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Mulheres indígenas conquistam o seu espaço na universidade

Com objetivo de levar conhecimento e formação a suas aldeias, as jovens indígenas enfrentam as dificuldades e ocupam as salas de aula   

Walderes Coctá Priprá, indígena do povo Laklãnõ Xokleng, tem 35 anos. Até os 22, morou em sua aldeia, no município de José Boiteux, em Santa Catarina. Em 2006, iniciou a Licenciatura de Letras – espanhol em uma universidade privada, localizada na cidade de Indaial, a 150 km de sua casa. Ia e voltava todos os dias, às vezes, pernoitava na casa de amigos ou até dormia no ponto de ônibus. Muitas vezes, dividia um pastel para comer no outro dia e se manter. Mesmo com as dificuldades, formou-se em três anos e meio, mas os desafios não terminaram ali. 

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Walderes em um auditório da UFSC. | Foto: Acervo pessoal.

Para mim, o grande obstáculo em trabalhar fora foi o preconceito. Na escola em que dei aula, antes de iniciar nas minhas funções de professora, me falaram que o meu certificado poderia estar errado, que não havia como uma indígena ser formada em letras espanhol.

Lembra Walderes.

No Brasil, o mercado de trabalho não é favorável às mulheres. Elas somam  cerca de 51% da força de trabalho, mas ocupam apenas 38% dos cargos de chefia disponíveis, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados no primeiro semestre de 2020. Nesse contexto está inserida a mulher indígena, que além de todas essas dificuldades, precisa se adaptar à outra realidade, diferente da sua cultura, como, por exemplo, a busca por uma formação acadêmica. 

A Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) recebe, cada vez mais, estudantes indígenas em suas salas de aula. No ano de 2008, foi implantada a política de ações afirmativas para os povos indígenas e quilombolas. Já no ano de 2016, foi criada a SAAD (Secretária de Ações Afirmativas e Diversidades). No mesmo ano, foi instituído o vestibular específico para os povos indígenas, até então eram 17 vagas por ano, hoje, esse número alcança 22 vagas.  

Atualmente, são cerca de 164 estudantes indígenas, sendo menos de 30% mulheres na graduação, segundo a PRAE (Pró-reitoria de assuntos estudantis).

Segundo relatório da Coperve (Comissão Permanente do vestibular), que divulgou a lista de inscritos para o vestibular de vagas suplementares de  2020 na UFSC, os cursos mais procurados pelos indígenas estão relacionados com a área da saúde. Atualmente, no topo do ranking está o curso de medicina (80 candidatos), seguido pelo curso de direito (com 18 candidatos) e enfermagem (com 16 candidatos).

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Thaira Antonia no pátio da UFSC. | Foto: Jucelino de Almeida Filho.

“Entrei para a universidade para dar um retorno para o meu povo, é por eles que luto e é por eles que estou na UFSC”, declarou a estudante de psicologia Thaira Antonia, de 24 anos, indígena do povo Laklãnõ Xokleng. 

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Gesiele Norberto no pátio da UFSC. | Foto: Jucelino de Almeida Filho.

Mesmo com as mudanças e quebras de paradigmas que o mundo vem vivenciando, as mulheres indígenas ainda relatam sofrerem muito por conta do preconceito dentro de seus locais de trabalho. Walderes, que foi professora da Rede Municipal da cidade de José Boiteux durante 12 anos, conta que enfrentou muita desconfiança por parte dos alunos e também dos próprios colegas de trabalho. Lembra que, quando foi se apresentar, a diretora da escola onde trabalhou falou a seguinte frase: “Nós temos aqui a Walderes, ela é índia e quero ver ela provar que é uma boa professora”.    

Choque cultural dos indígenas

Grande parte dos estudantes indígenas que ingressam nas universidades passa por um problema, o choque cultural de uma realidade diferente, tanto no ensino quanto na convivência com outras pessoas. 

Thaira conta como foi pra ela essa mudança: “Foi um baque muito grande. A gente fala muito em choque cultural, eu escutava muito sobre isso, mas eu senti bastante na pele quando eu entrei na universidade, porque eu me sentia, muitas vezes, inferior às outras pessoas, tipo, achar que eu não tenho o mesmo conhecimento que elas, por eu ter vindo de uma escola indígena, que preservava mais o ensino da língua e da cultura”.

