sábado, 7 setembro, 24
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Entrevista com professora da Universidade de Georgetown sobre o Covid-19

Com o novo coronavírus se alastrando no Brasil, tive a oportunidade de entrevistar a Dra. Claire Standley, Assistant Research Professor, no Center for Global Health Science and Security (Centro Global de Ciências da Saúde e Segurança) da Universidade de Georgetown (Washington, D.C., EUA).

Sua pesquisa tem ênfase na prevenção e no controle de doenças infecciosas e, em um contexto de pandemia causado pelo novo coronavírus, no qual o embate entre ciência e ignorância chegou a níveis inimagináveis, sua voz é extremamente valiosa. 

Do lado do negacionismo nesse embate, no último dia 11, apoiadores do Presidente da República decidiram romper com o isolamento social e saíram às ruas contra o governador de São Paulo, João Doria, e sua política de reclusão.

Os manifestantes ainda se posicionaram contra duas emissoras de televisão, que, segundo eles, manteriam relações econômicas com a República Popular da China. A posição negacionista e incrédula dos apoiadores pode colaborar para a disseminação do vírus e, além disso, dificultar o trânsito de ambulâncias na cidade de São Paulo. 

manifestações contra doria
Carreata protestava contra o governador de São Paulo, João Doria, no dia 11 de abril. | Foto: Reprodução/Twitter.

Do lado da ciência, em um de seus últimos discursos à imprensa, o ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, defensor do isolamento social, disse que já havia lido o Mito da Caverna por mais de 20 vezes desde sua adolescência. Presente no livro VII d’A República, de Platão, o mito é constituído por um diálogo entre Sócrates – mentor do autor do livro – e Glauco, contemporâneo dos outros dois.

O texto mostra como os prisioneiros de uma caverna, os quais somente conseguiam ver sombras (reflexos da realidade), desacreditam de um preso que fora libertado e que tomou consciência do que estava fora da caverna. Dessa forma, ao se referir à Platão, Mandetta também alfineta os negacionistas defensores do fim da quarentena – esses últimos estariam tais quais os presos da caverna, inconscientes da realidade.  

Caso desejemos que a pandemia se atenue, é o lado da ciência que deve ser ouvido. Não há lugar para a pseudociência e para as teorias da conspiração neste momento. Vidas estão em jogo – já há mais de duas mil mortes registradas no Brasil e mais de 33 mil casos de contágio no país.

Nesse sentido, entre os dias 8 e 15 de abril, pude conversar à distância com a Dra. Claire Standley, professora da Georgetown University (EUA). Ela é formada em Ciências Naturais pela Universidade de Cambridge (Inglaterra), com mestrado em Biodiversidade, Conservação e Administração pela Universidade de Oxford (Inglaterra) e Ph.D. em Genética (com foco em Parasitologia Biomédica) pela Universidade de Nottingham (Inglaterra) – em programa conjunto com o Museu de História Natural de Londres. A entrevista transcrita abaixo foi traduzida livremente, do inglês para o português.

A Entrevista 

Leonardo Sarvas Cunha O Brasil tem a China como seu maior parceiro comercial. Ainda assim, o governo brasileiro tem tomado decisões perigosas de escrever comentários satíricos ou preconceituosos contra o povo chinês, nas mídias sociais. Quão arriscadas são essas decisões, considerando que a China é um dos maiores produtores de máscaras, respiradores? 

Dra. Claire Standley – Em geral, penso que não é moral usar esse tipo de desastre [a pandemia pelo novo coronavírus] para disseminar o racismo ou outras visões preconceituosas. O vírus impactou negativamente as vidas de milhões de pessoas na China e levou a milhares de mortes – se não fosse pela ação drástica tomada pelas autoridades chinesas, a epidemia poderia ter se disseminado ainda mais rapidamente fora da China e tido um impacto ainda mais sério no resto do mundo do que já está tendo. Tristemente, a maioria dos países ao redor do mundo não tiraram vantagem dessas semanas a mais para se preparar apropriadamente para o que estava vindo. A China conseguiu se administrar para superar o pior da epidemia, até agora, e de fato está pronta para assistir ao resto do mundo, e enquanto, por um lado, eu espero que suprimentos sejam compartilhados de forma equitativa com países, com base na necessidade, por outro lado, é certamente possível que a diplomacia e outras considerações possam entrar no jogo. 

LSC O presidente estadunidense se referiu à Covid-19 como o “vírus chinês”. A declaração de Trump faz sentido? Por quê?  

Dra. CS – Penso que essa é uma linguagem muito prejudicial. Sim, até onde sabemos, o vírus emergiu na China, mas é agora uma pandemia global. Enquanto, por um lado, será importante olhar para as origens potenciais desse surto e usar a informação para tentar prevenir a futura emergência de novas doenças vindas de animais, por outro, não ajuda, nesse ponto, tentar culpar países específicos, ou usar a crise como meio para avançar o discurso nacionalista ou nativista.  

