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Vozes da Beira do mundo – O impacto do Ciclone Idai em Moçambique

Eu nunca estive lá.

Fui salgada progressivamente pelas ondas do Atlântico. Não do Índico.

Mas uma voz da Beira do mundo me disse que ele está cheio de países, a maior parte estrangeiros. Foi o escritor moçambicano Mia Couto, em seu conto A princesa russa. Apenas quando ganhei um de seus livros, no ano passado, reconheci um país não estrangeiro.

Moçambique é um lugar que também tem várias receitas com mandioca, dois Prêmios Camões, muitos falantes da língua portuguesa, e uma Anitta.

Há alguns anos, uma ideia chicletou à minha mente. A fala da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie sobre o perigo de uma história única tornou-se parte da massa formadora da minha consciência. Quase como o grilo de Pinóquio. “O problema dos estereótipos não é que eles são falsos. Eles são incompletos. Fazem uma história se tornar a única. Claro que a África é um continente cheio de catástrofes. Mas, outras histórias também existem.”

E sim, aconteceu uma catástrofe.

A cidade da Beira é a quarta em importância para Moçambique. Foi fundada no século 19, mas só em 1907 ganharia o status de cidade. Capital da província de Sofala, a Beira tem 500 mil habitantes, diferentes comunidades étnicas (portugueses, indianos, chineses, africanos indígenas), um aeroporto e um porto internacionais, grandes universidades, produção cultural, oleodutos e linhas de trem que são cruciais não só para seu país, mas também para o escoamento de produtos de seus vizinhos anglófonos — Zâmbia, Zimbábue e Malawi.

Lá passou o Idai, ciclone que trouxe feridas mesmo antes de se formar.

A dor

Agências do sistema da Organização das Nações Unidas (ONU)  —  FAU, UNESCO, PMA, OCHA, UNHAS  — , Médicos Sem Fronteiras, Cruz Vermelha, diversas ONG’s de ajuda humanitária, Estados Unidos, Reino Unido, China, Índia. Estes são alguns dos órgãos e países que estiveram trabalhando ativamente na Beira. O Brasil também contribuiu, com bombeiros, mantimentos e dinheiro. Já que tanto suporte foi enviado, por que ainda não é suficiente?

De acordo com informações da Embaixada Brasileira em Maputo (capital moçambicana), poucos países poderiam lidar com algo tão grandioso. A ONU classificou o Idai e seus impactos como o maior desastre natural do hemisfério sul.

Antes da formação do ciclone  — que se tornaria de categoria 4, o segundo tipo mais intenso na escala Saffir Simpson  — , a região foi flagelada por uma tempestade tropical. Durou uma semana. O ciclone ainda era uma massa de ar cercando o local, mas provocou muitas inundações e mortes neste período. Logo depois, nos mares, ganhou velocidade e voltou com a forma monstruosa do Idai. Devastou a Beira no dia 14 de março, subindo até Zimbábue e Malawi. 

Neste processo, muitas nuvens foram levadas para a parte montanhosa de Moçambique, água que precipitou. Os rios encheram, de modo que foi preciso abrir comportas de represas. Se estourassem, o impacto da correnteza seria muito mais destrutivo. Isso intensificou o alagamento.

Casas varridas. Plantações destruídas. Formou-se um lago do tamanho de Luxemburgo, com onze metros de profundidade no centro. Milhares de mortos, feridos, desaparecidos e desabrigados.

A Beira se restabelece aos poucos. Na semana do desastre não havia água, luz, internet, rede de telefonia, bancos operando, nem abastecimento. Os hospitais foram amplamente afetados, assim como as condições sanitárias, o que gerou um surto de cólera e aumento da malária, doença endêmica. Porém, apesar do caos na cidade, e, embora a maior intensidade tenha sido absorvida lá, as regiões de Dondo e Buzi, que são mais pobres, sofreram danos superiores devido à infraestrutura precária.

Os moçambicanos esperaram resgate por dias, um resgate que, para muitos, nunca chegou. “Tem relatos horrendos de pessoas que caíram das árvores de tanto esperar, que foram atacadas por animais disputando espaço, que tiveram a pele descolada do corpo por ficar tanto tempo debaixo d’água… Foi muito pesado.”, conta um diplomata brasileiro que esteve nas regiões afetadas.

Ele explica que a ONU trabalha assim: houve, a princípio, a fase de assistência humanitária que ocorre pós-desastre. Tudo foi organizado pelo Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA). Posteriormente, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) assumiu e produziu um grande relatório juntamente com o governo moçambicano, o chamado post disaster needs assessment, ou avaliação de necessidades pós desastre. A partir deste documento, foi possível estabelecer um plano de ação e saber exatamente o que Moçambique precisa para os próximos anos.

