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Estável na Instabilidade, relato sobre internações psiquiátricas

Sem vergonha, sem medo e sem amarras: a jovem Laisa Lima relata sua trajetória até o “mais perto possível da normalidade”

Rio de Janeiro, 2016. Instalada no segundo andar de uma luxuosa clínica na zona sul da cidade, Laisa Lima teme o mundo lá fora. Ela enfrenta um longo período de tédio, engorda com as diversas refeições servidas ao longo do dia e finge uma piora no seu quadro clínico. Isso tudo depois de sete meses internada com o diagnóstico de esquizofrenia.

Clínicas psiquiátricas são assim: uma combinação de milionários, políticos, celebridades e muitos jovens artistas. Na interpretação da estudante de cinema, ao contrário do que diz o senso comum, não existe um retrato perfeito sobre o que é ser alguém dentro de uma clínica psiquiátrica. “A sociedade tem uma imagem do que é ser louco, mas não existe esse rosto”.

Em suas hospitalizações, Laisa brindou avanços com gente de tudo que é tipo, de desenhistas a tenistas, e até assistiu às novelas da época. Quando batia a hora no relógio, os jovens, descalços e com os pés nos sofás, acompanhavam atentos os dramas dos canais abertos. Os filmes nos finais de semana também faziam-na se sentir como quando se deita em sua própria cama depois de incontáveis dias fora de casa: aliviada. O sucesso, observou, era por conta da temática adolescente e despreocupada dos filmes, que trazia uma multidão para a sala de convivência.

Quem entra na clínica dá de cara com uma área ampla e iluminada, onde Laisa se prostrou em reverência sete meses depois de sua entrada. Lá, ela foi acompanhada por ótimos profissionais, mas reconhece que algumas práticas ortodoxas sobreviveram ao tempo, como terapias de eletrochoque.

O hospital, uma das maiores referências em tratamento psiquiátrico do Rio de Janeiro, tentou subornar o seu médico para que ele adotasse essa modalidade terapêutica, que tinha custo excepcional, proposta que foi recusada. Naquele momento, mesmo com todas as adversidades, foi difícil para ela abandonar a sensação de pertencimento, que Laisa acreditava só poder ser experimentada ali.

Quando saí da escola, tive uma amostra do que é ser julgada pela sociedade e ser considerada louca. Quando eu estava na clínica, eu não sentia isso, já que todas as pessoas tinham um problema e estavam lá para se cuidar. Durante toda a minha doença, eu só conhecia um lugar que me acolhia. Eu forçava uma piora só para ficar ali.

internações psiquiátricas
Internações psiquiátricas. | Foto: Reprodução.

Uma outra realidade sobre as internações psiquiátricas

Mas há uma outra realidade a ser vivenciada em hospitais psiquiátricos. Uma realidade menos elegante, mais hostil e, além disso, sufocante. Nela, apesar da linda vista do alto da Gávea e das guaritas de madeira rodeadas por flores, o ambiente é paradoxalmente pesado, resultado das diversas violações médicas.

Foi o que a estudante descobriu um ano depois de ter alta de sua primeira hospitalização, quando internada novamente em outra instituição. Os primeiros dias, no chamado andar de triagem – ala clínica destinada aos recém-chegados e aos pacientes com quadro mais preocupante -, foram os piores dias de sua vida.

Era muito difícil, porque a gente não tinha como dormir tranquilo. As portas dos quartos ficavam abertas e já teve caso de uma menina tentar asfixiar a outra no meio da noite. Ninguém fez nada. Esses três dias foram os piores da minha vida. De longe.

Ela ainda acrescenta: “Vi pessoas realmente insanas. Vi um enfermeiro batendo em um paciente que estava surtando, que estava realmente agressivo. Eu vi uma menina tirando a roupa e fazendo xixi no chão”.

Pouco depois, com a sua transferência para uma ala comum, a situação foi se tornando um pouco mais sustentável. Mesmo assim, em meio aos latidos de seu cachorro Brigadeiro ao fundo, Laisa mal podia ser ouvida. Relatava, em um momento de notória emoção, as duas semanas que passou em uma das regiões mais caras do esplendor carioca. 