Para Gesiele, que também estuda psicologia na UFSC, a dificuldade foi a comunicação. Ela conta que sempre foi comunicativa, tinha facilidade de fazer amigos, porém, quando veio para universidade, acabou se reprimindo e, mesmo após ter feito 6 semestres do curso, ainda tem dificuldades de se expressar.

A maioria do pessoal da minha sala veio de cursinho ou já está cursando a segunda graduação, então a gente fica com medo de perguntar por causa do julgamento e por se sentir inferior.

Conta a estudante.

O preconceito com o indígena sempre foi uma realidade, muitas das vezes por falta de informação ou mesmo pela criação das pessoas, pois entende-se que ninguém nasce com o preconceito, mas acaba desenvolvendo-o ao longo da vida. 

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Laura Parintintin em uma em comemoração do dia do índio. | Foto: Acervo pessoal.

Laura conta que, por não ter dinheiro para comprar alimento, dependia exclusivamente do RU, por isso fazia o seu prato e saía para comer com as filhas do lado de fora do restaurante, até também lhe proibirem de fazer isso. Então ela ia no RU, fazia um prato bem generoso e, sem que os fiscais vissem, enchia a marmita e levava para as filhas.

Além da dificuldade de adaptação das indígenas em relação ao conteúdo das disciplinas, principalmente pela diferença de aprendizado em relação aos não indígenas, elas também sofrem preconceito por muitas serem mães e terem sempre seus filhos por perto.

Thaira Antonia, de 24 anos, indígena do povo Laklãnõ Xokleng, afimou:

Eu acredito que esse é um diferencial de nós, mulheres indígenas, de a gente sempre querer que os filhos estejam juntos, de a gente sempre  conviver no coletivo, pensar no coletivo, de a gente sempre dar a mão para outra mãe que precisa.

O indígena quando está na sua aldeia tem uma rotina diferente do homem branco, isso também é um problema para os estudantes que precisam se adaptar aos horários e à rotina do dia a dia na cidade. Muitos deles viveram sua vida toda na aldeia e desconhecem o cotidiano urbano.

Retorno às aldeias

As histórias são diferentes, porém o objetivo é igual. A grande maioria dos estudantes indígenas que ingressam nas universidades tem como missão dar retorno à sua comunidade, devido à falta de profissionais que atendam às especificidades da sua cultura.

“Meu objetivo sempre foi estudar, cumprir todos os meus estudos e dar o retorno para a minha comunidade”, comenta Walderes, que depois de sua primeira formação, deu aula na sua comunidade em José Boiteux por 12 anos, antes de voltar para universidade, para fazer um mestrado em História na UFSC.

A ex-professora e estudante da UFSC conta que, em conversas com os anciãos da sua aldeia, ouvia muito sobre a expectativa dos mais velhos em relação aos acadêmicos. “Eles sempre diziam que nunca era para deixar o sonho deles morrer, que um dia eles queriam ver dentro da nossa terra indígenas médicos, engenheiros, dentistas, farmacêuticos, enfim, todas as profissões possíveis”. 

Gesiele espera que seu retorno para sua comunidade possa ajudar a melhorar as condições de vida das aldeias e influenciar outras pessoas a buscarem o conhecimento. “Eu acho muito importante eles verem que tudo é possível, porque eu venho do oeste de Santa Catarina e lá a única perspectiva de vida é trabalhar no frigorífico, e eu quero mostrar para os jovens que, com muita luta e determinação, eles podem ser o que eles quiserem”, comenta a estudante.

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As mulheres sorrindo nesta fotografia representam a personificação da palavra persistência. | Foto: Acervo pessoal de Walderes.

Cada vez mais as mulheres indígenas ocupam as salas de aulas de muitas universidades, com objetivo de dar o exemplo aos mais jovens e um retorno para as suas comunidades. Este é um importante passo para reduzir as desigualdades de gênero e os preconceitos raciais.  

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Por Jucelino de Almeida Filho – Fala! UFSC

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