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Jogue como elas: o futebol feminino pelos olhos de quem participa

A diferença entre a visibilidade do futebol masculino para o feminino é, sem dúvidas, gritante. Mas você já parou para pensar por que isso acontece? Para explicar melhor, contarei resumidamente a árdua história do futebol feminino e, depois, utilizarei trechos de entrevistas feitas com pessoas que estão envolvidas no meio futebolístico.

História do futebol feminino

Fora do Brasil, o primeiro time feminino relatado foi fundado em solo britânico, em 1894, pela Nettie Honeyball, uma ativista dos direitos da mulher. Seu clube, Ladies Football Club, foi responsável por abrir muitas portas para as jovens da época. Entretanto, o marco para o crescimento massivo do esporte feminino na Inglaterra foi a Primeira Guerra Mundial, em que as mulheres foram obrigadas a ir para as fábricas trabalhar, porque os homens foram para a guerra.

Sendo assim, elas foram criando seus clubes em suas fábricas e praticando o esporte mais popular do mundo. Entretanto, essa realidade acabou junto com a guerra, pois a Federação Inglesa de Futebol decidiu banir qualquer prática esportiva feminina dentro dos estádios de futebol, porque, com a volta dos homens, eles não viam sentido das mulheres continuarem praticando o esporte. Isso fez com que elas criassem a Associação Inglesa de Futebol Feminino e jogassem em estádios de Rugby. A inclusão oficial delas aconteceu apenas em 1969, quando foram inclusas nos campeonatos da FA.

Já no país do futebol, segundo o livro Futebol, Carnaval e Capoeira – Entre as gingas do corpo brasileiro, o início do futebol masculino e do feminino foram bem diferentes. Enquanto a elite aderiu ao futebol masculino, o início do futebol feminino foi marcado pela presença das mulheres de classe mais baixa e, por isso, eram consideradas “sem classe, grosseiras e malcheirosas”.

A primeira partida oficial ocorreu em 1921, entre Tremembé e Cantareira, na zona norte de São Paulo. Entretanto, em 1941, a prática da modalidade feminina teve sua primeira proibição pelo governo de Getúlio Vargas, e, em 1965, teve sua segunda proibição, desta vez mais detalhada e rigorosa. O fim da proibição veio apenas em 1979, fazendo com que elas tivessem um enorme atraso em relação à evolução e ao desenvolvimento.

Em relação aos torneios, enquanto o futebol masculino teve sua primeira Copa do Mundo em 1930, as mulheres jogaram este torneio apenas em 1991. Além disso, a primeira participação do futebol masculino nas Olimpíadas foi em 1900, já o feminino, recebeu a oportunidade de entrar no torneio olímpico apenas em 1996. Sendo assim, fica clara a diferença de tratamento dentro do meio futebolístico, mas é importante ressaltar que a popularidade vem crescendo, principalmente depois da copa de 2019.

futebol feminino
Futebol feminino. | Foto: Reprodução.

Estruturas

Para entender melhor sobre as estruturas, é necessário entender que o futebol feminino, no Brasil principalmente, é um esporte em desenvolvimento, logo, obviamente não está no nível do profissional masculino. Entretanto, o técnico das Sereias da Vila, Guilherme Giudice, que já trabalhou tanto com homens quanto com mulheres, explicou a diferença esportiva:

A única diferença que eu vejo é na parte física. Acho ruim comparar, afinal, são gêneros e características corporais diferentes, mas a questão de treino e jogo, a parte técnica, é igual, não vejo diferença de nível. O problema é que as mulheres começam a jogar e já entram no futebol profissional, não passam por todas as categorias de base (sub-13, sub-15, etc.), ou até pelo futebol de rua que alimentou nosso futebol por muito tempo, como os meninos. Então, isso faz com que elas entrem no profissional menos desenvolvidas.  

Mas, para entender melhor o que as meninas passam, é necessário olhar a estrutura dos times. Enquanto os times masculinos têm grandes estruturas para dar-lhes apoio, as meninas sofrem diariamente neste ponto. Logicamente, os grandes times conseguem dar, pelo menos, o mínimo para as atletas, mas os times menores nem sempre proporcionam isso.

A atleta Joane Ribeiro, que viralizou após criar uma vaquinha on-line para conseguir ir para os EUA realizar seu sonho de ser jogadora de futebol, descreveu a situação da estrutura dos times menores:

Eu tive a minha primeira experiência da realidade do futebol feminino quando joguei pelo Joinville. Morei em alojamento e era uma casa em que moravam 10 meninas com uma infraestrutura bem ruim. Eram 3 meninas por quarto e um banheiro para todas, então era muito complicado, porque não forneciam nada para nós. Não tínhamos acompanhamento nutricional nem nada, então, uma vez por mês, o técnico fazia as compras para nós e vivíamos de pão e miojo, uma alimentação bem ruim para atletas. A estrutura era péssima mesmo para as meninas, não tínhamos nem o básico e isso me frustrou muito, até desisti de jogar bola no Brasil por isso.