Certo dia, ela teve um surto. Pediu por sua medicação e recebeu como resposta diversas negativas do enfermeiro. Então, de cinco em cinco minutos, foi até ao posto médico pedir, mais uma vez, pelos seus remédios. Dessa vez, além das reiteradas negativas, recebeu uma bela dose de grosseria: “Não vou te dar. Para de me encher o saco”. Até hoje ela diz não entender os motivos que justificariam a incessante recusa. 

Em outra ocasião, a estudante ficou extremamente nervosa e foi acudida pelos pacientes que estavam por perto. Com a chegada dos enfermeiros, veio também a ameaça de ser levada de volta para o andar de triagem, o que piorou, e muito, a situação. Como se não bastasse, ela ainda recebeu uma medicação diferente do seu SOS habitual – remédio usado em casos de emergência. O enfermeiro também se dirigiu a ela, dizendo: “Você não é uma criança. Você é uma mulher. Aqui eu vou te tratar que nem uma mulher”.

De acordo com Laisa, para quem lida com pacientes psiquiátricos, é quase intuitivo pensar que tudo era reflexo do seu quadro clínico, mais tarde identificado não mais como esquizofrenia, mas como transtorno de personalidade borderline. Logo depois, por meio dos pacientes, descobriu que não era aconselhável falar com os enfermeiros para pedir medicação: quanto mais você fala com os enfermeiros ou pede por remédios, maior é a compreensão de que você precisa permanecer internada e maiores são as suas chances de ir para o andar de triagem. Essa era a lógica que reinava.

Diagnóstico

Para Laisa, o trajeto até o diagnóstico foi complicado. Afinal, costumava pensar que todas as pessoas se sentiam da mesma forma que ela e enxergavam uma realidade similar. Até os 11 anos de idade, a futura cineasta era comunicativa e alegre. Foi quando, pela primeira dentre diversas outras vezes, a vida a surpreendeu. Uma experiência com bullying na escola virou sua realidade de ponta cabeça e fez com que Laisa se tornasse reservada e tímida.

Aos 16, foi diagnosticada com fobia social. Desde então, uma constante sensação de presença e a percepção de um zumbido que não cessa passaram a fazer parte de seu mundo. Quando sinalizados sobre isso, os pais dela procuraram por um psiquiatra, que diagnosticou os seus sintomas como parte de um quadro de esquizofrenia. 

“Meu primeiro psiquiatra me passou um remédio que quase me fez morrer, porque tive uma contorção dos membros”. As coisas foram se agravando até que novos sintomas surgiram. “Comecei a ver pessoas, comecei a escutá-las e dei nome para cada uma dessas vozes”. Em sua mente, também deu vida a uma corporação criada para combater tudo aquilo que a fazia feliz, incluindo sua família. Os sintomas avançaram a ponto dela ter sido encaminhada para o pronto-socorro, quando recebeu antipsicótico na veia.

Fui no Pan de Del Castilho, um hospital público, e a médica quis que eu ficasse internada. Meu pai disse que foi o pior dia da vida dele. Era um lugar que ninguém cuida, digno de pena. As pessoas estavam lá porque não tinham realmente opção.

Em 2016, ano em que Laisa foi internada pela primeira vez, havia 19.311 leitos psiquiátricos em hospitais públicos no país, pouco mais de cinco mil unidades a menos do que no ano anterior. Em 2017, outros 1.275 leitos em hospitais psiquiátricos que prestam serviços ao SUS também foram fechados. Os dados são do Ministério da Saúde e foram obtidos via Lei de Acesso à Informação. 

A médica pediu para que Laisa ficasse internada, mas ela fugiu com o pai. Quando se consultou com um novo médico, seu tratamento começou a evoluir, com testes para vários medicamentos até que os certos fossem encontrados: confilify, lamotrigina, carbolitium, seroquel e venvance, a maioria para reduzir a intensidade e a frequência de episódios de mudança temperamental.

