode facilmente se cortar se fizer um movimento brusco. Atrás, nada: não há nem sequer um encosto. Bancos como esse estão espalhados pelos pontos de ônibus no Rio de Janeiro, da Zona Sul à Zona Norte, em toda a cidade. O motivo de tal escolha arquitetônica nada agradável é evitar comportamentos indesejados de grupos sociais marginalizados. Por meio do desconforto, acontece a expulsão dos sem-teto, a população mais afetada por essa estratégia empregada como política pública.

A arquitetura hostil está presente nas grandes metrópoles desde os anos 90, bem antes da popularização do termo pelo jornalista estadunidense Ben Quinn, do The Guardian, em 2014. Mesmo assim, ela segue invisível, como se fosse um resultado espontâneo da vida em uma cidade grande como o Rio de Janeiro. E os exemplos são vários, indo desde o simples banco de praça com uma divisória no Centro ao engenhoso “chuveirinho” que havia na marquise do cinema de rua Roxy, em Copacabana, que fechou recentemente.

Banco de madeira com divisórias de ferro no Leblon, Zona Sul.
Banco de madeira com divisórias de ferro no Leblon, Zona Sul. | Foto: Carlos Vinícius Magalhães.

Rio de Janeiro adota arquitetura hostil e ação afeta mais de 7 mil pessoas

A brutalidade vem de cima e de baixo

Marcos é uma das 7.272 pessoas que vivem nas ruas da cidade segundo o censo divulgado pela Prefeitura em dezembro de 2020. Quando a pandemia começou, ele teve que deixar a kitnet que alugava no Vidigal. Antes, porém, Marcos já havia passado noites na rua, quando morava em outro município e vinha à capital para trabalhar. Nessa época, ele foi uma das pessoas expulsas pelo banho do “chuveirinho” do cinema. “A única coisa que uma pessoa que teve que ir para rua como a última saída que é um acolhimento. Algo que faça com que ela tenha motivo para viver. E, a partir do momento que você se depara com esse tipo de coisa… Acho que isso é de uma brutalidade.”

Mas, na maioria das vezes, a ameaça vem de baixo. Para expulsar os sem-teto que vivem debaixo de passarelas, viadutos etc., um recurso muito utilizado pelo Poder Público é a instalação de objetos pontiagudos e pedras, como aquelas destruídas pelo padre Júlio Lancellotti à marretadas, em São Paulo, em fevereiro deste ano. São como as camas de pregos popularizadas pelos faquires indianos. No caso do espaço embaixo de uma passarela ao lado do Hospital Municipal Salgado Filho, no Méier, é uma cama de “dados” coloridos.

“Dados” instalados embaixo de passarela no Méier, Zona Norte do Rio de Janeiro.
“Dados” instalados embaixo de passarela no Méier, Zona Norte do Rio de Janeiro. | Foto: Maria Eduarda Pitão.

Segurança e expulsão: duas faces de uma mesma moeda

O sociólogo e economista Carlos Vainer destaca que, na verdade, essa hostilidade da cidade pode ser lida como uma promoção da segurança para aqueles que se incomodam com a presença dos sem-teto e/ou se beneficiam com a sua retirada – o setor imobiliário, por exemplo. Para o professor da UFRJ e ex-presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional,“o pretexto da expulsão que se faz em nome da segurança, para se defender da violência, é um ato de violência sobre o outro”. Aquilo que aparece para alguns como segurança, para outros é agressão. Aquilo que aparece para alguns como limpeza, para outros é expulsão.” Inclusive, “arquitetura defensiva” também é um termo utilizado para descrever esse fenômeno.

Ainda segundo Vainer, é preciso entender a arquitetura da violência como fruto de uma “arquitetura do controle social” muito anterior. O seu objetivo seria a observação e a restrição de comportamentos considerados impróprios não apenas dos sem-teto, mas de todos nas cidades modernas.

