Como o sistema de transporte público na Zona Oeste, com destaque para disponibilidade das linhas de ônibus, é atingido pela desigualdade social presente no Rio de Janeiro.
Linhas fantasmas. Longo tempo de espera nos pontos. Veículos quebrados e sujos. Essa é a rotina enfrentada pelos moradores da região de Santa Cruz.
As reclamações se repetem a cada ano e parecem piorar com o passar do tempo. Nossa equipe visitou o bairro e conversou com alguns usuários das linhas urbanas e também do corredor Transoeste, do consórcio BRT.
VAMOS A PÉ – MOBILIDADE URBANA EM SÃO PAULO
Eu vejo as pessoas esperarem por muito tempo os ônibus aqui. Por exemplo, 813 (Manguariba — circular) já não tem mais ônibus na linha. Só van. O ônibus 858 (São Fernando — Paciência) leva muito tempo. Quer dizer, todos eles. Isso é quando o motorista também para, né. Às vezes eles passam lá no canto direto e não param. As pessoas de idade, além de não poderem pegar os ônibus, não conseguem pegar as vans pois elas não aceitam a gratuidade. Dá pena. Além disso, as crianças com deficiência também sofrem com isso. Todos são desrespeitados. Tem muito tempo que não vejo fiscalização da prefeitura aqui. Santa Cruz é a Deus dará. Aqui não tem organização, ninguém liga pra nada. É um descaso, as pessoas fazem o que querem.
Janaina Barbosa, de 27 anos, comentou sobre seu cotidiano de espera da linha de ônibus que utiliza todos os dias no trajeto de casa para o trabalho.
Estou há 40 minutos esperando o ônibus. Normalmente demora uma hora e meia quando é aqui. Quando pego do outro lado da via, demora quase três horas. Toda essa espera para um ônibus com condição precária, sem ar, todo quebrado, banco solto. A gente paga e tem os nossos direitos mas, não são respeitados.
Conclui Janaina.
O estudante de jornalismo da UFRJ, Leonardo Nogueira, de 20 anos, vive um pouco das duas realidades: mora em Santa Cruz, estuda no bairro de Botafogo, na Zona Sul carioca, e nota as diferenças gritantes entre as duas áreas da cidade como relatou à nossa equipe.
Quando eu penso em oferta de ônibus, automaticamente penso em linhas que ligam Santa Cruz aos principais pontos da cidade ou que me levem a lugares estratégicos, onde eu possa pegar outras meios de transporte para chegar nesses locais. De antemão, não existem linhas que ligam o bairro ao centro da cidade, fazendo com que pessoas que precisam chegar nesse locais tenham que pegar mais de um transporte. Pensando nessas linhas, afirmo que os automóveis são super sucateados e precários. Portas caindo, sempre lotados e sem ventilação necessária. Todos esses aspectos fazem com que a viagem demore o dobro do tempo esperado, pois os automóveis não desenvolvem como deveriam. Quando vou de ônibus, para chegar à faculdade pego no mínimo quatro automóveis. Os três que me fazem chegar até o centro do Rio são de baixa qualidade. Sempre cheios, sujos e sem ventilação. Geralmente pego muito trânsito na Avenida Brasil, o que dificulta tudo. Chegando ao centro da cidade, pego um bem melhor que liga a Central do Brasil a Zona Sul. Ar condicionado, passa de dez em dez minutos e limpo. Fazendo esse trajeto, levo no mínimo três horas para ir e depois também para voltar. Tendo a possibilidade de também pegar o trem, a situação fica um pouco mais tranquila, tomo três conduções ( Dois ônibus e um trem). Fazendo com que a viagem dure meia hora a menos e no trem eu tenha um pouco mais de conforto quanto à estrutura do transporte, mas sempre cheio iguais aos outros.
Explica Leonardo.
O que dizem os especialistas
Em entrevista exclusiva com o professor da COPPE/UFRJ, Matheus Souza, graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Minas Gerais, mestre em Engenharia de Transportes pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutor em Sistemas de Transporte pelo Doctoral Program in Transport System — MIT Portugal pela Universidade Técnica de Lisboa, buscamos o limiar desse problema.
Como economista e levando em consideração uma base histórica, Souza explica que é necessário analisar a gênese do Rio de Janeiro. Ela começa no Centro da cidade e se desdobra a partir desse ponto, da mesma forma, a rede de transporte. Essa assume um caráter muito relativo ao crescimento do espaço da população e ao espraiamento dessa população no espaço físico da cidade.
A teia de transporte segue e nasce no Centro. Ou seja, as economias de aglomeração levam as pessoas para o Centro na mesma medida em que as economias de desaglomeração começam a levar as pessoas para longe desse Centro.
Seja porque é caro morar nesta localidade, por lotação de moradores, busca por tranquilidade ou melhores condições de vida fora dessa área. É preciso entender que, para que ocorra esse espraiamento ordenado e homogêneo, ou seja, o crescimento horizontal das cidades, é importante pensar a capacidade de infraestrutura dessas cidades, para que ela ocorra de forma concêntrica
No caso do Rio de Janeiro, a infraestrutura é pouca e escassa, financeiramente limitada. Então ela cresce em corredores limitados, priorizando as áreas mais nobres. Esse é o caso da Zona Sul, onde se tem mais infraestrutura. Foi nesta área que começou o eixo de saneamento básico, parques, saúde e transporte.