Mesmo com toda essa estruturação, a tragédia é grande demais. A agência estadunidense de notícias Associated Press divulgou dados sobre o Idai: das mais de mil pessoas mortas até o início de abril, 60% eram moçambicanas. Havia um número desconhecido de desaparecidos, bem como 4 mil casos de cólera registrados. Além disso, seis semanas depois do ciclone, outro, nomeado Kenneth, atingiu o norte do país. Isso dividiu recursos financeiros e logísticos, o que pode atrasar a recuperação de Moçambique.

[Foto: Siphiwe Sibeko/Reuters]Paremos por aqui.

Você acabou de ler a história única.

“A consequência da história única é que ela rouba a dignidade das pessoas. Torna nosso reconhecimento como seres humanos iguais difícil. Enfatiza muito mais nossas diferenças que nossas similaridades.” Chimamanda nos questiona sobre as histórias felizes da África. Quantas nós conhecemos?

O sofrimento causado pelo Idai precisa ser contado. Tem-se de ouvir nos quatro cantos do mundo sobre a dor africana, porque ela é importante.

Entretanto, a alegria também é. A apatia também é. As raízes também são. Quando não se quer ter uma visão pobre, importa saber histórias como a do Paulo Torcida, que na Beira aprendeu a nadar com boias caseiras, feitas das embalagens de óleo da casa dos tios, e cresceu bastante até se tornar adulto e biomédico.

A Beira não foi criada pelo Idai. E é por isso que, agora, sem perder o caos, vamos fazer o que os moçambicanos fazem de melhor: contar histórias.

As cores que esqueceram de ler

Por Chantell Hassan

“Little brown girl born into a rainbow family,

Raised by the blindness and beauty that was her parents interracial love.”

“Pequena garota marrom, nascida em uma família arco-íris,

Criada pela cegueira e beleza que era o amor interracial de seus pais.”

 — Chantell

Ela tem 25 anos, é intercambista de Artes Plásticas na Universidade de São Paulo (USP), se veste de um jeito bonito e sensível, faz poemas e performances que misturam as diversas formas da arte, e jura que sua comida pode ser capaz de fazer alguém chorar. Fiquei animada quando descobri que Chantell nasceu na Beira.

“Sou Shezia Chantell Soares Hassan. Em casa ninguém me chama assim, sou a Chantell.” Sua família é metade islâmica, metade cristã. Ser filha de um homem muçulmano implica ter a primeira e última parte do nome muçulmanas. Chantell foi batizada duas vezes, tem um avô pentecostal e diz que mistura as duas doutrinas. “Eu pego o que acho bom de cada uma, e penso que isso constrói um ambiente melhor, menos extremo.” 

Ela diz que a maior parte dos comerciantes árabes islâmicos se instalou nas regiões do centro-oeste (Tete, na área de Sena) e do norte (Nampula), a partir do século 10. Seu pai nasceu em Sena. “Lá teve muita mescla entre nativos e árabes, meu pai é fruto disso.” Tudo é ainda mais complexo: “uma parte da minha família é do Paquistão. Outra parte, de Goa, Índia. A comunidade indiana é bem grande em Moçambique”.

Ela quer saber se eu conheço a culinária moçambicana. “Nós cozinhamos muito com amendoim e coco. O amendoim é moído num pilão gigante, e depois sai um leite delicioso. Leite de coco também adoramos.” Chantell garante que seu frango cozido no leite de amendoim é catártico. Ele pode ser servido com xima  —  um dos alimentos mais populares em Moçambique; prepara-se com água ou leite de coco e farinha de mandioca ou de milho, parecido com uma polenta — e matapa, que é feita a partir das folhas de mandioca, de abóbora ou de batata doce cozidas no leite de coco. A matapa também pode levar camarão seco. “Invés de carne seca, como no Brasil, usamos muito camarão, muito peixe seco.”

— O que se come na Beira? 

A Beira é muito conhecida por seus camarões. “Os melhores do país! São gigantes. A gente faz muito caril [molho semelhante ao curry, influência indiana] de camarão com leite de coco. Com quiabo também. Tomate, cebola, alho. Sempre muito simples, mas ingredientes naturais.” De sobremesa, Chantell lista pudins variados e um doce de mandioca que consiste na raiz cozida em leite condensado com um pau de canela.

Peço, então, uma história da cidade em que ela nasceu e quer voltar para envelhecer. “Você ouviu sobre os 40 magníficos e os crocodilos? Aconteceu durante o ciclone, foi a coisa mais linda. Vou contar.”