Por conta do “clima” de falta de segurança no Rio de Janeiro (fruto dos crimes que, de fato, ocorrem na cidade acrescidos de toda a repercussão) e a associação preconceituosa dessa parcela da população com a criminalidade, os sem-teto se tornam vítimas de um processo de exclusão. De acordo com a coordenadora do Grupo de Pesquisa “Arquitetura da Violência” Sonia Maria Ferraz, que também é professora de arquitetura na UFF, existe um círculo vicioso. “Quanto mais excluem, mas têm medo das pessoas que são excluídas. É um aparente contrassenso, mas é assim que funciona.”

Os tempos de Bruno & Marrone ficaram para trás

Talvez este seja o exemplo mais facilmente identificado pelos cariocas, sejam aqueles que vivem nas ruas ou não. No Rio, os bancos dos pontos de ônibus descritos na abertura desta reportagem são um convite a permanecer em pé para quem está esperando o ônibus ao fim do expediente e para quem precisa passar a noite. “O banco do ponto de ônibus já está meio fininho, inclinado (imitando o formato do banco com a mão). Não dá para ninguém deitar ali. Nem embaixo, nem em cima”, conta Renato, de 32 anos.

Assim como o Marcos e 20,4% dos sem-teto do município segundo o censo, Renato foi para as ruas por conta da pandemia, devido ao falecimento do seu patrão, mais uma vítima da Covid-19. Os dois pertencem aos dois grupos que compõem a maior parte dessa população: homens (80,7%), e pretos e pardos (76,2%).

Há também os pontos de ônibus nos quais a regra é “um banco, uma bunda”. Eles são facilmente encontrados ao longo das avenidas no Recreio e na Barra da Tijuca, na Zona Oeste. É um modelo que impossibilita qualquer tentativa de um sem-teto se abrigar longe do chão frio em um dia chuvoso.

Ponto de ônibus com divisórias entre os bancos na Barra da Tijuca, na Zona Oeste.
Ponto de ônibus com divisórias entre os bancos na Barra da Tijuca, na Zona Oeste. | Foto: Carlos Vinícius Magalhães.

Em tom de provocação à instalação desses objetos da arquitetura hostil, que a professora Sonia Maria prefere se referir como da violência, ela diz: “Não pode se deitar no banco do ponto de ônibus. As pessoas têm que criar asas e voar”. Ela também lembra dos bancos de praças, que já foram tema de um dos clássicos da música sertaneja. “Qual é o problema de o cara se deitar? Historicamente, o banco de praça era o banco em que o mendigo dormia; agora não dorme mais. ’Não pode. Fique em pé’.” Ao menos, a dupla Bruno & Marrone não precisa mais dormir na praça, mas há quem ainda precise.

Banco de ponto de ônibus na Tijuca, Zona Norte, Rio de Janeiro.
Banco de ponto de ônibus na Tijuca, Zona Norte, Rio de Janeiro. | Foto: Carlos Vinícius Magalhães.

A cidade do turista e a cidade do mendigo

Quatro meses antes da primeira morte por Covid no Brasil, o Réveillon do Rio bateu seu recorde de turistas em 2020: 1,7 milhão. Em uma cidade como essa, turística como nenhuma outra no país, há lugar para aqueles que, assim como os turistas, apenas vagueiam pelas ruas?

No artigo “A arquitetura antimendigo como eureca da regeneração urbana”, do Grupo de Pesquisa “Arquitetura da Violência”, a professora Sonia e os demais autores trazem uma reflexão do sociólogo Zygmunt Bauman nesse sentido. O polonês aponta o “vagabundo” como “o demônio interior” do turista em seu livro “Globalização: as consequências humanas”; a diferença é que ao primeiro lhe é proibido o direito de ir e vir e permanecer em um local.

Ainda de acordo com Bauman, numa sociedade de turistas (neste caso, numa cidade), a eliminação dos “vagabundos”, que evocam o medo, é um fim almejado. Um exemplo disso é a comparação entre a Av. Rio Branco, no Centro, a região comercial do Rio, e a Av. Ataulfo de Paiva, no Leblon, um dos bairros mais luxuosos do município, destino de muitos turistas. Ao caminhar nessas duas vias, é possível reparar que, enquanto a arquitetura hostil é encontrada em pontos isolados na primeira, gradeamentos baixos, bancos com divisórias e vasos de plantas montados nas fachadas fazem parte de qualquer quarteirão no Leblon.

