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A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro: uma análise do conto de Rubem Fonseca

Primeiro é importante destacar que o autor do conto, Rubem Fonseca, é conhecido por “mimetizar a violência urbana itinerante”, segundo Sergio Mota.

Portanto, essa mensagem está presente na produção analisada.

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Livro A Grande Arte que contém o conto A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, de Rubem Fonseca – foto: Reprodução

O personagem principal da história, Augusto, é um homem perdido. Porém, com ambições. 

A proposta dele, por mais que se possa discorrer muito sobre, é objetiva, direta, cortante: salvar a cidade pela letra, salvaguardar a memória de um mundo que está sendo engolido pelo avanço da civilização.

O ritmo dado por Rubem ao conto tende a fazer com que leitor infira que tudo se perde no sentido quando encontra-se na cidade.

“A cidade não é aquilo que se vê no pão de açúcar” é uma frase emblemática do conto. Quando o autor escreve isso, mostra aquilo que se espalha por todo o texto: não serão retratadas as representações congeladas e harmoniosas da cidade, elas não serão vistas como verdades.

Sendo assim, a miséria do povo e os problemas com o passado contestam a versão do pão de açúcar. 

Até a natureza que corrobora com a vista superficial e reducionista dos problemas no conto aparece descartada e pejorativa, com problemas. A paisagem “não aparece como possibilidade de aprender o olhar a cidade”, de acordo com Sergio Mota.

Conflito entre o passado e o presente

A cidade moderna nasce sob o signo da ilegibilidade e da transitoriedade. Quase nada do passado continuou ou continua. Aquilo que sobreviveu, já não tem mais a personalidade de outrora. 

O aspecto físico da cidade vive tensões e fragmentações com o sentimento de pertencimento ao espaço urbano, já que está em constante mudança, sem a permanência de algo que se possa apelar a uma identificação. E, dentro disso, Augusto experiencia um limbo entre o presente e o passado.

Nesse processo, ele busca compreender os signos do apagamento do que uma vez foi e agora não é nada mais do que lembrança. O conto é uma “sucessão de vacuidades com pulsivo memorialismo”, complementa Mota. Há uma crescente desimportância da memória, uma característica marcante dos nossos tempos.

A ausência assimilada do personagem se dá após os sucessivos embates e derrotas que trava com o avanço do mundo, que não pode ser contido e refreado por um homem, menos ainda pela subjetividade da Literatura. O que ficou de fora do retrato, ele traz. Augusto escreve molduras.

E os lugares que são mostrados no conto e que Augusto tenta guardar [o passado] num livro, são pontos não de referência, mas que faziam referência. Locais que já não existem mais, que tiveram a memória violada pela construção de novos espaços. É a presença de uma ausência. 

A cidade grande e os resíduos

“A cidade grande produz muito excremento”. Ainda que quem tenha falado isso tenha sido um personagem que trabalha na Companhia Águas e Esgotos, fica nítido, no resto do conto, que os excrementos são as pessoas. 

A cidade, produtora de muito lixo, muito excremento, cria o ser humano dispensado: a minoria. As pessoas que são vistas como um dos problemas da grande cidade, da cidade nova, da modernidade. E pode-se idealizar que elas representam um problema ao avanço porque elas próprias carregam no corpo e na condição social questões referentes ao passado. 

Esses são alguns dos resíduos utópicos, aquilo que sobrou do sonho de ordenar a metrópole. Esses personagens são a cidade e a constituem de forma lateral, unívoca – como se os marginais, ladrões, camelôs, prostitutas, crianças de rua, mendigos fossem apenas um. No conto, Augusto os observa. 

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Rubem Fonseca, autor do conto A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro – foto: Reprodução

A questão da visibilidade

Na história, não há invisibilidade, há visibilidade de toda essa gente. Augusto, ao contrário do resto da civilização e da progressão das cidades, não as segrega, mas sim, torna-as visíveis e tenta reconciliar as duas partes da cidade. 

