O livro Ponciá Vicêncio reflete o mundo dos segregados com naturalidade e um linguajar que faz o livro fluir. A autora Conceição Evaristo explora, na narrativa, as perdas dos personagens, uma redução progressiva do pouco que eles já tinham. Portanto, uma boa perspectiva para lançar sobre o livro é a da falta.
Enredo
A tudo no livro pode se atribuir uma ausência: à personagem principal, a falta da família, da comida, do café, dela própria; aos integrantes da família, dos sonhos e da perspectiva de estabilidade próxima; ao romance em si, faltam descrições, informações e capítulos. Tudo ali dentro demonstra e sente falta de alguma coisa, enfim.
A literatura vigilante de Conceição Evaristo é transgressiva e vai de encontro à literatura canônica ao mostrar o que aqueles que sofrem por mais tempo passam no cotidiano.
A mídia não retrata a vida dos negros, pobres, imigrantes dentro dos próprios territórios. E assim é. Minha avó e minha bisa são Ponciás. Falta algo nelas também, coisas que eu nunca soube mensurar.
A vida traçada da personagem principal perpassa a vida de milhões, sem deixar de ser única e muito atrelada às questões da trama que, ao mesmo tempo, figura como individual e coletiva. Uma falta do tamanho de um país.
A imaginação, outra linha possível para compreender ou ressignificar o livro, é a linha que conduz a construção narrativa. Além disso, Conceição traz uma temática histórico-social que explora as perdas do personagem, como já foi exposto.
Porém, vale ressaltar, Ponciá Vicêncio vive mais ausências, como a do pai, que partiu sem mais voltar, a do avô, que a deu a herança da memória.
Ainda sente falta do amor do marido, o qual se desencantou com a personagem. Além disso, também vive a ausência do irmão e da mãe.
Principalmente, vive a falta de si, já que não se reconhece mais como pessoa, sente falta dos tempos áureos. Porém, quando se lembra deles, sente repulsa e trata de esquecer-lembrar. “São abalos emocionais de profundas ausências sucessivas”, de acordo com Sergio Mota.
O resgate do passado e o presente
As frases repetidas relatam personagens repartidos em um ciclo vicioso-já-sóbrio que mostra o que vem depois das desilusões, desgraças e desencantos.
É como se tudo de ruim já estivesse passado, então, o livro todo se passa depois do erro da utopia, quando todos estão largados para si, principalmente à margem da sociedade – negros, pobres. E a memória aparece como mote do que não se constrói ali dentro: a paz.
Em uma busca incessante por encontrar o que deu errado, o que deve ser revertido, personagens mais revisitam o passado do que andam com as próprias vidas.
Essa narração que realiza um diálogo entre o presente e memória é uma estagnação ligada ao ponteiro do relógio. As histórias orbitam Ponciá, que é um astro que jaz em morte lenta e sem reversão.
E não há como negar que a história da personagem de Conceição está presa à herança do avô que não só deu o nome – pertencente ao dono do escravo Vô Vicêncio -, como também implantou a desesperança e a subserviência à família.
Contudo, na revolta contra o próprio dono, acrescentou um ponto à maldição: a afavilidade da revolta não concluída. Quando se revoltou e fracassou, adicionou à família um espírito morto de revolta, o que faz a principal herdeira, Ponciá, rir e chorar ao fim do livro.
A herança do avô também pode ser um resgate com o passado e com a ancestralidade, que a ajudam em um autoconhecimento de acessar lembranças que reverberam por toda a linha esticada da história dela.
O presente do avô transpassa toda a história e corrói a personalidade em frangalhos de Ponciá. É como um veneno. Uma engrenagem que, por mais que tenha sido dada e representa um mecanismo a mais, estava quebrada desde a gênese.
O livro não precisa de muitas descrições para demonstrar o que está acontecendo ali, na vida dos que estão à margem. Tanto é que é um livro de cento e poucas páginas que se aglutina à alma para toda uma vida.
Conclusão
Mas quem dera se as violências psicológicas, físicas e verbais fossem as únicas que permeiam a vida da personagem. Não são só os elementos narrativos que transformam Ponciá Vicêncio em um relato cru do mundo. Essas constatações de violências físicas são imediatas e simples de serem realizadas.
Mas existem outras violações da existência, como: o trabalho servil; o transporte público ineficiente, ainda mais em lugares nas margens do mundo; a falta de acesso à cultura e a tudo.
É o que torna o livro não em uma escrita de ficção, mas como um retrato do mundo. São as agressões diárias que são comuns na vida de muita gente, de gente que não é vista na televisão sem ser em notícias de violência, de gente que não vai ao teatro, de gente que não está nos livros.
Conceição Evaristo se presta a botar em evidência uma mulher negra humana, sofrida e ainda resistente, mais por vontade de ver o passado do que de construir um futuro utópico.
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Por Gustavo Magalhães – Fala! PUC RIO