Os vasos de plantas, inclusive, parecem ser a nova moda entre os bancos da Zona Sul. Na própria Ataulfo de Paiva, uma unidade inundou a sua fachada com vasos e plantas de todos os tipos. Tem até vaso de terra, vazio, ocupando o lugar onde havia famílias inteiras há alguns meses.

Conjunto de vasos de plantas em frente à fachada de banco no Leblon, na Zona Sul.
Conjunto de vasos de plantas em frente à fachada de banco no Leblon, na Zona Sul. | Foto: Carlos Vinícius Magalhães.

Projeto de lei contra a arquitetura hostil vetado

Quando o padre Júlio Lancellotti expôs a arquitetura antimendigo no começo de 2021, houve uma grande repercussão em torno do tema. Um dos efeitos da entrada da pauta em noticiários de grande repercussão foi a criação de projetos de lei tanto em âmbito nacional, como o que carrega o nome do pároco, quanto municipal.

No Rio de Janeiro, também houve uma proposta de lei. Inspirado pela atitude do padre, o vereador Chico Alencar (Psol) foi um dos autores do projeto de lei que proibiria a instalação de obstáculos que visam impedir a livre circulação e permanência de pessoas.

Apesar de ter sido aprovado pela Câmara Municipal em 18 de agosto, o projeto de lei nº 41/2021 foi vetado pelo Prefeito Eduardo Paes em 16 de setembro. A justificativa, presente no Diário Oficial, foi de que a proposta seria inconstitucional, porque “a definição de padrões urbanísticos e construtivos é competência do Chefe do Poder Executivo, de vez que se trata de matéria regulamentar de política urbana”.

“Em vez de gastar com pedras, investe em educação! Abre um espaço de verdade (para as pessoas em situação de rua)”, protesta Marcos. Ele vive no Jardim de Alah, parque que fica na divisa entre Ipanema e Leblon, na Zona Sul, onde um casal de sem-teto foi assassinado a tiros em março de 2020.

A reportagem entrou em contato com a assessoria da Secretaria Municipal de Planejamento Urbana, que respondeu que nenhum técnico poderia conceder entrevista, porque estavam todos envolvidos na elaboração do novo Plano Diretor enviado à Câmara de Vereadores. Esse projeto define as prioridades da cidade para os próximos dez anos.

Blocos de pedra instalados embaixo do Viaduto Engenheiro Noronha em Laranjeiras, na Zona Sul do Rio de Janeiro.
Blocos de pedra instalados embaixo do Viaduto Engenheiro Noronha em Laranjeiras, na Zona Sul do Rio de Janeiro. | Foto: O Globo.

Arquitetura hostil: monumento à existência

Apesar do veto do projeto de lei e a continuidade da colocação de objetos da arquitetura hostil na cidade, a professora Sonia traz outro olhar sobre o tema. Para ela, todas essas grades, gradeamentos baixos, bancos, pontos de ônibus, pedregulhos etc. trazem consigo um simbolismo. “Há uma presentificação da existência do sem-teto”. ‘Ele existe’. Acaba tendo esse outro sentido, que é chamar a atenção para a existência. Se não houvesse esses objetos, alguém estaria ali.”

E, se alguém estivesse ali, não seria por vontade própria, é preciso destacar. De acordo com o censo, os principais motivos que levaram os sem-teto para as ruas do município foram conflitos familiares (incluindo separação): 44,6%. Se antes o teto de casa foi tirado de cima das cabeças dessas pessoas, agora o que está sendo retirado são as marquises, bancos, passarelas, viadutos etc.

Bicicletário e gradeamentos baixos ocupam todo o espaço sob a marquise de um banco em Ipanema, na Zona Sul.
Bicicletário e gradeamentos baixos ocupam todo o espaço sob a marquise de um banco em Ipanema, na Zona Sul. | Foto: Carlos Vinícius Magalhães.

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Por Carlos Vinícius Magalhães – Fala! UFRJ

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