Em relação aos times maiores, a Annaysa, jogadora do Flamengo, contou sobre a estrutura de seu time: “A estrutura do Flamengo é muito boa, temos uma parceria com a Marinha e ela fornece tudo para nós. O que o Flamengo fornece para as atletas é muito bom e tenho certeza de que vai melhorar cada vez mais”.

Ela também explicou sobre a diferença para a Europa: “A estrutura do Benfica é absurda, comparável com uma profissional aqui, do Brasil. Acredito que seja melhor que de alguns times masculinos daqui. A verdade é que acho até injusto comparar a estrutura da Europa com a do Brasil, porque as pessoas têm outra mentalidade, lá o futebol feminino é muito mais valorizado e tem muito mais patrocinadores”.

Ao conversar com elas, questionei-me sobre a estrutura dos Estados Unidos e, nesse ponto, a Lara Gomes, que já jogou lá, pôde explicar sobre a parte escolar e universitária: “Eu percebi a eficiência da estrutura já na escola. No high school, tínhamos tudo que um clube profissional fornece como: fisioterapia com médicos formados, alimentação, transporte e coisas do tipo. Além disso, os equipamentos de treino eram impecáveis. Em relação ao pós-high school, você podia seguir duas vertentes: ou buscar um clube profissional, ou entrar em um clube para buscar uma bolsa universitária. Eu escolhi tentar a bolsa e, no clube em que estava, era tudo impecável, consigo comparar com a estrutura de um time masculino profissional. Não faltava nada e o clube tinha até um CT enorme! Mas o que reparei de diferente é que o clube não tinha um centro de fisioterapia como a escola, então, se acontecesse alguma coisa, precisávamos ir por nossa conta ao hospital”.

Já em relação a clubes profissionais, a Roberta Martire, que estagiou no Orlando City, esclareceu isso: “A estrutura do Orlando era impecável, proporcionava tudo para as atletas. O CT é o mesmo que o do masculino, então fica claro que não tem muita diferença da estrutura masculina para a feminina. A coisa que mais se destaca na diferenciação é o dinheiro, afinal, o futebol masculino é bem mais rico”.

Vendo esse cenário, fica claro o porquê de mulheres guerreiras como Joana buscarem oportunidades de iniciar sua carreira no exterior, afinal, se elas não podem ter o mínimo aqui, no Brasil, por que não se desdobrar para ter uma vida “digna” nos Estados Unidos ou na Europa?

Jornalismo esportivo

A questão é que as mulheres não sofrem apenas no futebol em si, o preconceito existe em todas as áreas ligadas ao esporte. A prova disso é o relato de Fernanda Martinelli, jornalista esportiva da ESPN:

“Quando eu fiz o processo seletivo da ESPN, ainda estava na faculdade e todos da minha sala se candidataram, lá eu já senti como seria o clima. Quando começaram a chamar para as entrevistas finais, alguém descobriu que eu tinha sido selecionada, e aí começou aquela coisa de: ‘Ah, a Fernanda foi chamada e eu não? Com certeza conhece ou ficou com alguém. Foi escolhida porque é mais um rostinho bonito para a redação’. Naquele momento já senti como seria viver no mundo esportivo, foi tipo um cartão de ‘boas-vindas’.”.

Preconceito

Todas as meninas com quem conversei já sofreram algum tipo de machismo dentro do futebol. A verdade é que o nível da modalidade só não é o mesmo entre os gêneros por causa do preconceito ridículo que envolve a história do esporte feminino. Não tenho dúvidas de que todas as meninas ou mulheres que gostam de futebol já sofreram algum tipo de machismo somente por gostar. Infelizmente, elas ouvem questionamentos ou comentários como: “O que é impedimento?”, “Fala 3 jogadores de tal time, então!”, “Aposto que só gosta de futebol para agradar homem”, “Essa é Maria Chuteira” e muito mais. 

As pessoas têm que entender que o sangue brasileiro é repleto de talento e não são só os meninos que nascem com o amor pelo futebol, o único motivo deles estarem mais desenvolvidos é que são apoiados por tudo e todos desde que nascem. Jogadoras como Marta, Cristiane, Formiga, Pretinha e muito mais merecem todo o reconhecimento do mundo. A minha maior certeza é que, se as meninas recebessem metade do apoio que os meninos recebem quando pequenos para serem amantes do esporte ou até jogadoras, elas estariam muito mais desenvolvidas que agora.

O preconceito envolvido acaba com sonhos e isso tem que ser mudado. Pouco a pouco, as mulheres vão conseguindo sua igualdade e adquirindo coisas básicas como mesma premiação para homens e mulheres em torneios pela seleção. Valorize o futebol feminino, afinal, o futebol é para todos e, na dúvida, siga o conselho da campanha feita em 2019 e “Jogue Como Uma Garota”.

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Por Felipe Sapia – Fala! Cásper

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