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HQ conta a história dos surdos do povo indígena Terena

“O HQ conta de forma visual a história do povo Terena e, com uso predominante de imagens, relata a existência da língua Terena de sinais, presença contada pelos historiadores e pelos anciãos”, disse Kelly Priscilla Lóddo Cezar, a coordenadora do projeto e professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Esta história em quadrinhos sobre surdos se chama Séno Mókere Kexé Koixomuneté, que significa Sol: a pajé surda, será distribuída inicialmente a escolas públicas indígenas em comunidades Terena e, depois, para a sociedade. 

Séno Mókere Kexé Koixomuneté,
HQ Séno Mókere Kexé Koixomuneté. | Foto: Reprodução.

Esta história em quadrinhos está sendo produzida pela UFPR em parceria com o Instituto de pesquisa da diversidade indígena (Ipedi). Nesta universidade, a professora Kelly tem um projeto de “HQs sinalizadas” há anos, que culmina na publicação e impressão do livro para, depois, ter a gravação de um vídeo em Libras. Sabendo do projeto, o estudante Ivan de Souza, de 27 anos, escritor desta história dos terenas, pediu para ela ser sua orientadora de iniciação científica no começo da graduação em Letras-Libras.

Após três anos de trabalho, o livro está pronto e será lançado dia 27 de março, na submissão do trabalho final de curso dele. O objetivo do enredo é preservar e registrar a língua Terena de sinais, a qual está em risco de extinção por causa dos pais surdos indígenas levarem os filhos para estudarem Libras na área urbana, pois nas escolas da aldeia não têm professores especializados em oferecer uma educação inclusiva, explica Kelly e a Denise Silva, presidente do Ipedi.

Outro cenário destas pessoas é a criação de uma linguagem com sinais próprios da comunidade, e não apenas os povos indígenas têm esta prática, conta a Priscila Alyne Sumaio, de 31 anos, doutora e pioneira no estudo da língua Terena de sinais.

HQ conta a história de surdos da tribo Terena

A história tem como personagem principal uma mulher indígena surda anciã chamada Kaxé. Ela exerce a função religiosa de pajé – Koixomuneti, na língua terena – nesta comunidade. Ao ser chamada para auxiliar em um parto – ritual típico – e após pedir a benção dos ancestrais para o recém-nascido, o futuro do povo terena é revelado e transmitido de forma visual. Junto à história do pajé, a professora conta que os quadrinhos mostram tradições culturais, como danças, comidas e rituais, e a origem do povo Terena na região estudada, em Miranda, no Mato Grosso do Sul.

Esse enredo não está em linguagem de sinais do povo Terena, contando com a criação de um sinalário (uma lista de sinais e seu significado) ao final do livro. Após sua publicação, Kelly, Ivan e uma equipe estão desenvolvendo um glossário, a princípio com 74 sinais, com o mesmo objetivo dos quadrinhos, juntando a linguagem não oral terena, a Língua Brasileira de Sinais (Libras), português e terena escrito. 

Como surgiu o projeto

A história em quadrinhos com os Terena começou com os estudos de mestrado e doutorado de Priscila, em língua terena de sinais, quando estava na graduação em Letras na Universidade Estadual Paulista (Unesp). Ela estudou com sua orientadora a linguagem oral do povo Juruna, na Amazônia, uma experiência muito rica, mas o seu desejo era estudar Libras. Então, a orientadora a convidou para estudar a linguagem de sinais do povo Terena, na aldeia de Cachoeirinha, na cidade de Miranda, no Mato Grosso do Sul, após uma outra orientanda contar a história de uma mãe ouvinte que não conseguia se comunicar com os seus três filhos surdos.

Nos 19 anos que eu trabalho nas aldeias, foi um dos momentos mais emocionantes que eu já presenciei, pois era como se ela estivesse apresentando para a mãe os próprios filhos, pois eles desde muito pequenos foram para a cidade aprender Libras, a língua portuguesa escrita e aprender a leitura labial do português, mas, na comunidade, as pessoas falam terena e o português escrito pelo surdo é diferente.

Relata Denise Silva.

Priscila explica que precisou descobrir se os sinais feitos na aldeia eram uma língua ou sinais caseiros, que seriam símbolos criados dentro da família para se comunicar e são básicos, a ponto de não falar sobre assuntos complexos, como sonhos, religião e política, ou uma variação de Libras. Apenas no seu doutorado – publicado em 2018 – conseguiu comprovar ser uma língua e aprendeu a se comunicar com os Terena surdos com a linguagem deles.

É uma língua nova, provavelmente recente pelo que a gente sabe até hoje, mas é uma língua independente da Libras que não é caseira, pois todos esses surdos (referente a pessoas surdas das outras aldeias próximas) conseguem se comunicar entre si.

Diz ela.

