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Conto – Indestrinçáveis: o ato de não conseguir separar

Unmei No Akai Ito – também conhecida como A Lenda do Fio Vermelho do Destino – se trata de uma antiga história, já contada há muito tempo. Era dito que se duas pessoas fossem feitas uma para a outra, elas seriam conectadas por meio de uma linha vermelha amarrada em seus dedos mindinhos, e que seus destinos estariam entrelaçados para sempre. A linha pode se esticar, se encurtar, ou até mesmo se embaraçar, mas jamais poderá se romper. Era pensado que quanto maior e mais embolada a linha, mais obstáculos e dificuldades a dupla passaria, e o oposto para quando o fio era liso e curto. Hoje em dia, as pessoas unidas pela cor vermelha são o que chamamos de “almas gêmeas”.

Ninguém sabe dizer o que amarra os indivíduos ou como, e grande parte das pessoas sequer consegue ver as linhas. O fio não se importa com nada na hora de escolher seus alvos: altura, classe social, raça, gênero, idade, aparência ou preferências, tudo isso é descartado; o que importa, para ele, é essência de cada um de nós.

Nem todos têm uma “alma gêmea”; as conexões feitas pelo vermelho não são abundantes, e existe um rumor de que elas seguem até mesmo após o término da vida. Se essa parte é verdade ou não, eu não sei te dizer, porém, algo que eu posso te confirmar é que a linha realmente existe – e eu consigo vê-la.

A Lenda do Fio Vermelho do Destino. | Foto: Reprodução.

Eu, há algum tempo, te diria que não acreditaria na veracidade da lenda nem que me pagassem. Se pensado racionalmente, não fazia o menor sentido, e sequer tinha uma explicação científica plausível. Então, me diga, por quê? Por que logo eu, que não acreditava nessa historinha de criança, fui ser escolhida para enxergar estas amarras? Dentre todos os meus amigos, que tinham certeza de que a narrativa era real, e dentre todas as pessoas aleatórias no mundo, que teriam ficado eufóricas em descobrirem seus parceiros eternos, por que fui logo eu a escolhida para ver?

Até hoje não sei, mas sinceramente, não me importa mais. Eu ganhei essa habilidade durante um dia qualquer, e de repente via todos os vários fios, alguns cheios de nós e que aparentavam ter quilômetros de distância, e outros, com meros centímetros e completamente desenrolados. Então, eu fiz o que qualquer pessoa normal faria: olhei para o meu próprio dedo. Foi naquele momento em que tive a certeza de que estava ficando louca. Eu só podia estar tendo algum tipo de alucinação, ou talvez eu sofresse de esquizofrenia e não havia sido diagnosticada. Não é exagero dizer que eu quase desmaiei no meio da rua, enquanto voltava da faculdade, ao ver um fio vermelho saindo do meu mindinho esquerdo.

Contar a minha situação para alguém era impensável – ninguém acreditaria em mim e, se acreditassem, eu viraria um cúpido da vida real, tendo que dizer quem daria certo com quem. Pesquisei na Internet por mais pessoas que tivessem passado por isso, mas, aparentemente, eu era o único ser no mundo que conseguia enxergar. É desnecessário dizer, mas eu surtei. Ter essa habilidade era empolgante, e eu queria testar se as pessoas conectadas realmente se encaixavam, porém, havia uma questão que não saía da minha mente: o fato de que eu também tinha minha própria alma gêmea. Quem diabos poderia ser essa pessoa? E por que a nossa linha estava tão embolada e comprida? A pessoa do outro lado devia ser realmente problemática, pois não tinha como eu ser a única culpada por todos aqueles nós.

No dia seguinte, eu achei que havia entendido o porquê do embaraçar do meu fio. Tentando ignorar o acontecimento de ontem e ir me acostumando com a minha nova realidade, fui à faculdade como se fosse um dia qualquer. Okay, eu admito, talvez eu tenha ficado encarando as amarras dos outros no metrô, e invejado todos os fios tão lisos e sem nenhum problema, enquanto o meu parecia os cabos de um fone de ouvido logo depois que você o tira do bolso.

