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Filhas de Dandara: Mulheres vêm conquistando espaço na capoeira

Símbolo da resistência e do feminismo negro, Dandara dos Palmares é inspiração para mestras a frente da luta ancestral da capoeira

Depois de dar a volta ao mundo, o capoeirista se abaixa no pé do berimbau, aperta a mão do camarada e o jogo de capoeira começa novamente. Assim é feito o ritual, com reverência aos instrumentos, saudação ao mestre e respeito à ancestralidade de que é feita a luta, o jogo, o esporte, a dança. O nome não importa. Como dizia mestre Pastinha, “A capoeira é tudo que a boca come”. Costuma agradar a todos de acordo com sua fome. Em outras palavras, cada um procura a capoeira para uma finalidade. Seja para tratar a saúde mental, melhorar o condicionamento físico, fazer amigos, aprender sobre a nossa cultura. A lista é vasta.

Conhecidas como as filhas de Dandara, as mulheres estão ganahndo espaço na capoeira.
Conhecidas como as filhas de Dandara, as mulheres estão ganahndo espaço na capoeira. | Foto: Getty Images.

Consideradas as filhas de Dandara, mulheres vêm se destacando na capoeira

Documentada no Rio de Janeiro desde o século XIX, a capoeira é uma luta que foi desenvolvida por africanos escravizados e teve sua prática estigmatizada ainda no Brasil Colônia. Vale lembrar que em 1890, por meio da lei da vadiagem, a capoeira, assim como o samba, era criminalizada. Tais punições eram “justificadas” com a finalidade de realizar a higienização social, ou seja, o Estado encontrou um meio de excluir e perseguir camadas mais pobres da sociedade por meio da lei.

A prática da capoeira, assim como a maioria dos esportes, também sempre foi predominantemente masculina. Com os movimentos feministas em voga e debates acerca da equidade de gênero, o cenário, nos últimos anos, vem se modificando. Hoje, nota-se uma capoeira mais diversa e plural, onde todos cabem na roda.

Apagada pelo racismo e machismo, Dandara foi líder do Quilombo dos Palmares, junto com Zumbi, seu companheiro. Capoeirista, a matriarca do quilombo organizava lutas armadas, ajudava na elaboração de estratégias para defender os negros contra o cativeiro e participava de atividades como a caça e a agricultura. No dia 06 de fevereiro de 1694, quando foi capturada, Dandara se jogou de um penhasco, se suicidando. Preferiu a morte à escravidão.

“Eh, Dandara/ A espada e a palavra eh/ Não vai ser escrava/Hei de ver outras pretas minas.” Os versos do samba enredo da Paraíso do Tuiuti para o carnaval de 2022, lembra a figura de Dandara e destaca sua importância. A escola de samba de São Cristóvão traz o enredo “Ka ríba tí ye”- “Que nossos caminhos se abram “. – O Tuiuti canta histórias de luta, sabedoria e resistência negra”. Com um enredo que celebra a população negra, a trajetória de Dandara não poderia ficar de fora.

A líder quilombola além de inspirar sambas enredo, também serve de exemplo para mestras de capoeira que veem em Dandara a força da resistência feminina e negra. Bebendo na fonte da ancestralidade e ressignificando as questões de gênero dentro do esporte, nasce assim, o Movimento Dandara Viva Capoeira. O evento que acontece a cada dois anos, é organizado por sete mestres de várias regiões do Brasil e tem como objetivo discutir o empoderamento feminino, abordar a visibilidade das mulheres dentro da luta, incentivá-las a não desistirem da luta e além disso,  promove oficinas, bate-papo e palestras acerca do tema. A falta de estímulo para seguir no jogo é diversa. Seja em razão da maternidade, falta de confiança por parte dos mestres, etc. Por fim, o movimento segura a mão da mulher e pede para ela não deixar de entrar na roda e gingar.

Em 2021, o evento chegou a sua 3° edição em Goiânia, que, aliás, era para ter ocorrido em 2020, mas teve que ser adiado em função da pandemia de covid-19. As outras edições foram realizadas em Ubá, cidade de Minas Gerais, e no Rio de Janeiro. O próximo será em Vitória, Espírito Santo.