Ainda assim, a internação se fez necessária, porque os surtos eram incontroláveis. “Eles não paravam. Durante 24 horas, eu ficava agressiva, machucava as pessoas e me machucava.”. A situação se tornou insustentável depois de uma ocasião em que Laisa precisou de uma injeção antipsicótica, que acabou tendo um efeito ruim sobre ela. “Me deixou como um robô.” Após ter sido efetivamente internada pela primeira vez, ela conquistou o pódio em “piores casos da clínica”.

O que talvez ainda pudesse surpreender é que, depois de sete meses, seu quadro mudou drasticamente e novos sintomas despontaram. “Comecei a apresentar sintomas como ideação suicida e tendência à automutilação, além de pensamentos muito negativos que foram confundidos com depressão”.

Um ano depois, Laisa foi internada novamente, já com o diagnóstico de transtorno de personalidade borderline, que retratou da seguinte forma: “Pessoas com borderline sentem intensamente muitas coisas e de forma completamente confusa. Elas fazem mal não só a si mesmas como aos outros, porque a doença interfere muito na relação interpessoal”. 

Uma alegria inebriante se transforma em raiva descontrolada. Os limites se tornam difusos, porque pequenas atitudes podem reverter as emoções de pessoas com transtorno de personalidade borderline. Um sentimento doce se converte em gritos, por conta de gestos mal interpretados e a resposta fora de controle logo se traduz em culpa e arrependimento. É quando vem o comportamento destrutivo.

Além da instabilidade emocional, o transtorno de personalidade borderline submete 6% da população mundial a uma intensa impulsividade e extrema irritação diante de resultados negativos, culminando em surtos de fúria. Essas pessoas usualmente constroem uma realidade paralela, digna de extrema idealização.

Por muito tempo, Laisa se escondeu atrás da máscara do diagnóstico. Tudo que fazia, justificava a partir da esquizofrenia, de início. Suas atitudes reforçavam certo pertencimento a um grupo, já que a sociedade não a acomodava. “Era como se eu estivesse pertencendo a um grupo de pessoas que sentem as mesmas coisas que eu. Acabei aceitando, mas com muita terapia, que o transtorno é só uma parte de mim e não justifica a minha personalidade.”. Finalmente, aceita e abraça a sua realidade paralela. “Sou uma menina com um problema, que é um problema grave, mas me trato para isso. Tenho diversas outras características que me definem muito mais do que apenas uma doença”.

Hoje em dia

Moradora da Zona Norte do Rio de Janeiro, quando fala de si, Laisa é despretensiosa, beirando a timidez. Sem a faculdade e sem os gatinhos dos quais cuida regularmente em um abrigo para animais abandonados, sua rotina tem sido mais do mesmo durante essa quarentena: filmes, textos críticos sobre eles e algumas aulas on-line de teclado.

De todas as memórias que carrega consigo, o aprendizado mais vivo é de que precisa se despedir de qualquer preconceito, afinal, “quem diz que o dono bem-sucedido de uma mega empresa é uma pessoa que está precisando de tratamento psiquiátrico?”.

Com tudo que viveu, Laisa jogou para o alto todos os limites. Diz hoje que pode ser tudo o que desejar. “Eu aprendi muito nas minhas internações. Ouvi histórias muito tristes, em que a doença devastou a pessoa, mas também ouvi histórias em que a doença veio para mostrar para pessoa do que ela é capaz de superar.”.

Subestimada, era considerada uma menina frágil, por ser tímida. “Ninguém dava nada por mim.”. Ponto de equilíbrio entre a normalidade e o extraordinário, ela vive “estável dentro da instabilidade”. Tenta controlar os sintomas e, às vezes, consegue, mas, às vezes, se dá por vencida. “E tudo bem”, diz ela, “estou conseguindo ter uma vida minimamente, ou até muito, funcional. É isso que importa”. Sem vergonha, sem medo e sem amarras, ela segue seu rumo até o “mais perto possível da normalidade”.

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Por Ana Flávia Pilar – Fala! UFRJ

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