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Não abençoada, não magicamente favorecida – Um relato sobre privilégios

A mídia de massas é o espelho em que nos reconhecemos como parte de um todo. É ela que disponibiliza diversos parâmetros e estimula contato com pessoas, e culturas, que jamais imaginaríamos conhecer. O fato de me enxergar como pertencente nessas materialidades facilita o meu processo de socialização e me enquadra dentro de um padrão socialmente delimitado.

Ser branca me possibilitou falar em situações que não demandavam a minha voz. Ser uma mulher branca fez com que me enxergassem como mais bonita, e ser magra ainda foi um acréscimo sobre o valor que as pessoas me concediam. Sei que minha confiança e minha autoestima correspondem, em parte, à leitura que foi feita sobre mim com o passar dos anos, e eu não estaria neste lugar sem todos os privilégios que assentaram os meus degraus. Mas ser mulher, em um universo patriarcal, me fez caminhar descalça, e me trouxe feridas, fincadas pela diferenciação que sempre senti perante os homens que estavam por perto.

É ingrato não reconhecer que antes de mim existiu uma história, que fundamentou a minha existência e de muitas outras companheiras. É frustrante observar o quanto, dia após dia, as pessoas tentam calar essas diferenças supondo que elas não existem. Sempre foi complicado que reconhecessem o meu valor enquanto um indivíduo pensante, como uma pessoa que deseja, que possui raiva, que muda; um alguém rodeado de impulso, capacidade, dor e resiliência. Ser a bela, submissa, volátil e sensitiva, disposta ao agrado e ao carinho foram moldes que, por vezes, cortaram as minhas arestas e me retiravam de ambientes aos quais eu merecia, como pessoa, pertencer.

Eu acho graça da maneira como o capitalismo se apossou do movimento feminista para torná-lo comercial, mas eu não deveria. Esses dias, eu assisti a um filme na Netflix em que garotos criaram um aplicativo de romance com o intuito de não lidarem com as reações “exageradas” das mulheres após um encontro casual. O filme retrata todas elas como ingênuas e estúpidas, que só foram salvas no final – acreditem ou não – por um cara. Por Deus, eu fiquei tão indignada. Foram os noventa minutos mais mal gastos da minha existência e eu nem sei o motivo que ainda me faz procurar filmes adolescentes bons ou, no mínimo, aceitáveis.

É sempre a estúpida, loira e duvidosa garota sendo sustentada, defendida ou socorrida por um cara. Em outras produções, mulheres servem apenas para elevar as condições de um homem, trazendo para ele descobertas incríveis e revolucionárias, enquanto a sua própria personalidade poderia ser a mesma do que a de uma batata. Nunca somos protagonistas fortes e donas de si, a não ser quando estamos superando um término com um cara extremamente babaca, porque, realmente, precisamos passar por isso para nos afirmar como válidas e poderosas.

 Quando paro para pensar no quão sexista isso tudo é, ainda me vem na mente a falta de representações sobre outros grupos marginalizados, muitas vezes substituídas por estereótipos fabricados. Personagens negros e LGBTS, quando existem, são secundárias. O homem negro bandido, a amiga lésbica, a cozinheira mãezona negra, a bissexual porra-louca que propõe as melhores saídas e o garoto gay super estiloso, que é apaixonado pela Madonna e sabe todas as músicas do “The Fame Monster”, da Lady Gaga.

Acho que esses exemplos são elucidativos sobre o como a mídia de massas influencia na construção das diferentes identidades que circundam o nosso cotidiano, e ainda mais esclarecedores sobre como esses mesmos veículos perpetuam um modelo ultrapassado de representação política e social. Mesmo que novos símbolos estejam adentrando aos projetos cinematográficos, à literatura e em alguns outros meios, ainda são insuficientes, considerando a proporção que essas pessoas representam coletivamente.

Por fim, mesmo sendo uma mulher, ainda sou branca e tenho um poder aquisitivo muito superior a grande porcentagem da população. Estudei em escolas particulares durante todo o período anterior ao meu ensino médio, e só então pude sentir o gosto das faltas de verba, da distância e do sucateamento. Fui aluna da FAETEC, atual técnica em edificações. Não era lá muito amante dos conteúdos, mas me apaixonei por essa instituição que tanto me acolheu. Em casa, tive acesso direto à informação durante minha vida inteira. Diferentemente de um terço dos domicílios brasileiros, conhecimento sempre esteve diante de mim, a uma tecla de distância, porque não ter internet não era uma questão. Isso é um privilégio.

Meus pais são presentes. Possuem uma relação complicada, mas estão aqui: vivos e participativos. Minha mãe lê todos os meus trabalhos da faculdade e meu pai me leva de carro em quase 100% dos lugares. Fiz cursinho no terceiro ano. Tinha bolsa, mas, mesmo assim, não foi um aperto. Passei para uma ótima escola depois do nono ano, mas devido ao meu histórico, proporcionado pelo que os meus pais podiam pagar e pela constante participação deles na minha história. Fui muito beneficiada em toda a minha vida. Não abençoada, não magicamente favorecida. Eu usufruo da dor dos antepassados que levantaram esse país.

Não sou promíscua, possuo uma ambição que transpõe os céus, e detesto pentear os meus cabelos. Eu sofro com todas essas mazelas imagéticas que assombram a minha realidade, mas, nem de perto, sou a que mais sofre, a que mais sente e a que tem menos oportunidades.

Existem mulheres que sangraram no chão em que eu piso. E ainda sangram. O meu lugar de fala não me permite dizer por elas, e por outros indivíduos, mas me permite reconhecer os meus privilégios como vindos de um tempo muito anterior à nossa pós-modernidade. E que, mesmo assim, ainda é minha responsabilidade confrontá-los, porque eles ainda nos diferenciam enquanto seres humanos; afastam-nos. Ocupando os lugares que eu ocupo, munida de sangue e honra, ainda assim não sou a branca salvadora que deve falar por outras mulheres quando me é conveniente, quando meu racismo estrutural não é colocado a prova.

Admito a presença de referências alternativas muito fortes na minha experiência enquanto uma adolescente de recentes dezoito anos, mas, ainda assim, eu me pego sendo vítima desses arquétipos que, sempre tão presentes, me constituíram. A mídia dos últimos tempos tem aberto as portas para as periferias, para aqueles que transpõem e desmistificam, ou complexificam, o que é o gênero, para mulheres, de diversas origens, credos e classes.

Vozes que reivindicam espaço há tanto tempo agora tem uma pequena centelha de esperança viva. Capacidade, beleza, corpo e sexualidade ainda surgem como questionamentos mesmo que não devessem. É muito difícil se reconhecer como um alguém de muitas cores e afetos, sem cair nas armadilhas autoritárias do mundo pós-moderno, assustadoramente descrito nas entrelinhas da banalidade.

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Ana Flávia Pilar – Fala! UFRJ

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