Mas a história do movimento não é de hoje. A vontade de promover um evento encabeçado por mulheres nasceu lá nos anos 2000. A ideia surgiu da Mestra Magali, que criou O Sinhá chamou pra jogar. O movimento tinha como principal intuito incentivar e mostrar que as mulheres poderiam liderar um evento de capoeira. O projeto chegou até a 2° edição e depois se transformou no Dandara, já com outras necessidades e demandas.

Formada em Educação Física, Magali, 47, começou sua história na capoeira aos 14 anos através de seu primo, que também é capoeirista. Filha de mãe solo e sem referência paterna, se sentiu acolhida pela capoeira por ser um ambiente muito masculino. Por isso, não via nem percebia o machismo dentro do esporte. “Antigamente, a rivalidade feminina era muito gritante na capoeira, aplaudida pelos homens. Hoje, há uma união crescente.”

A capoeira então passou a ser um combustível de sua vida. Logo depois, foi treinar com o Mestre Boneco, um dos fundadores do grupo Capoeira Brasil. Em 2010, Magali foi a primeira mulher negra a pegar a corda preta, se tornando a primeira mestra do grupo no qual dá aulas até hoje. 

Costuma dizer que sua turma vai de “AaZinco”. Tem todo tipo de gente. Seu caráter acolhedor e generoso são suas marcas mais fortes. Acredita na escuta e na fala como fator transformador. Mãe de duas crianças, já pensou em largar a capoeira, mas sempre é levada de volta para a roda. “A capoeira na minha vida é uma missão”, me disse a mestra.

Mestra Francesinha, 54, é de Niterói, e conheceu a capoeira no início da década de 1980. Depois de ficar 31 anos no grupo Capoeira Brasil, sentiu a necessidade de fundar seu próprio grupo com um viés mais cultural. O Centro Cultural Capoeira Runcunco. Francesinha também é professora de Educação Física e está a frente de um projeto chamado “Amazonas chamou pra jogar”, onde desenvolve trabalhos com podcasts para crianças da escola onde dá aulas e também promove o ensino da cultura afro-brasileira de uma maneira mais lúdica. Além disso, é formada em Direito, tem mestrado em educação física sobre capoeira e mulheres e doutorado sobre a inserção das mestras na capoeira.

Acredita que “equidade na capoeira, significa equidade na sociedade, pois a capoeira é um microcosmo da nossa estrutura machista”. Se identifica com a capoeira por ser uma modalidade que mexe com tudo, música, cultura e dança. Para ela, a capoeira é seu norte, seu jeito de viver. Francesinha pensa que o Movimento Dandara precisa expandir para uma discussão mais ampliada do feminismo, da homofobia e racismo, pois se trata de mulheres plurais.

Mestra de capoeira no Grupo Beribazu desde 2018, Sabrinha, 43, é capixaba e flerta com a luta desde 1991, quando começou a fazer aulas no Centro de Educação Física da universidade onde sua irmã estudava. Aquariana e filha de Iansã, a mestra Sabrina me disse que a capoeira a transformou em uma pessoa melhor e muito mais criteriosa. “Se hoje eu sou feminista, militante, se eu quebro o pau por conta de cultura, racismo, de machismo, de homofobia, é porque a capoeira me fez forte. Eu não seria a pessoa que eu sou hoje sem a capoeira.”

Sobre o movimento Dandara é categórico, o Dandara é um movimento muito forte. Forte porque somos sete mulheres fortes, autônomas, participativas, que são totalmente diferentes, personalidades diferentes, porém, nós temos muita coisa em comum que eu acredito que é o que nos torna muito fortes. Nós nos amamos, nos respeitamos e nos valorizamos. Nós sempre queremos o melhor para a outra, nosso olhar para a outra é um olhar que incentiva e estimula. Primeiro nós nos tornamos amigas, fãs uma das outras e depois criamos o Dandara.

A aluna mais antiga do grupo Capoeira Brasil, mestra Baixinha, 57, nasceu em Petrópolis, Região Serrana do Rio. Seu primeiro contato com a capoeira foi aos 16 anos, passando numa praça, viu uma roda de capoeira, e de cara se apaixonou. Formada em Psicologia, chegou a trabalhar numa clínica na área de saúde mental num período em que estava afastada do esporte. Em 2008 voltou para a capoeira e desde então retomou suas aulas para crianças. Da aula em escolas, creches e também tem turmas para adultos. A mestra usa a psicologia como ferramenta para dar aulas de capoeira, sobretudo, para crianças.