Entretanto, quando surgiu a ideia de fazer o HQ, Ivan desejava estudar outros povos indígenas, mas Kelly conhecia Denise, que trabalha com a comunidade de Miranda e que conhecia Priscila. Após conversarem, foi decidido que a história seria da língua de sinais dos Terena, a qual entre todos citados no texto, apenas a Priscila sabe se comunicar.

No outro lado da história, a professora leciona no curso de Letras-Libras na UFPR e, dentro da universidade, coordena um projeto de gêneros textuais, em que o mais pedido são as histórias em quadrinhos. “Numa das aulas da Kelly explicando o que é ou não língua, nós chegamos no tema das línguas indígenas de sinais e me interessei em pesquisar mais sobre isso”, conta o estudante Ivan, que depois foi perguntar para a professora sobre a possibilidade de fazer uma iniciação científica.

Porém, inicialmente, sua ideia era a linguagem de sinais do povo Kayapó, no Maranhão, pois são os indígenas com o registro mais antigo com uso de linguagem de sinais. Este fato foi descoberto por um missionário, mas Priscila conta que o conhecimento das línguas indígenas começou pelos missionários, viajantes e pescadores que passavam de barco pelas aldeias.

HQ como registro do conhecimento dos anciãos

Os anciãos são as pessoas mais velhas da comunidade, como os pajés, que contam a história dos antepassados a geração atual para o conhecimento ser repassado adiante. Porém, essas pessoas fazem parte do grupo de risco da Covid-19 e estão morrendo junto com informações importantes do povoado, além da cultura e dos rituais.

Kelly e Ivan, sabendo disso, foram antes da pandemia à mesma comunidade de estudo da Priscila para conhecer os sábios e compreender a trajetória da população local. Ambos tentaram compreender fatores não presentes nos registros e documentar a história por outro olhar. “Muitos trabalhos históricos inclusive não têm o registro da cultura e o nosso tem, então ocorrem algumas divergências históricas”, conta ela.

Além do que, por causa dos erros conceituais, a ilustradora Julia Ponnick, 21 anos, a convite da professora, foi orientada a não procurar sobre os Terena na internet e a não ter contato com eles. Ela apenas precisou seguir o roteiro de Ivan e usar a criatividade.

Essa dinâmica aconteceu, explica a professora Kelly, pois na internet há sites com vários erros conceituais de pesquisadores e escritores que não levaram em consideração a especificação das culturas, além de evitar influenciar na retratação dos desenhos dela. Por exemplo, o desenho da pintura do rosto do masculino é uma bolinha, mas a feminina tem formato diferente e não tem nenhum lugar explicando esta diferença, apenas perguntando para um terena.

O maior desafio da obra foi como retratar a espiritualidade do povo Terena nos desenhos, por representar a relação deles com ancestrais, a natureza e os animais. “Depois de pronto e ver que os Terena se sentiram representados foi a melhor coisa, pois na hora que você está fazendo é um trabalho muito solitário e depois quando você vai mostrar o resultado final é uma expectativa muito grande”, afirma Julia. 

Planos para o futuro

indígenas
Kelly e Ivan com o projeto da HQ em mãos. | Foto: Reprodução.

Após quase quatro anos ininterruptos com o projeto da HQ, Kelly e Ivan vão descansar após o lançamento do glossário. Mas o plano deles para o futuro é a formação de professores dentro das aldeias, tendo como base os Terena, para ensiná-los a fazer histórias em quadrinhos e o glossário. “Pretendemos dar esse protagonismo para eles roteirizarem as suas histórias, ilustrarem e contarem com a nossa assessoria, pois não tem ninguém melhor do que eles mesmos para contar, desenhar e dar para a sociedade”, diz a professora Kelly.

Outro plano para a realização da oficina é a arrecadação financeira para possibilitar os cursos oferecidos por eles. “Vender esta HQ para usar os recursos para fazer um curso de formação de professores para que estes professores possam atuar na escola da aldeia de maneira que os surdos não precisem mais ir às cidades”, diz a presidente Denise.

Diferença das línguas de sinais indígenas e a Libras

Inicialmente, o espaço de sinalização das línguas de sinais indígenas é diferente da Libras, explica Priscila. Na versão brasileira, “começa em cima da cabeça e forma meio que um retângulo, passando pelos ombros e vindo até a altura do quadril” e, nos indígenas Terena, “têm sinais para abaixo do tronco”. Além de frequentar congressos e seminários com indígenas fazendo sinais para os lados.

Por exemplo, para falar de futebol em Libras, ela mostrou uma mão com a palma para cima e os dedos da outra mão em cima como dois pés fazendo representação de chute. Entretanto, na língua terena de sinais, eles fazem o sinal de bola com a mão e dão uma mexidinha no pé, como um pequeno chute.

Outro fator importante é a cultura local, por alguns símbolos representarem costumes, rituais e o cotidiano das aldeias. Ivan percebeu que, em Libras, a árvore é a mão reta para cima e, para os indígenas, cada espécie tem um sinal diferente, pois cada uma pode representar um remédio, comida ou valor cultural.

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Por Carina Gonçalves – Fala! Mack

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