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‘365 Dni’: o “romance” que romantiza a violência contra a mulher

Contando com uma produção polonesa, o filme 365 Dni estreou na plataforma de streaming da Netflix em junho deste ano, alavancando uma onda de polêmicas e insatisfações da crítica

Inspirado no primeiro livro de uma trilogia escrita pela autora Blanka Lipińska, o filme procura retratar, através de um enredo cheio de lapsos, a história do sequestro de Laura (Anna-Maria Sieklucka) por um mafioso italiano interpretado pelo ator Michele Morrone.

Sendo descrito desta maneira breve, o longa parece ser apenas mais um filme de enredo fraco produzido para um público jovem, apelando por uma trama erótica e ficcional. No entanto, apesar das características anteriores fazerem jus à parte da história, o sequestro não é o bastante para se referir ao filme que  desperta tamanha problemática.

365 Dni
Entenda como 365 Dni romantiza a violência contra a mulher. | Foto: Reprodução.

365 Dni e sua problemática

Massimo, o mafioso italiano pertencente a uma família rica e poderosa, arquiteta o sequestro de Laura, uma jovem bem-sucedida que se encontra insatisfeita com as relações sociais ao seu redor desde o início da trama. Julgando-se apaixonado por Laura sem nem ao menos conhecê-la, Massimo, apresentado como uma figura extremamente dominadora e agressiva, vê como único jeito possível “conquistar” a jovem através do tal sequestro. Após ser dopada e raptada, Laura encontra-se presa na proposta estritamente irrecusável de Massimo. Ela teria então 365 dias disponíveis para se apaixonar por seu próprio sequestrador.

Entre os diversos desconfortos já provocados desde o início da trama frente à naturalização com que se tratam assuntos sérios como o abuso, tráfico sexual e objetificação da mulher, questões devem ser levantadas e postas em contraponto à produção. Em qual momento sequestrar uma mulher e idealizá-la ao ponto de ser feita de objeto durante a história inteira, é algo romântico? E para além, como filmes como 365 Dias contribuem para o aumento da violência contra a mulher?

Apostando fundo em uma performance do homem dominador e de uma mulher submissa, o filme romantiza por completo o que de fato representa a situação vivenciada pelo casal do filme. Desde o início, a relação de ambos é fundamentada no desejo profundo e doentio de posse que Massimo exerce – de maneiras agressivas – sobre Laura. De tal forma que a beleza envolta dos personagens – corpos atraentes, sensuais e erotizados – parecem bastar para justificar a violência presente no processo de “conquista” da personagem.

Cenas de agressividade entre os dois personagens principais são constantes, bem como as ameaças feitas abertamente por Massimo. O personagem teima em justificar sua agressividade pelos traumas passados de sua vida e insiste que Laura se tornaria o antídoto para seus defeitos. Logo, a personagem principal – apresentada de forma rasa pela narrativa, mas que de início parece se impor frente ao aprisionamento – passa a ser desmontada e vencida pelo estereótipo de uma mulher passiva e encantada com as compras que um homem milionário faz para lhe agradar.

“Me senti totalmente exposta, embora não fosse eu naquela situação”, diz Lorenna Gaetti. A estudante comenta sobre uma das cenas iniciais do filme, a qual dotada de eroticismo procura banalizar o assédio de uma comissária de bordo e estabelecer de início como as mulheres se portam na presença dominadora de Massimo – este que exerce uma função totalmente controladora sob a vida de Laura antes, durante e após o sequestro.  Lorenna acrescenta que, é explícita a maneira como a cena de assédio torna-se capaz de jogar para debaixo do tapete o debate em relação à objetificação do corpo das mulheres.

Comentários como o de Lorenna foram bastante recorrentes por parte do público, que frisou suas críticas baseadas nos perigos da erotização do sequestro e tráfico sexual. Lembrando que a exploração sexual é a razão mais frequente para o tráfico de pessoas, equivalente à 79% e, de acordo com a Childhood Pela Proteção da Infância, o Brasil contabiliza 500.000 casos de exploração sexual por ano.

Ademais, mulheres que já experienciaram relacionamentos abusivos e foram vítimas de violência, das mais diversas formas, afirmam a potencialidade de gatilhos que a trama oferece ao telespectador. Isto é, ferindo toda uma luta e debate constante em cima de um tema que já se mostra difícil de ser reconhecido e falado pela própria vítima do abuso.

Em função disso, a cantora Duffy, tendo vivenciado uma experiência similar a do filme, acabou por se pronunciar após observar a vanglorização estabelecida por parte do público. Na carta aberta destinada ao CEO da Netflix, a cantora relata a sorte de ter saído com vida após ter sido traficada e estuprada. Indignada, Duffy acrescenta o quão terrível é ter que testemunhar sua tragédia e a de tantas outras vidas sendo erotizadas e desvalorizadas.

“Ver pessoas amando o filme e esperando pela continuação faz com que a gente pense que, quem assistiu realmente não percebe o perigo do abuso e o que acontece após ele”, finaliza Lorenna. Pois de fato, não há como aceitar o abuso e violência como forma de entretenimento entendendo que seus resquícios permanecem.

O tal “romance” intensifica ainda uma falsa noção da superação dos abusos, retratado pelo matrimônio dos personagens no final da trama. Fantasiando uma aspiração de que violências sexuais, como as encontradas no filme e tantas outras similares, são facilmente apagadas das vidas de quem já vivenciou relações abusivas

Por fim, o filme 365 Dni, trajado de “romance” e “drama”, mas que, na realidade, se utiliza da eroticidade e sexo quase explícitos para esconder suas problemáticas, contribui para uma corrente que segue na contramão da luta de diversas mulheres frente a um problema estrutural em nossa sociedade. E ainda que seguido de críticas e de uma petição para a retirada do conteúdo da plataforma de streaming da Netflix, tudo indica para a possível filmagem da continuação da trama.

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Por Julia Roperto – Fala! PUC

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