Na última edição do Movimento Dandara Viva Capoeira, expôs sua sexualidade durante uma palestra. Lésbica, a mestra fez um discurso emocionante no evento. “A minha esperança é que um dia eu não precise colocar minha orientação sexual numa palestra. Que isso se torne normal como é. Sofri muito preconceito dentro da capoeira. Sempre indiretamente. Aquela coisa por trás. Minha postura na capoeira sempre foi de respeito pelo outro, pela caminhada do outro, por isso, nunca dei muita abertura para as pessoas me agredirem, mas sei que existia piadas e comentários nos bastidores. Sempre manteve uma postura mais “marrenta”. Era uma forma de defesa. Fiquei por muito tempo no armário. Resolvi expor minha sexualidade na capoeira para ajudar outras pessoas, agora que possuo título de mestra, por ser uma referência. Com a minha fala, vi que podia ajudar outras pessoas”. 

Morando há 20 anos em Barra de São João, interior do Rio, a mestra Claudinha, 55, conheceu a capoeira com 16 anos, através de seu primo. Se encantou com a musicalidade e a energia da capoeira. No começo, fazia a luta escondida de seus pais, ouvia que era “coisa de estivador”, e que ficaria masculina. Mas Claudinha não se abalou, seguiu no esporte ainda enfrentando preconceitos dentro e fora dele. A mestra me contou que teve que estudar outras vertentes para ter o reconhecimento na capoeira. Por isso, explorou o lado musical da luta. “Tem que provar muita coisa para ter o reconhecimento. A mulher tem que provar o tempo inteiro. Duvidam se somos capazes de tocar o berimbau. Tive que aprender a tocar e cantar bem.”

Candomblecista, a mestra Claudinha sempre teve uma paixão muito grande pelo atabaque, aprendeu a encourar o instrumento sozinha e há 30 anos que tem um trabalho de produção de atabaques com oficina e atelier para a feitura e venda do instrumento. Além disso, criou um grupo de estudos, batizado de Reconca Lagos, que se debruça sobre a cultura popular como o maculelê, o jongo, coco e tambor de crioula. Sua capoeira é recheada de musicalidade e ancestralidade.

Quando pergunto para a mestra o que a capoeira significa para ela, se emociona ao me responder. “A capoeira pra mim é o ar que eu respiro”. É uma filosofia de vida. Vivo para a capoeira. A capoeira é resistência. Temos que acreditar que somos capazes. O homem percebeu que a mulher faz parte da roda. Conciliar a maternidade com a capoeira também é um desafio, falo por experiência própria, chegar até a corda azul é fácil, difícil é passar dela, porque é justamente quando entra a maternidade na vida da mulher, constituir família, etc.’’  

Também do grupo Capoeira Brasil, a contra mestra Felina, 42, iniciou sua relação cedo com a capoeira. Quando tinha 14 anos começou a fazer aulas e não parou mais. Atualmente, Felina tem uma marca de roupas de capoeira, a Berimbau e Arte. “Estamos conquistando nosso espaço. Agora com quatro filhos, estou um pouco afastada da capoeira. Minha prioridade é minha família. Meus filhos sempre me acompanharam na capoeira. Sou mãe e capoeirista. Sempre fui muito bem acolhida após a maternidade. Levava as crianças, eles treinavam. Já dei aula grávida e sempre tive apoio. Nunca percebi esse olhar machista e opressor após a maternidade.”

“O projeto Dandara é muito bonito e importante. Inspira outras meninas, estimula. Poder se espelhar em outras mestras é fundamental. Eu tive muitas mulheres que me inspiraram quando eu estava começando. Ter isso hoje em dia é um avanço muito importante”, afirma a contra mestra. 

Em 2014, a capoeira recebeu o título de patrimônio cultural imaterial da humanidade da Unesco. Em 2008, a expressão cultural afro-brasileira recebeu o título de patrimônio cultural brasileiro.

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Por Júlia Rivero – Fala! PUC-RIO

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