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As consequências da violência policial na vida das comunidades

A normalização da violência. Famílias têm que conviver em meio a tiroteios e mortes, sendo, muitas vezes, vítimas de uma política de segurança que deveria protegê-las. 

operação policial
Após operação policial, no Complexo do Alemão, moradores transportam os corpos. | Foto: Ricardo Moraes/Reuters.

Um menino joga sinuca com seus primos, enquanto dois traficantes, fugindo da polícia, pulam o muro da casa em que estavam. A polícia abre fogo e, o que era para ser uma noite divertida, virou 72 buracos de bala. Uma delas atingiu João Pedro, de 14 anos, que morreu no hospital após lutar por sua vida.

Por que e como a população das comunidades brasileiras são afetadas pela violência policial?

A população das comunidades brasileiras

De acordo com dados do censo demográfico de 2010, elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os aglomerados subnormais, conhecidos como comunidades, favelas e baixadas, abrigam cerca de 6% da população brasileira. Os estados de São Paulo e Rio de Janeiro possuem as maiores populações vivendo nessas comunidades, cerca 23,2% e 19,1%, respectivamente. Em seguida, a região Nordeste, aproximadamente 29%.

As comunidades são áreas de habitações urbanas irregulares, com carência em serviços básicos, como saneamento e outros serviços públicos. O surgimento dessas habitações está diretamente relacionado com as desigualdades sociais e teve origem no período da abolição da escravidão, uma vez que, por conta da discriminação e da carência econômica, muitos ex-escravos foram condicionados a ocupar regiões afastadas das cidades. Mais recentemente, o processo de urbanização do país, no século XX, intensificou o surgimento de comunidades e o aumento das populações periféricas.

Dessa forma, esses aglomerados possuem populações economicamente frágeis, com elevadas taxas de pobreza. Além disso, são compostos, em maioria, por pessoas pretas e pardas.

Raízes da violência policial

Segundo Luiz Eduardo Soares, antropólogo brasileiro, a violência policial no Brasil está ligada a um processo histórico de tradições autoritárias e violentas. A polícia é um resultado desse histórico, mais recentemente, caracterizado pela ditadura militar, que usava a violência policial para controlar setores da população vistos como ameaças para o regime. E, segundo ele, essa herança violenta é consentida, em muitos aspectos, pela democracia.

Márcio Thomaz Bastos, ex-ministro da justiça do Governo Lula, afirma que as políticas de segurança – herdadas desse contexto histórico e representado, principalmente, pela escravidão e a ditadura militar – possuem conteúdo de classes, ou seja, possuem um alvo preferencial, os de baixa renda.

“As pessoas dizem que o policial atua diferente em lugares diferentes. Mas tudo é diferente (numa favela). O cara que entrou para a polícia aprendeu a ser autoritário nesse espaço, e submisso em outro. Ele pega o trem e altera o comportamento. Todos nós, policiais ou não. Na zona sul, não atira porque não atiram nele.”, diz Ubiratan Ângelo, ex-comandante-geral da Polícia Militar do Rio de Janeiro, à BBC News Brasil.

Na fala de Ângelo, policiais aprendem a ser autoritários nas comunidades enquanto submisso em outros. Mas quais são as consequências dessa política de segurança?

Mortes de jovens e crianças

Mortes de jovens e crianças
Mortes de jovens e crianças. | Foto: Reprodução.

Ágatha Vitória Sales Félix

Ágatha, que tinha apenas 8 anos, foi atingida por um tiro em uma ação policial em setembro de 2019, no Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio de Janeiro. A criança estava voltando para casa com a mãe quando a kombi em que estavam parou para passageiros descerem, logo depois, a menina, que estava dentro do veículo, foi atingida.

Segundo a Polícia Militar, houve um confronto com um suspeito naquela região. A PM afirmou que foi atacada por criminosos, mas não explicou a origem do tiro que atingiu Ágatha. A versão das testemunhas é diferente, de acordo com o tio da vítima e o motorista da kombi, não houve confronto e somente a PM teria efetuado disparos.

“Atirou na Kombi e matou a minha neta. Foi isso. Isso é confronto? A minha neta estava armada, por acaso, para poder levar um tiro?”, diz avô de Ágatha.

A menina foi levada ao UPA e depois transferida para o Hospital Getúlio Vargas, mas não resistiu. Em outubro, a revista Veja publicou uma matéria dizendo que PMs haviam invadido o hospital em que Ágatha estava, na tentativa de pegar o projétil da bala que a atingiu, segundo a Veja, essa informação teria vindo de enfermeiros e outros funcionários do hospital. 

Apesar de Wilson Witzel, Governador do Estado do Rio de Janeiro, dizer que iriam apurar a acusação, até hoje, a investigação não chegou a uma conclusão.

Além disso, em uma coletiva realizada no dia 23 de setembro, Witzel afirmou que não havia motivos para “um fato isolado como esse modificar a política de segurança do Estado”.

Será que foi um fato isolado? Segundo a plataforma Fogo Cruzado, de janeiro a setembro de 2019, 24 crianças e adolescentes foram mortos em operações policiais no Rio de Janeiro. 

Jovens pisoteados em Ação da PM, 9 mortes

Em dezembro de 2019, 9 jovens foram pisoteados até a morte em ação da PM em Paraisópolis, a segunda maior comunidade de São Paulo.

O tumulto aconteceu durante um baile funk que reunia cerca de 5 mil jovens e adolescentes. A versão da polícia militar e das testemunhas são diferentes. 

“Eu não sei o que aconteceu, só vi correria, e várias viaturas fecharam a gente. Minha amiga caiu e eu abaixei pra ajudá-la. Quando me levantei, um policial me deu uma garrafada na cabeça. Os policiais falaram que era para colocar a mão na cabeça.”, diz jovem que estava no baile funk.

