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Saúde mental dos estudantes é negligenciada durante a pandemia 

Antes mesmo da pandemia, a saúde mental dos adolescentes já era uma preocupação de saúde pública, já que prejuízos, como redução de chance de completar a educação básica, falta de coesão social e redução da capacidade de enfrentar as adversidades futuras, sempre existiram. A questão é que o quadro pandêmico evidenciou esses e inúmeros outros problemas dos estudantes brasileiros, seja das escolas privadas e, principalmente, das públicas, visto que a situação do ensino público segue mais grave. E as sequelas da negligência com a saúde mental podem reverberar por muitos anos, como consta na pesquisa sobre o efeito da pandemia de coronavírus e do isolamento social em crianças e adolescentes, realizada pelo instituto Gallup e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância, em 2021. 

Um dos reflexos dos problemas relacionados a saúde mental são os casos de ansiedade coletiva que ocorreram em uma escola de Jarinu, interior de São Paulo, cujo nome não foi informado, na escola de referência em ensino médio, Ageu Magalhães, na zona norte do Recife, capital de Pernambuco, no ano de 2022. 

Saúde mental
Saúde mental dos estudantes é negligenciada. | Foto: Brasil de Fato (MG)/ Gabriel Jabur| Agência Brasil

Casos de ansiedade coletiva 

No primeiro caso, duas alunas se auto mutilaram e logo após, outros sete estudantes, com idades entre 11 e 12 anos, também se cortaram, segundo a Secretaria de Educação de São Paulo. “Eu achava que me machucar – de qualquer maneira – podia aliviar aquela dor que eu senti”, disse uma das vítimas, em entrevista ao Fantástico, na edição de 17 de abril de 2022. Uma outra vítima relatou que ela e os colegas também sentiam tristeza e tinham problemas na família.

No segundo caso, ocorrido no dia 8 de abril de 2022, no Recife, cerca de 26 estudantes foram socorridos por equipes do Samu, pois tiveram falta de ar, tremor e crise de choro. Uma estudante relatou, ao G1, que sentiu que ia morrer e passou muito mal durante o ocorrido. De acordo com o pai de outra estudante, a filha não quer relembrar o ocorrido. “Ela diz que dá agonia de lembrar, diz que do olho escorrem lágrimas”, disse. 

Ensino remoto e saúde mental

Com a migração do ensino presencial para o online, de 2020 até metade de 2021, o estresse causado pelo medo da doença, o possível não aproveitamento do conteúdo pedagógico, o rompimento de vínculos e a interrupção das principais rotinas de estudo e lazer afetaram a situação mental dos jovens de forma duradoura, em uma etapa da vida na qual as atividades sociais são mais intensas e as fragilidades emocionais aumentam os riscos à saúde mental.

E muitos não tiveram nem a tecnologia como aliada para manter os estudos e a troca social em dia. Dados divulgados, no dia 3 de novembro de 2021, através do relatório “Síntese de Indicadores Sociais: Uma análise das condições de vida da população brasileira 2021”, realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), mostram que metade dos alunos de 15 a 17 anos matriculados na rede pública de ensino não possuíam os equipamentos adequados ou acesso à internet para acompanhar as aulas remotas durante a pandemia; enquanto que, na rede particular, mais de 90% dos estudantes tinham os meios necessários para acompanhar as atividades.  

O psicólogo, professor  e coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre Cuidado em Educação e Saúde (LAPECE), Darlindo Ferreira, explicou sobre as especificidades dos adolescentes. “Os jovens de agora passaram dois anos dentro de casa, com o distanciamento social muito grande, ou seja, foi tirado do jovem justamente o momento em que o indivíduo está começando a se relacionar, descobrindo a sexualidade, entrando nos grupos secundários de socialização e tendo experiências importantes, como o primeiro namorado, as primeiras frustrações. Isso se torna uma grande lacuna no desenvolvimento e na vida desses indivíduos. Por isso, é certo que nós ainda vamos sofrer por muito tempo as consequências da pandemia da Covid-19”, constatou o psicólogo.