O metrô, por exemplo, segue nessa direção. Com o financiamento limitado, e basicamente concentrado nessa área, os moradores com maior renda vão se aglomerar nesse mesmo corredor. E a partir disso outros serviços criam esse efeito vicioso de desigualdade.
A escassez de financiamento é o principal fator para que a Zona Sul tenha mais oferta de transporte que a Zona Oeste. E essa escassez tem impacto sobre o desenvolvimento das estruturas básicas da cidade, como o serviço de ônibus.
Transporte é um serviço público por definição da Constituição Federal de 1988, e ser um serviço público significa ser relevante para o desenvolvimento econômico e social da cidade.
O que ocorre com a queda da disponibilidade de ônibus é a prejudicação das camadas mais distantes do Centro, ou seja, dos que estão afastados dos postos de trabalho, dos serviços de saúde e de educação da cidade.
Isto é, continua a manutenção do processo de exclusão social dessas pessoas. Além disso, a economia da cidade é dificultada, devido ao impedimento do acesso à mão de obra e encarecimento dos serviços.
Quem sofre as consequências desse processo de “racionalização” são os passageiros, que pagam preços altíssimos de tarifas para condições péssimas nos modais. O professor Vinicius Fernandes, doutor em planejamento urbano, também entrevistado, comentou sobre a situação que a população enfrenta.
O Estado não força a diminuição dos preços e das tarifas, muito pelo contrário, as tarifas estão sempre em tendência de aumento e isso vai incidir diretamente na qualidade de vida do trabalhador. O trabalhador está pagando para trabalhar, está pagando para viver e cada vez mais o resultado disso é um empobrecimento da vida material, o esgotamento físico e do tempo das pessoas. Elas estão cada vez mais esgotadas e com menos tempo para viver em nome da dificuldade dos transportes.
Relata Fernandes.
As autoridades não têm visado resolver esses problemas efetivamente nos últimos anos, e melhorar essas condições. Por exemplo, a expansão da linha do metrô para a Barra da Tijuca obedeceu não a critérios específicos de demanda da classe trabalhadora, mas sim de interesses do setor da construção civil ligados aos grandes eventos esportivos e a especulação imobiliária nesta área e em suas adjacências.
Esse é um sintoma das relações de desigualdade que se expressam no sistema de mobilidade urbana do Rio de Janeiro, aponta Vinícius.
CICLOVIAS: UMA ALTERNATIVA PARA O TRÂNSITO
Problema nacional
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou em outubro uma pesquisa que revelou que os gastos dos brasileiros com transportes superou as despesas com alimentação em casa e na rua. A maior parte desses gastos, cerca de 39%, existe por conta da aquisição de automóveis particulares.
Apesar desses números, o estudo revela que os problemas com o transporte público influenciam no uso cada vez menor de linhas urbanas de ônibus, trem, metrô e outros modais. No Brasil o transporte privado é priorizado frente ao transporte público.
Cenário carioca
Em 2018 o instituto Expert Market, dos Estados Unidos, divulgou uma pesquisa sobre a qualidade do transporte público realizada em 74 cidades em todo o mundo. A cidade do Rio de Janeiro ficou com a última posição entre as capitais mundiais.
Desde a divulgação da pesquisa o cenário na capital fluminense não melhorou, mais empresas de ônibus fecharam, mais linhas deixaram de ter operação regular e as distâncias aumentaram com a diminuição da oferta de transporte. O bairro de Santa Cruz e seus sub bairros têm a pior qualidade no transporte coletivo em todo o Rio de Janeiro.
Desde a licitação das linhas de ônibus que foi realizada em 2010 e que dividiu as diferentes zonas da cidade em consórcios, 14 empresas de ônibus faliram.
Nos últimos cinco anos, cinco empresas que atuavam na região da Zona Oeste encerraram suas atividades. As viações Algarve, Rio Rotas, Bangu, Santa Sofia e Andorinha deixaram de operar um grande número de linhas, que voltaram a circular depois da elaboração de planos de contingência.
Apesar das medidas tomadas, nem todas as ligações foram restabelecidas. A insegurança nos trajetos e a baixa lucratividade fizeram com que milhares de passageiros ficassem sem ônibus, recorrendo por fim ao transporte clandestino, quando essa é uma alternativa possível.
Procurada, a Secretaria Municipal de Transportes enviou a seguinte nota sobre as condições dos modais:
A Secretaria Municipal de Transportes mantém monitoramento permanente das linhas de ônibus e realiza ações de fiscalização frequentes a fim de verificar as condições da frota operante, bem como a frequência das linhas e demais obrigações contratuais por parte dos consórcios. Se irregularidades forem flagradas, o consórcio responsável é autuado. Somente na atual gestão, mais de 7 mil multas foram aplicadas por diferentes irregularidades, principalmente por inoperância de linhas/circulação com frota abaixo do determinado e má conservação, que inclui mau funcionamento do ar condicionado, bancos rasgados, para-brisas trincado e pneus sem frisos.
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Por Leonardo Martins e Petra Sobral – Fala! UFRJ