Segundo a PM, dois homens em uma motocicleta teriam disparado contra os policiais e seguido em direção ao evento, ainda atirando, e isso que teria gerado o tumulto.

Cerca de 20 pessoas ficaram feridas, 2 internadas e 9 mortas. As vítimas que foram a óbito tinham entre 16 e 28 anos, segundo O Globo.

A União de Moradores de Paraisópolis se manifestou, em nota, afirmaram:

Não foi acidente! (…) Com frequência, ocorrem ações policiais de dispersão, causando correria e violência, como mostram os vídeos. Essa madrugada, jovens foram encurralados em becos e vielas e foram levados a caminho da morte, e quem deveria proteger está gerando mais violência.

João Pedro

No dia 18 de maio de 2020, João Pedro, jovem de 14 anos, foi morto em uma operação policial no Complexo do Salgueiro, estado do Rio de Janeiro. Ele estava na casa de um primo, brincando, quando policiais invadiram e efetuaram disparos. O jovem levou um tiro de fuzil na barriga, mas o laudo do calibre da bala que o matou deu inconclusivo, segundo o G1.

Segundo a Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro (PCERJ), dois seguranças de uma facção criminosa pularam o muro de uma casa, tentando fugir, e dispararam contra os policiais, que reagiram. 

A gente ficou sem saber dele por horas. Fomos pra todos os lugares. Ninguém tinha notícia dele.

Diz tia da vítima ao El País

João Pedro só foi encontrado pela família 17 horas depois dele ser baleado, já no Instituto Médico Legal (IML). Segundo seu pai, Neilton Pinto, 40 anos, os policiais não prestaram informações do que havia acontecido e nem para onde haviam levado seu filho. 

Foi a polícia que matou o meu filho. O policial, tenho certeza absoluta, não está dormindo. Está raciocinando [sobre] a besteira que ele fez: tirar a vida de um jovem com futuro brilhante, com muita vontade de viver, de ser advogado, vencer, ser alguém na vida.

Afirma Neilton

Rodrigo Cerqueira da Conceição

“Tentando fazer o que o Estado não faz, que é levar comida, levar aquilo que falta. O Estado só leva isso aqui: bala. A única coisa que a gente tem é bala dentro da favela”, diz Voluntário da Frente Cidade de Deus em vídeo nas redes sociais sobre tiroteios durante distribuição de cestas básicas no Rio de Janeiro.

Dia 21 de maio de 2020, Rodrigo da Conceição, de 19 anos, estava entregando cestas básicas no Morro da Providência, centro do Rio de Janeiro, quando foi baleado e morto durante uma operação policial.

“Eu vi que jogaram o menino dentro da viatura, colocaram um lençol por cima”, afirma Pedro Guilherme Freire, professor que também estava entregando cestas básicas.

Segundo a corporação, eles estavam fazendo patrulhamento quando criminosos dispararam contra os policiais. Em nota, a Polícia Militar afirma que um suspeito foi morto, Rodrigo. Porém, testemunhas contestam a versão da PM, e dizem não acreditar que o Jovem tinha envolvimento com o crime.

“Até onde eu sei, pelas informações que eu tenho, ele não tinha envolvimento, inclusive, tinha um problema de visão. Os óculos dele são bem grossos, não enxergava direito, precisava sentar nas primeiras filas para enxergar o quadro e copiar a matéria. Era um garoto calmo, tranquilo, bom garoto, educado”, relata o professor de Rodrigo ao UOL.

Infelizmente, é impossível relatar aqui todos os casos de mortes de crianças e adolescentes em operações policiais. Mas os números não cessam. 

Os erros policiais

Rodrigo Alexandre da Silva Serrano

Em setembro de 2018, Rodrigo Alexandre da Silva Serrano, de 26 anos, foi morto pela polícia enquanto descia a rua de sua casa para esperar sua esposa e filho. Segundo a PM, eles teriam confundido o guarda-chuva que Rodrigo estava carregando com um fuzil, e pensado que o “canguru” (suporte para carregar crianças) era um colete à prova de balas.

Um morador, que não quis se identificar, relatou ao El País que não havia uma operação policial naquele momento, nem troca de tiros. 

Matheus Oliveira

Em maio de 2020, Matheus Oliveira, de 23 anos, foi morto com um tiro na cabeça. Segundo moradores do Morro do Borel, Zona Norte do Rio de Janeiro, local em que foi baleado, os tiros teriam partido da Polícia Militar. O amigo que estava com Matheus no momento dos disparos disse ao portal O Globo que os PMs teriam se assustado ao avistarem a moto com os dois jovens, e disparado contra eles.

A PM registrou o caso da morte de Matheus como “queda”, porém, não só moradores afirmaram que em seu capacete havia projéteis de bala, como o Hospital Souza Aguilar, constatou que foi devido a um tiro na cabeça e contestou a PM.

Mais uma vez, esses casos não foram isolados. 

PM
Casos em que a PM se confundiu, e jovens pagaram com a vida. | Foto: Reprodução.

Violência policial para além das comunidades

De acordo com o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2019, 75,4% das vítimas de intervenção policial eram negras (que reúne pretos e pardos, assim como o IBGE). Esse dado sugere que a violência policial possui distinção entre classes e, principalmente, entre a cor da pele, uma vez que a população branca, mesmo sendo 44,2% da população brasileira, representa 24,4% das vítimas. Dessa forma, grande parte da população das comunidades – em maioria negros e pobres – sofrem com a violência policial mesmo estando em outros locais. 

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Por Beatriz Oliveira Abrahão – Fala! UFMG

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