Hoje, mesmo com a retomada de 100% das atividades presenciais nas escolas, vemos alguns efeitos da pandemia, como crises de ansiedade e sintomas de depressão. De acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), em matéria realizada pelo próprio site da instituição, tais efeitos podem ser ocasionados por diversos fatores, sendo alguns deles: conflitos familiares; violência; pressão escolar e da sociedade; envolvimento precoce com drogas/álcool; carência de qualidade de vida; desejo de maior autonomia e maior acesso e uso de tecnologias.

Além das políticas públicas, a escola tem um papel muito grande na sociedade e pode ser um espaço de cura, por meio de atividades lúdicas e complementares. Por isso, o psicólogo Darlindo Ferreira argumentou que a escola precisa ser repensada. “Não pode ser mais a escola do século passado conteudista, que só foca em passar matéria e tirar boas notas, mas sim um ambiente complexo, de troca, principalmente na dimensão sócio-emocional. Porque ela funciona como uma espécie de parachoque, onde todas essas mazelas e dificuldades dos jovens se fazem presentes. Isso se agrava em escolas que ainda têm essa cobrança muito forte nas notas, avaliações, ENEM e hoje vivemos um momento difícil em que é muito necessária a escuta, o cuidado e a atenção”, justificou. 

Em entrevista à nossa reportagem, a pedagoga especializada em recursos humanos e educação, Suanny Lima, descreveu que a maior preocupação não pode ser a nota, mas sim a dificuldade do aluno e assim, cabe aos professores criar metodologias didáticas de aprendizagem, adaptando-as para as realidades de cada um e sem julgamentos. “O mesmo problema a ser resolvido, cada criança vai resolver de acordo com as próprias inteligências e isso nunca foi valorizado na escola. […] Eu digo aos meus alunos: quando vocês erram não é ruim, pois é isso que me mostra onde eu tenho que trabalhar para vocês não errarem mais”, complementou. 

Ela contou que, na sua atuação em escolas públicas, era comum encontrar discentes que, apesar de saberem solucionar os problemas propostos em sala, não conseguiam transcrever isso nas provas e atividades, seja por serem alfabetizados de forma incompleta ou por insegurança.  “Eu tive um aluno muito bom em matemática, ele resolvia todos os problemas de cabeça, mas nem ele mesmo sabia disso, pois era chamado pelos pais e amigos de burro, além de ser semianalfabeto. Quando ele foi alfabetizado, se tornou um dos melhores da turma”, relatou a profissional de educação.

A dificuldade em entender os conteúdos das aulas durante o ensino remoto afetou não só o aprendizado, mas também a autoestima intelectual de um aluno de 15 anos, da Escola Técnica Estadual Professor Lucilo Ávila Pessoa, no Bairro de Iputinga, no Recife. “Eu não conseguia entender muito os assuntos que os professores passavam, pois mal tinha contato com eles. E eu tive que rever e estudar de novo os assuntos agora na volta às aulas presenciais”, conta o aluno do 1° ano ensino médio. 

Outra estudante, do 3° ano do ensino médio, do colégio particular Marista São Luiz, no bairro das Graças, no Recife, relatou que há uma pressão forte devido aos vestibulares: “Eu ainda não tenho certeza sobre qual curso seguir e sinto que pegam mais no meu pé por causa disso. Por uma resposta minha e pelos resultados”. Em relação ao ensino remoto, informou que não teve muitos problemas com acesso a equipamentos e à internet, mas que a experiência com as aulas neste período não foi boa. “Foi péssimo, não me adaptei”, contou.

Além disso, a discente relatou a dificuldade da convivência familiar durante o isolamento: “Eu passava 24 horas com a minha mãe e minha irmã e não conseguia ter um momento de privacidade para passar pelos meus próprios problemas”. A menina de 16 anos também contou que, em sua adolescência, sentiu uma crise de personalidade e durante a pandemia isso se agravou, apesar de possuir apoio psicológico e familiar. 