De qualquer maneira, voltando ao momento da minha desgraça, meu mundo desabou quando eu fui cumprimentar meus amigos antes da aula começar. Percebi que minha linha e seus nós se amontoavam no chão, como se eu estivesse mais perto da pessoa do outro lado do vermelho. Comecei a procurar por alguém dentro da sala que meu fio poderia se conectar com, e foi então que eu vi; vi que era com o dedo mindinho dela. Isadora, minha melhor amiga. A garota que estava num relacionamento perfeitamente feliz, com alguém que definitivamente não era eu.

Será que era algum tipo de punição divina? Ou talvez, Karma cósmico? Estaria o universo se vingando contra mim por ter zombado do poder do destino? Não consegui falar com ninguém naquele dia, com medo de deixar meu segredo escapar e estragar tudo. Obviamente, isso não passou despercebido por ela. Recebi algumas mensagens depois de voltar para casa, todas sendo dela, preocupada com o meu bem-estar e oferecendo ajuda caso eu precisasse. Mais uma vez, não consegui responder, dominada pelo medo de cometer um erro irreparável.

Quem quer que seja que havia botado aquela linha vermelha ali deve ter cometido um engano. Eu não gostava dela de maneira romântica e ela já namorava, além de sermos apenas amigas. Talvez uma vez ou outra eu tenha cogitado a possibilidade de vê-la como algo a mais, mas de maneira alguma cheguei à conclusão de que o que sentia era amor romântico. O que diabos eu devia fazer naquela situação? Contar para ela da amarra? Não, ela acharia que eu estou tentando sabotar o relacionamento dela, além de estar ficando doida. Talvez eu pudesse contar para os meus outros amigos sobre isso? Também não, acabaria chegando até ela eventualmente. Em apuros, eram as palavras que me descreviam naquele momento. Então, eu decidi lidar com a situação fazendo o que faço de melhor: ignorando meus problemas e fingindo que tudo estava ótimo!

Infelizmente, meu plano não funcionou tão bem quanto eu imaginava. A cada dia que se passava, eu parecia prestar mais e mais atenção nela. O jeito que o seu sorriso iluminava qualquer ambiente, ou como ela ajeitava o cabelo, colocando-o atrás da orelha quando estava ansiosa. A maneira que as sobrancelhas dela arqueavam quando ela se surpreendia, ou como ela enchia as bochechas de ar quando estava frustrada. O riso que ela tentava esconder botando a mão na frente da boca, e as poses idiotas que ela fazia, tentando me arrancar uma risada. As várias pequenas coisas pareciam ir se acumulando na minha mente, e eu sinceramente estava prestes a explodir.

O fato de haver algumas pessoas do meu círculo social que também estavam conectadas não estava me ajudando nem um pouco. Nem todas elas tinham relacionamentos românticos, parte delas só tinha um laço de amizade muito forte, então comecei a duvidar de que todas as “almas gêmeas” sempre se tratassem de romance. Também cheguei à conclusão de que os maiores fios eram daqueles de duplas que tinham mais história juntos, e não necessariamente dificuldades.

Cada nó parecia significar um momento importante dentro de sua relação, e se desfazia quando aquele momento ocorria. Mas o que mais me tirava do sério eram todos os meus amigos parecerem perfeitamente contentes com suas situações atuais, mesmo sem saber o porquê de o maldito vermelho estar conectando-os. E lá estava eu, sem saber se a linha era de amizade, como eu havia visto algumas vezes, ou de romance; contando com um vermelho vívido, completo de nós e momentos que ainda estavam por vir.

Desejar o mal dos outros nunca foi minha intenção, e eu prometi a mim mesma que jamais iria interferir no relacionamento atual da Isadora. Mas ainda assim, uma pequena e maldosa parte de mim desejava que ela terminasse, para que eu, talvez, tivesse uma chance de ter algo além de uma amizade com ela. Afinal, nós estávamos conectadas, então poderíamos nos encaixar de algumas maneiras diferentes.