LSC – Algumas pessoas defendem que não fiquemos em casa, para que a economia não seja prejudicada. Qual é a importância de ficar em casa? Qual é a importância de achatar a curva? Como uma especialista na prevenção e no controle de doenças infecciosas, o que você recomendaria? Algo em particular para o Brasil? Você acha que os países latinoamericanos estão prontos para combater o coronavírus?  

Dra. CS – O desafio primário que nós estamos vendo é que sabemos que na maioria dos lugares, uma significativa proporção dos casos é grave, e que esses pacientes requerem hospitalização. Alguns requerem cuidado intensivo; até mesmo auxílio para respirar. Esses tipos de instalação são limitados, assim como a equipe que os opera. Como sabemos que pessoas podem transmitir o vírus sem sentir (muitos) sintomas, é possível que a doença seja disseminada de forma bastante rápida a não ser que as pessoas limitem seus contatos diretos com outros. Ficar em casa é uma política colocada para reduzir o montante de contatos que indivíduos têm dentro de uma comunidade e, portanto, para reduzir também o montante de transmissão. Com menos casos novos, o sistema de saúde tem chance de cuidar dos indivíduos que ficam mais graves, sem se preocupar em ficar sem recursos. Na Itália, vimos que os hospitais ficaram sobrecarregados – havia muitos pacientes, e médicos tiveram que fazer horríveis e trágicas decisões, quanto à alocação dos recursos finitos, baseadas em quem tinha maior chance de responder ao tratamento. No entanto, um dos efeitos colaterais de fazer as pessoas ficarem em casa é que isso pode resultar em transmissão adicional dentro da unidade familiar caso alguém esteja infectado. Em países em que o tamanho da unidade familiar pode ser maior, e conter gerações múltiplas, incluindo muitos países na América Latina, isso pode, às vezes, infelizmente, colocar pessoas mais velhas em risco ainda maior caso vivam junto com seus filhos e netos – os quais ainda podem sair para se exercitar, comprar, ou outras funções essenciais – e caso algum deles seja infectado. 

LSC – Quão caro é para se combater a Covid-19? Você acha que o Brasil pode enfrentar algumas dificuldades, dado que uma segunda onda pode proximamente atingir a China?  

Dra. CS – Custos variam entre países, mas é claro que isso vai ter um grande impacto nas economias – e os custos diretos de enfrentar essa doença vão ser apequenados pelos custos indiretos de viagens e comércio perdidos, e também pela produtividade perdida.  

LSC – Quanto tempo há entre uma primeira e uma segunda onda? Você acha que a Covid-19 possa retornar nos próximos anos, talvez em uma versão diferente?  

Dra. CS – A dimensão do tempo entre ondas, e até mesmo se haverá uma segunda onda, depende de muitos fatores, incluindo a extensão de infecções assintomáticas na comunidade, o nível e a duração da imunidade após a infecção, e também por quanto tempo o distanciamento físico e outras medidas do tipo lockdown são mantidas. Se muitas pessoas em uma população não foram expostas e não têm imunidade, e se lockdowns são retirados muito rapidamente, uma segunda onda pode ocorrer de modo bastante rápido. Se o vírus que causa a Covid-19 retornará nos futuros anos, isso dependerá também, até certo ponto, desses diferentes fatores, assim como se uma vacina efetiva pode ser desenvolvida e igualmente compartilhada com todos os países.  

LSC – Qual é a importância da existência de um sistema de saúde público, universal e gratuito para combater o coronavírus? Você poderia avaliar o sistema de saúde do Brasil, em comparação com o americano?  

Dra. CS – Cuidados de saúde universais são extremamente importantes em geral, não somente para enfrentar esse novo coronavírus! Saúde é um direito humano fundamental, e o acesso a serviços de saúde acessíveis e de alta qualidade é consagrado nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável [da Organização das Nações Unidas, a ONU]. Nos EUA, a falta de um sistema de saúde público, universal e gratuito poderia ter potencialmente encorajado o estabelecimento da transmissão comunitária do vírus, caso as pessoas estivessem preocupadas com os custos de buscar tratamento médicos para seus sintomas, ou caso fossem diretamente para uma sala de emergência lotada e inadvertidamente espalhassem o vírus lá (mesmo sem planos de saúde, pessoas podem ir a salas de emergência nos EUA e ter acesso a cuidado médico lá, o que significa que pessoas podem usá-las para condições que não seriam consideradas emergências normalmente). O Brasil tem um fantástico sistema de saúde universal que, no entanto, está sofrendo com a falta de fundos e que eu temo que possa ser enfraquecido por conta da falta de apoio político. Esperançosamente, a crise atual ajudará a convencer políticos que [o SUS] é um sistema valioso que providencia serviços para muitos milhões de brasileiros que, no caso contrário, poderiam não ser capazes de arcar com o custo desses serviços, e cuja saúde e cujo bem-estar são críticos para a sociedade e para a economia florescerem. 

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Por Leonardo Sarvas Cunha – Fala! Cásper

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