Por Beatriz Mazzei – Fala!Anhembi
É tudo questão de costume, eles dizem.
Então a gente se acostuma a trabalhar em repartições que parecem caixas, a sentar em cadeiras desconfortáveis, a usar calça social, gravata que aperta, salto que dá calo. A roupa é tão quente que ligamos nosso ar condicionado, e assim, logo se acostuma com as janelas fechadas, logo se acostuma com o vidro escuro, logo se acostuma com a impossibilidade de assistir ao pôr-do-sol, logo se esquece da hora. Nossa, o dia voou.
A gente se acostuma a chegar tarde em casa e jantar rápido para dormir logo. De tão rápido, nem vale a pena se reunir à mesa, logo se acostuma a comer no sofá vislumbrando as imagens da telenovela enquanto se alimenta depressa. Assim se perde o sabor, a comida esfria, as conversas cessam.
A gente se acostuma com horários que não batem, a dizer “hoje eu não posso”. A não dar atenção à quem amamos. Dormimos exaustos, sem ver nosso filho, nossa esposa, nossa mãe.
A gente se acostuma a abrir os olhos com a escuridão do dia que mal amanheceu. A se entupir de café para acordar e a pagar caro pela condução.
A gente se acostuma a dar bom dia pro motorista que já se acostumou com a nossa cara, e a ficar em pé no ônibus cheio, ouvindo o noticiário da manhã para não perder o tempo da viagem durante o congestionamento de duas horas.
A gente se acostuma com o jornal que te informa sobre a violência do centro, a chacina na comunidade, o trânsito da marginal, a falta de leitos nos hospitais e a corrupção da polícia e do Planalto Central.
A gente se acostuma a temer. Com o medo vivemos em nossos condomínios fechados, acionamos sistemas de segurança, contratamos guaritas, alongamos os muros, fixamos cercas elétricas, blindamos nossos carros.
A gente se acostuma com a violência. Voltamos antes do toque de recolher, sabemos que a bala come solta e ai de quem estiver no lugar errado, na hora errada. Logo se acostuma a sair em bando, a rezar, a dar satisfação. Bença mãe, cheguei em casa, tô bem, hoje eu não morri.
A gente se acostuma com o abismo social, com o racismo estrutural, com o tráfico, com a pobreza. E à medida que se acostuma, acha normal, naturaliza-se.
A gente se acostuma com a miséria de amor e com a pobreza de espírito. Recolhemos migalhas, nos contentamos com pouco. Logo se acostuma a viver em relacionamentos tóxicos e abusivos ou frios, mornos, sem sal, sem açúcar, sem tempero nenhum.
A gente se acostuma a sair com as pessoas e gastar mais tempo encarando o celular do que olhando nos olhos. Mesmo assim voltamos para casa contentes. Dormimos com a sensação de dever social cumprido.
A gente se acostuma com a ansiedade, com a claustrofobia, com os pânicos. O tempo é curto demais para essas “besteiras”. Nós deixamos pra lá.
A gente se acostuma a deixar pra lá. Não se mexe em feridas, não se abre o coração: a ignorância é uma benção e o autoconhecimento desnecessário. Logo se acostuma a sentir vergonha da tristeza e engolir o choro. Ser forte é colocar tudo debaixo do tapete.
A gente se acostuma com as incertezas da juventude, com a desilusão da meia idade, com as limitações da velhice. As fraquezas de cada fase: não dá porque tenho que estudar, não dá porque preciso trabalhar, não dá porque estou muito velho, meu tempo já foi.
A gente se acostuma a viver de nostalgia, esquecer das datas, errar os nomes, repetir as frases e andar devagar.
A gente se acostuma com o fato da morte e nos preparamos para o fim inevitável. Todo mundo sabe que vai morrer, a gente só não sabe que é possível padecer em vida, um dia de cada vez, se acostumando.
Sim, a gente se acostuma. Mas não devia.
– Inspirado no texto de Marina Colasanti