Estudantes universitários do ensino superior de universidades públicas que precisam trabalhar durante a pandemia relatam as dificuldades que estão enfrentando nessa dupla jornada
Ter que realizar qualquer tipo de atividade presencial durante o atual momento de pandemia, além de ser muito perigoso por conta da exposição ao vírus da Covid-19, tem se mostrado desgastante, e isso fica ainda mais evidente quando se trata de conciliar estudos e trabalho. Essa é a realidade dos universitários que precisam contribuir na renda familiar ou, até mesmo, se manter e, por isso, precisam trabalhar. Apesar de muitos estudantes já precisarem ter que enfrentar essa dupla jornada antes da quarentena, ter que se adaptar ao ensino remoto durante um momento de crise sanitária mostrou-se desafiador.
Segundo estudo do IDados a partir da pesquisa do Pnad Contínua, do IBGE, realizada no segundo trimestre de 2019, 2,6 milhões de estudantes do ensino superior do Brasil também trabalhavam, isso equivale a 48,3% dos universitários. Isso significa que 2,6 milhões de estudantes com essa dupla jornada precisam enfrentar desgaste físico, mental e acúmulo excessivo de tarefas.
Dificuldades de universitários que trabalham e estudam
A assistente social Rosamaria Nascimento, integrante da Divisão de Apoio ao Estudante da Universidade Federal do Rio de Janeiro (DAE/UFRJ), conta que já lidava com esses estudantes antes da pandemia e relata as principais dificuldades vividas por essas pessoas no atual cenário. De acordo com ela, parte desses universitários precisam trabalhar porque, muitas vezes, são responsáveis até mesmo pelo sustento da casa e, ainda que recebam alguma bolsa de natureza acadêmica, os valores são insuficientes, porque as bolsas são auxílios e o valor não cobre todas as despesas.
Ela destaca que “a própria família não incentiva ou não vê com bons olhos o fato dele entrar na universidade porque prejudica o próprio sustento, a subsistência e, se ele deixar de trabalhar, é menos um que trabalha”. Um formulário enviado pela equipe em que ela atua, que mapeou 342 estudantes trabalhadores, ilustra bem essa realidade: 51% das pessoas que responderam afirmaram ser o principal provedor da sua família.
Comparando com o rendimento dos alunos que se dedicam somente aos estudos, os universitários que precisam trabalhar têm um aproveitamento acadêmico consideravelmente menor. A especialista destaca que “o estudante-trabalhador não tem tempo para ter uma vivência acadêmica mais completa, causando um impacto muito grande no aprendizado. Ele dificilmente terá tempo para participar de seminários fora do horário do curso, atividades extracurriculares e, até mesmo, para conciliar com o estágio obrigatório, podendo até atrasar a formação”.
O cenário durante a pandemia da Covid-19
A estudante de pedagogia da Faeterj Sttela Souza, de 19 anos, que concilia a faculdade com seu trabalho em uma empresa de exportação de couro, exemplifica. Ela trabalha de segunda à sexta-feira, das 8h às 17h, e suas aulas ao vivo acontecem das 18h30 às 22h. Com uma rotina tão corrida, mal sobra tempo para os trabalhos que devem ser feitos fora do horário de aula: “o tempo que eu tinha pra fazer trabalho da faculdade, estou trabalhando. Quando tem atividades, eu sempre as deixo por último porque, querendo ou não, o trabalho é minha base, minha obrigação em primeiro lugar. Trabalho da faculdade, o que der, eu vou enviando”, relata.
Apesar do cenário pandêmico, Sttela conta que, se não fosse pelo ensino remoto, ela já teria desistido da faculdade. Ela não foi a única que relatou ter, de certa forma, se beneficiado com o ensino remoto. Rafaela Franklin, de 21 anos, trabalha na padaria da família para ajudá-los a economizar na hora de pagar outro funcionário, pois tiveram uma queda nas vendas durante a pandemia. Ela cursa enfermagem em horário integral na UFRJ e também relata que só consegue trabalhar porque as aulas estão acontecendo de maneira on-line:
Seria impossível conciliar trabalho e estudo na minha realidade. Eu acho que essa pandemia, esse ensino remoto ajudou para que eu consiga trabalhar, porque, presencialmente, eu acho que não seria possível. Mesmo querendo, precisando, não seria uma opção.
Desgaste físico e emocional
Mas esse parece ser um dos únicos benefícios do ensino remoto para essas pessoas. A estudante de enfermagem explica que seu psicológico, que já estava afetado durante o ensino presencial por conta da carga horária nos estudos, foi ainda mais prejudicado no ensino remoto. De acordo com a Agência Brasil, uma pesquisa da UFRGS indica que 80% da população brasileira ficou mais ansiosa durante a pandemia da Covid-19. A dupla jornada enfrentada pelos estudantes trabalhadores mostra-se além de desgastante fisicamente, muito cansativa mentalmente.