Conforme depoimentos da mãe de um estudante, da Escola de Referência em Ensino Médio Pintor Manoel Bandeira, localizada no Bairro Novo, em Olinda, o período de distanciamento social foi muito difícil para o filho. “Ele se sentiu sufocado”, contou. Ela também relatou que o menino passou a ficar muito tempo no quarto e no celular. Para lidar com esse problema, ela recorreu a atividades familiares em conjunto, como assistir filmes e séries juntos. 

Com isso, o psicólogo Darlindo Ferreira também afirmou que a família deve criar um ambiente de escuta e oferecer suporte aos seus filhos a fim de não negligenciar a questão da saúde mental. “O jovem que chega ao ponto de se automutilar ou cometer uma tentativa de suicídio, normalmente vem de muito tempo de sofrimento. Então, se tem uma sugestão para os pais e responsáveis é: se relacionem com seus filhos, olhem para eles, dialoguem com eles. Muitas vezes você convive com a pessoa mas não vive com ela. Então, quando você começa a se relacionar com esse jovem e realmente viver com ele, poderá compreendê-lo e ajudá-lo melhor”, expressou. 

Por fim, a jovem estudante do Marista afirmou que costuma passar mais tempo nas redes sociais quando está enfrentando algum momento difícil na vida: “Às vezes eu entro [nas redes sociais] quando estou querendo me distrair de alguma coisa que aconteceu, só para pensar em qualquer coisa, menos naquilo”. Para o psicólogo, os jovens realmente passam muito tempo na internet quando a vida parece estar entediante. Eles acabam vivendo num mundo paralelo em que todo mundo parece feliz, adequado e, assim, suprem a falta de questões existentes em suas vidas, fora do mundo virtual.

Assim, as mídias digitais funcionam como uma espécie de “vitrine”, em que as pessoas se expõem sempre com corpos, vidas e personalidades perfeitos, fazendo com que elas, principalmente os jovens, acabem por comparar suas vidas com as dos influenciadores digitais que seguem. 

Ainda sobre esta questão, um artigo da revista estadunidense, The Atlantic, afirma que existe uma relação diretamente proporcional entre o aumento dos transtornos mentais dos jovens e o aumento do tempo gasto nas redes sociais. Isso porque, muitas vezes, o uso dessas tecnologias de forma desenfreada pode se tornar uma dependência e ocasionar problemas, como dificuldades no aprendizado, crises de ansiedade e déficit de atenção. Outro ponto é a constante luta por curtidas, já que elas funcionam como método de validação para os jovens, bem como os comentários das postagens. Por isso, se tornou hábito comum a exclusão de posts que não atingem o número esperado de likes, os chamados “flopados”, ou seja, algo que fracassou.

Diante de todos os fatos e considerações aqui apresentados, fica claro que o caminho para começar a diminuir os problemas relacionados à saúde mental dos jovens, potencializados na pandemia, é um trabalho coletivo. Sendo assim, é indispensável que os governos, educadores e familiares criem uma cultura de escutar os jovens e adolescentes com mais empatia e sem julgamentos. “Os jovens se sentem muito sozinhos, eles querem resolver os problemas deles sozinhos e eles se sentem muito culpados por não se encaixarem numa realidade que eles acreditam que deveria ser a certa. Então tem que ter a ajuda dos amigos, dos professores, da escola, dos pais, todos.”, finaliza o psicólogo. 

*A reportagem preferiu não identificar os estudantes que concederam os depoimentos, em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente que preconiza o direito à imagem e privacidade. “É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.” determina o ECA, em seu Art. 18. 

*Ademais, alguns estudantes e profissionais da escola (EREM) Ageu Magalhães, local do incidente que ocorreu no dia 8 de abril de 2022, seriam entrevistados, mas em virtude da situação, que ainda se encontra bastante delicada no colégio, preferiu-se não levar adiante a ação. 

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Por Bárbara Mota – Fala! Universidade Federal do Pernambuco 

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