Meses se passaram e eu continuei quieta, um sentimento que eu não sei descrever começando a crescer cada vez mais dentro de mim. Talvez fosse um apreço, talvez um gostar, ou nenhum dos dois. Só sei que ao começar a ver as diversas brigas ocorrendo entre as tais “almas gêmeas”, eu passei a me apegar aos pequenos momentos que tínhamos juntas, como se pudessem ser os últimos – mesmo quando o destino me prometia que não.

A playlist no Spotify que ela criou apenas para mim quando eu reclamei sobre não ter músicas boas para ouvir; nossas maratonas de filmes onde eu não parava de falar por um segundo, mas ela dizia preferir o entretenimento muito mais quando ele era acompanhado dos meus comentários idiotas; as vezes em que ela me apoiou e disse ser minha fã número um, principalmente quando eu mandava meus contos pessimamente escritos para ela; os links infinitos de vídeos que eu enviava para o seu celular durante o dia, que ela dizia gostar e achá-los engraçados; ela nunca se importando de me passar as respostas de provas e trabalhos da faculdade, mesmo quando eu não estava exatamente “fazendo por merecer”; o ranço que nós duas compartilhávamos por um garoto específico da minha sala, motivado pelo fato de que uma única vez ele me tratou mal, e depois transformamos o sentimento em uma piada interna da qual rimos até hoje; e , acima de tudo, me apeguei à nossa promessa de sempre sermos honestas e falarmos exatamente o que pensamos uma para a outra.

Lamentavelmente, não consegui cumprir minha palavra com ela sobre nunca esconder nada. Correr o risco de magoá-la falando sobre a linha vermelha nunca foi uma opção, e eu me recusava a fazer qualquer coisa que pudesse estragar o seu atual relacionamento. Eu sequer tinha certeza se a conexão entre nós era romântica ou amigável, então contar para ela sobre o fio, enquanto eu não sabia a verdadeira motivação dele, seria simplesmente errado.

Continuamos melhores amigas e a lista de motivos para o meu afeto por ela cresce a cada dia que passa. Eu já desisti de tentar impedir meus sentimentos, quaisquer que sejam eles, e isso fez com que o nosso fio tivesse um de seus nós desfeitos, então, pelo menos uma coisa boa saiu de tudo isso.

Dizer que o que sinto é amor seria um erro, pois eu não tenho certeza do que é essa emoção que só sinto quando perto dela. Mas devo admitir, essa nova habilidade que adquiri de enxergar os fios me fez repensar minha visão sobre a garota. Ver pessoas conhecidas minhas saindo de relacionamentos infelizes e encontrando seus pares destinados, pode ter ajudado um pouco neste quesito também.

Hoje em dia, ela continua me tratando como sempre e por mais que me sinta apreensiva em ter que esperar o futuro chegar para saber o que realmente será da nossa relação, eu tento aproveitar o agora com ela ao máximo. Existe um certo alívio em saber que estamos conectadas e ainda temos muita história pela frente, pois ela é alguém que jamais quero perder. Seja como amiga ou parceira futuramente, gostaria de mantê-la ao meu lado. Sei que nossos destinos estão entrelaçados para a eternidade, então, nada me custa sentar e esperar a vida se desenrolar por si só.

Essa história é dedicada a você, “Isadora”, que sugeriu encarecidamente que eu escrevesse sobre essa antiga lenda quando comentei que participaria deste concurso. Isso pode não ser o que você estava esperando, e eu já tenho conhecimento de que você vai brigar comigo por não ter te enviado esse texto – para que pudesse ler e dar sua opinião – antes que eu o encaminhasse para o processo de seleção. Considere essa “surpresa” um pedido de desculpas prévio e, ao mesmo tempo, uma maneira de cumprir nossa promessa de sermos sempre honestas uma com a outra. Se essa história for publicada e você encontrá-la, tenho certeza de que mais um dos nós que reside em nosso “fio vermelho do destino” irá se desamarrar. Caso ela não seja uma das escolhidas, sei que o universo tem algo, ainda mais especial do que ganhar uma competição, reservado para essa narrativa que foi inspirada em nós duas.

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Por Júlia Candido Ribeiro dos Santos

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