Rômulo Alberto, de 24 anos, estudante de Comunicação Social da UFRJ, que atualmente está estagiando, é freelancer como social media e atua também como fotógrafo de forma autônoma, mencionou como esse acúmulo de funções tem sido cansativo e prejudicial. Ele explica que, por ter que trabalhar usando a criatividade, muitas vezes, tem bloqueio mental por conta do cansaço, “tem dias que a gente trava”, diz. A sua produtividade nos estudos também é afetada: “É difícil criar. É difícil se disponibilizar ao seu serviço quando sua mente está cansada e é difícil se disponibilizar aos estudos quando sua mente está cansada de tanto criar”.
A assistente social da UFRJ reitera sobre a cobrança excessiva por conta da falta dos momentos de descanso, já que os horários de lazer acabam se perdendo por conta da sensação de ter que dar conta de tudo, e justamente por não ter o momento de descanso, essas pessoas não conseguem dar conta e isso impacta diretamente a saúde mental.
Ensino remoto sob o ponto de vista dos universitários
O ensino remoto por si só já é um desafio na vida dos estudantes, visto que exige muito mais disciplina e concentração em detrimento do ensino presencial. Os três universitários apontaram a questão de conciliar o tempo como a principal dificuldade que estão enfrentando nessa rotina de trabalho e estudos, porque, além da carga horária de trabalho excedente e aulas ao vivo ocuparem parte do dia, eles ainda precisam encontrar tempo para dedicar-se aos trabalhos acadêmicos, realização de provas e afazeres pessoais.
O estudante de comunicação afirma que, durante a pandemia, não tem tempo para cuidar da sua saúde e até seus horários de alimentação ficaram desregulados: “eu dou prioridade ao que tem que ser feito logo, depois eu almoço”, declarou lembrando que também não separa um tempo para atividades físicas. “Geralmente, a pessoa que faz exercício físico tem seu tempo para isso. Eu engordei na pandemia! Nem tempo para comer direitinho, nem para fazer atividades (físicas) eu tenho, porque as obrigações acabam chamando para uma responsabilidade maior e você acaba não conseguindo conciliar tudo isso”, completou.
Mas, além do tempo, a relação professor-aluno também tem grande influência na vida acadêmica e profissional dessas pessoas. O posicionamento dos professores impacta diretamente a produtividade dos alunos: enquanto a estudante de pedagogia da Faeterj afirmou que os professores são menos exigentes na atribuição de tarefas por entenderem a situação atual, os dois alunos da UFRJ mostram que sentem falta dessa flexibilidade. Rafaela afirma que “se eles fossem mais conscientes com isso, de que as pessoas estão passando por um momento difícil, um momento em que tem gente que precisa, às vezes, trabalhar ou cuidar de familiares” ajudariam bastante os estudantes que enfrentam essa dupla jornada.
Os universitários pontuaram também o excesso de tarefas e a falta de compreensão dos professores: “Mandam 50 trabalhos e a gente que se vire. Às vezes, passam do tempo da aula e a gente tem que se virar, não estão nem aí se você vai ter que trabalhar mais tarde, ‘não importa, dá teu jeito’. Então, a compreensão deles, eu acho que ajudaria muito”, declarou a estudante de enfermagem. A assistente social Rosamaria dá ênfase ao fato que “todos sabem que o estudante trabalhador está lá, mas a própria forma como está estruturado o ensino não o abarca, por isso as dificuldades”.
Permanência no ensino superior
A permanência desses estudantes no ensino superior é o grande desafio. Apesar da existência de bolsas de natureza acadêmica oferecidas por algumas universidades públicas, elas são limitadas e, muitas vezes, não são suficientes para que o aluno se mantenha na faculdade. O formulário enviado pelo DAE, citado anteriormente, mostrou que 96% dos respondentes não recebem auxílio da UFRJ.
A assistente social Rosamaria lamenta que a ampliação do acesso ao ensino superior não seja acompanhada de políticas de permanência eficazes: “Eu acho que a criação da política de permanência é o grande desafio da educação superior agora. A gente teve um avanço muito grande que foi a ampliação do acesso. Sem isso, a gente não teria a quantidade de estudantes com esse perfil, das camadas menos favorecidas na universidade, mas, apesar da ampliação do acesso, a permanência é um grande desafio”.
Ela lembra que as políticas de permanência aos universitários existem, mas com uma limitação de recursos. Sttela não conseguiu se inscrever nos programas de auxílio da sua universidade, segundo ela, por conta da falta de informação da instituição. Por isso, ela diz que, com a volta das aulas presenciais, terá que trancar a matrícula: “minha faculdade é 100% presencial, na região onde eu moro é a única de pedagogia. Agora estou morando e trabalhando mais afastado da faculdade. Para eu sair do serviço às 17h e chegar na faculdade às 18h30, eu tentaria optar por uma faculdade a distância”.
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Por Milena Gabriela e Yasmin Oliveira – Fala! UFRJ