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Como o whitewashing influencia na percepção da história da sociedade?

Quando nos deparamos com certos títulos de filmes, novelas, séries de TV famosas, na maioria das vezes não nos atentamos para o problema que pode estar por trás dessas produções. No filme Doutor Estranho, por exemplo, adaptado dos quadrinhos da Marvel Comics, vemos um neurocirurgião renomado que, após um acidente que o impossibilita de ter cem por cento das mãos, faz de tudo para recuperá-la. E a partir daí, a história se desenrola como todos conhecemos: Stephen Strange vai até Katmandu no Nepal e lá ele encontra o templo de Kamar-Taj, onde a Anciã o espera e o introduz ao conhecimento das artes místicas. 

Aqui temos um grande problema: em uma região que se encontra delimitada ao norte pelo Tibete e ao sul e oeste pela Índia, em um país asiático, por que a figura da Anciã se concentra em uma pessoa  branca e com características totalmente caucasianas? Além disso, muitos dos personagens que aparecem no templo também são, nitidamente, brancos. 

Outro exemplo se encontra no filme O Último Mestre do Ar, adaptado do desenho animado Avatar: The Last Airbender, em que o personagem principal do filme foi interpretado pelo norte-americano Noah Ringer, um sujeito branco sem características asiáticas, assim como a personagem Katara, que no desenho animado era uma pessoa não-branca. O filme foi um fracasso de bilheteria por alguns, mas sobretudo por conta da campanha #AangAintWhite (Aang não é branco). A isso, pode-se dar o nome de WhiteWashing

O embranquecimento, ou whitewashing, é algo que ocorre em produções dentro e fora de Hollywood.
O embranquecimento, ou whitewashing, é algo que ocorre em produções dentro e fora de Hollywood. | Foto: Montagem/Reprodução.

O que é o Whitewashing?

O Whitewashing, em português “embranquecimento”, acontece quando as produções artísticas, cinematográficas, televisivas, entre outras, substituem papéis que pertencem a pessoas de outras etnias (negras, asiáticas, latinas, entre outros) por atores brancos. Na indústria cinematográfica, principalmente em Hollywood, muitos diretores afirmam que isso acontece porque o público (nesse caso norte-americano) responde mais positivamente a filmes dos quais eles podem se identificar com os personagens. Portanto, se trata única e exclusivamente de uma questão de números. Outros diretores já chegaram a afirmar que não haviam atores suficientemente qualificados para interpretarem os personagens. Será mesmo? 

No caso de filme Doutor Estranho, o presidente da Marvel Studios, Kevin Feige, afirmou que a escolha da atriz Tilda Swinton para o papel da Anciã foi justamente para tentar fugir dos estereótipos que impõe do velho mestre asiático (como o dos quadrinhos), portanto a escolha de uma mulher para o papel seria inusitada e revolucionária. Acontece que ao tentar fugir de um padrão, ele acabou caindo em uma contradição imensa. Por que não, então, uma mulher asiática? Iria fazer mais sentido. 

Esse pensamento embranquecedor sempre esteve presente na história, desde o início da colonização européia moderna, apoiada em uma moral cristã civilizatória e em intenções econômicas de exploração de mão-de-obra e do próprio ser humano. A escravidão nas Américas foi e é um dos principais motivos para o olhar que se tem ao negro e da marginalização sofrida. Os movimentos anti-semitas, a eugenia, os circos dos horrores, os campos de concentração serviram para aumentar o sentimento de superioridade europeu e excluir inúmeros sujeitos da sociedade, sujeitos de regiões diferentes, religiões diferentes, costumes diferentes. A identidade individual e coletiva está, cada vez mais, sendo moldada a partir de um discurso isolado e errôneo da nossa história, apoiado mais ainda pela indústria cinematográfica que distorce a memória e faz com que acreditemos compulsoriamente em tudo o que vemos, ouvimos ou lemos.

Embranquecimento nas produções brasileiras

Não pensem que isso só acontece na grande Hollywood. Muitas produções brasileiras já seguiram e seguem esse padrão até hoje, como a novela global Caminho das Índias e a novela da Rede Record, José do Egito

E qual o problema de atores e atrizes brancos interpretarem personagens originalmente não brancos? Nenhum, se não vivêssemos em uma sociedade racista, xenofóbica, machista, entre tantas outras coisas, que possibilitam a perpetuação de estereótipos de raça e gênero e que contribuem para coisas como, por exemplo, o blackface, ação em que um ator/atriz branco se pinta de negro e agem de uma maneira totalmente estereotipada para fazer um papel de negro. Com a reprodução dos estereótipos ao longo de anos, sobretudo da indústria americana, russos, vietnamitas, asiáticos, negros, latinos, entre muitos outros grupos passaram a ser ligados aos vilões. O constante whitewashing, portanto, é uma ferramenta de apagamento histórico dos sujeitos que deveriam ser os protagonistas das ações, ele se mostra como uma forma de não reconhecimento do próximo, que possui os mesmos valores.

A solução para se lidar com esse problema é bastante complexa, pois, segundo o professor de cinema da FAAP, José Vicente, o whitewashing é um problema estrutural: “é quase insanável, porque o público está muito acostumado a um determinado tipo de coisa. Não é só no cinema… é na televisão, na música, tudo quanto é lugar”. 

Portanto, não há uma resposta sólida para o problema. Mas existem maneiras e atitudes que podem ser tomadas para ir em direção oposta. José Vicente fala que “Uma solução é você fazer o contrário, você colocar não o que as pessoas não querem assistir, mas o que elas não estão acostumadas a assistir, porque se você não consegue colocar um pouco de raciocínio na cabeça da pessoa, o problema vai se manter”. 

Precisamos ainda, dar lugar para roteiristas, diretores, atrizes e atores não-brancos para produzirem obras que contemplem os sujeitos que estão sempre em segundo plano. Precisamos ocupar todos os espaços, para termos um lugar que nos pertence.

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Por Paulo Matheus – Fala! Universidade Federal Rural de Pernambuco

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