É possível constatar que as ruas são perecíveis como os homens, o que escrevemos em cima da cidade não se acumula com o que o futuro vem a redigir.

Somos rabiscos. A água da chuva nós leva aos bueiros, só que tem gente — os invisíveis — que sempre estiveram lá. 

Existe uma visão contraditória do progresso que é discutida no texto: de que adianta o novo se, ao contrário do que se tem no senso comum, ele não usa das experiências do passado? A novidade engole o que já passou, se alimenta, mas não a usa como base.

A cidade é um texto, um livro e o Centro do Rio de Janeiro é o primeiro capítulo da história não por acaso, mas porque ele é o lugar que mais se relaciona com o passado.

O filósofo Nelson Brissac Peixoto destaca que a cidade sem rastros nem história é marcada pela remodelação do espaço, a qual também não respeita a memória. 

Progresso: avanço ou retrocesso?

Sendo assim, é nisso que se deve pensar: que o progresso lida mal com a memória, pois busca o avanço do espaço, da modernidade. É como se dissesse que o futuro se faz com tecnologia e não com “museus” — representações físicas do passado.

A cidade ideal deixou de existir e vive na pós-utopia do progresso e Augusto se pergunta o que é que restou de bom, já que o ruim se vive a todo instante.

A que custo o progresso se desenvolveu? Na criação de uma classe que abarca grande parte da população e que, em linhas gerais, não existe. Assim, são apenas números, estatísticas e por aí vai.

Augusto diz que vai ensinar as prostitutas a ler, ou seja, ensinar as pessoas invisíveis a ver a importância do viver na cidade. E não só isso, ele quer demonstrar aos não vistos a se colocarem como objetos a serem vistos. 

Mas cena e obscena, por mais que coexistam, representam partes fragmentadas de uma cidade em retalhos. São povos que se comunicam, mas não se dão por discrepâncias de estilo de vida, ideologias e, principalmente, por explorações — um lado submetido e o outro, impositor. 

Contudo, ainda que haja este maniqueísmo muito atrelado a uma luta de classes velada, Augusto tenta costurar os retalhos distantes. O sonho do escritor-personagem é unir aquilo que por ação do tempo, da população e do próprio ambiente se rasgou.

Como resgatar a memória?

O método de Augusto usa e aplica uma sobrevivência pela memória, “uma ausência assimilada que se ressemantizou” (Mota). A perspectiva do personagem não é distante e imparcial; pelo contrário, ele vê as coisas de perto, vivenciando-as. A visão de Augusto é colada aos fatos, por isso ele vê a particularidade da cidade e o desenraizamento dela.

Diria que escrevi para reter uma memória, para guardar aquilo que, mesmo desaparecendo, permaneça a existir.

Ainda que tenha um viés nostálgico e distópico, com uma visão um tanto quanto idealizada do passado, isso começa a cair por terra quando o personagem, nas concomitantes tentativas de escrever o Rio, vai se desiludindo com a possibilidade de colocar uma cidade no livro.

Pior, uma cidade que nem ela própria se reconhece como aquilo que Augusto busca. Na cidade, etimologia cai por terra, todos estão no mesmo lugar e visíveis. Augusto usa disso para reconciliar as duas partes.

O conto escancara a violência da invisibilidade e da discriminação ao tentar reverter este estado pela tentativa de tornar visível os personagens marginais.

Eles não são invisíveis no livro, são matérias-primas, porque cobraram a própria existência e Augusto os notou, teve olhos para ver.

O texto termina com nostalgia e desilusão pós-utópica e vence a violência da exclusão, a violência que destrói o passado.Projeto nostálgico vive uma desilusão pós-utópica.

O final é desta forma: a frustração da ideia dele, a exclusão permanece, os miseráveis sofrem. É uma luta contra a destruição da memória da cidade que fracassa. Não há texto que reverta isso.

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Por Gustavo Magalhães – Fala! PUC RIO

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