A 40 minutos da Beira fica a Quinta dos Crocodilos. Criação de 26 mil deles, milhares de bois, restaurante, piscina, paintball e ecoturismo. “Tem um piscinão gigante onde ficam os crocodilos, protegido por um muro alto. As pessoas vão lá para almoçar sua carne, é uma coisa meio turística que a gente faz.”

O ciclone Idai derrubava os muros. 40 trabalhadores passaram 48 horas ininterruptas levantando chapas de ferro, em meio aos ventos fortíssimos. Conseguiram impedir que as barreiras caíssem e os animais fossem liberados na água. Um deles, João, perdeu quatro filhos enquanto salvava boa parte da cidade.

“Está imaginando o filme de terror?” Naquele contexto de alagamento, os répteis nadariam até a parte urbana e muitas pessoas seriam mortas. “Isso, para mim, foi a história mais importante, porque eles arriscaram a vida deles, a vida da família, para ajudar gente que nem conhecem. Essa atitude identifica muito a comunidade moçambicana.”

[Imagem: @chantellhassan]

Aquilo talvez tenha sido a primeira vez na poesia

Mia Couto

Naquele momento creio ter entendido: a cidade não é um lugar. É a moldura de uma vida, um chão para a memória. Enrolei a linha, e regressei à casa, o poente avermelhando a paisagem e os flamingos trazendo o céu para junto da terra. Então, ganhei certeza: a cidade em que nasci estava destinada a nascer de mim. Um arame invisível nos prendia os pulsos, a mim e a minha terra natal. Se alguma vez nos atirássemos sobre o abismo não seria para nos afundarmos, mas para ganharmos voo, o mesmo voo dos flamingos cruzando os poentes sobre o rio Pungwé.” 

—  Mia Couto, em A cidade sonhada, do livro Pensageiro Frequente

Antônio Emílio Leite Couto é um dos únicos autores africanos conhecidos no ocidente. Por conseguinte, atua como um apresentador de Moçambique, muito embora seu país tenha tantos outros nomes da escrita que também merecem ser lembrados  —  tais quais José Craveirinha, que recebeu o Prêmio Camões, e Paulina Chiziane.

Filho de portugueses em Moçambique, Mia Couto nasceu na Beira, em 1955 — é mais velho que seu país. Ele quer escrever um livro ambientado na cidade e, por isso, planejava revisitá-la, mas o Idai chegou primeiro.

Formou-se em biologia. Foi jornalista. Tem uma bibliografia extensa, mais de 20 livros publicados. Faz poemas, crônicas, contos e romances. É frequentemente comparado a Guimarães Rosa e Gabriel Garcia Marquez por sua busca pelo realismo mágico, assim como sua habilidade de construir belíssimos neologismos e poesia em prosa.

“O Mia já foi conhecido como o inventor do português moçambicano. Ele escreve como minha mãe fala. Se aproxima muito da realidade. Quando tu lês Mia Couto percebes o português que se fala na comunidade.” Isso foi o que ouvi de Manuel Cochole, moçambicano doutorando em Filosofia na Universidade Federal da Bahia.

Mia Couto participaria, no dia 12 de abril, de um evento da USP Leste, organizado pela Companhia das Letras, LiteraSampa, e pelo Programa de Pós Graduação em Turismo da USP. 

Chegado o momento das perguntas do público, a mediadora concede o microfone a alguém que levantou as mãos quase na altura do teto. “Mas antes, vou ler esse papel. A pergunta é da Amanda”

— Acho que essa Amanda sou eu mesma!

Ela ri, e diz que se eu queria tanto a palavra, ao ponto de tentar duas vezes seguidas, deveria levantar para que todos me vissem. Feliz e com pernas gelatinosas, tudo um tanto borrado ao redor, pedi ao Mia Couto uma memória alegre de seus tempos na Beira para a matéria da J. Press. “Tudo bem, mas você quer que eu fale aqui ou te mande por escrito?” Os risos tremem o salão. 

“Eu era uma criança quase problemática.” Muito distraído, ausente, e também não era um bom aluno. Seus pais não sabiam o que fazer. O pai trabalhava com construção e acabou concordando com a ideia da esposa de introduzir o ofício ao pequeno, a fim de discipliná-lo.

“Minha mãe dizia ao meu pai para me mostrar como era o serviço. Logo a quem? Ele era a pior pessoa do mundo para fazer isso! No momento em que eu sentava para fazer meus deveres, meu pai me tirava da seriedade, me chamava para passear.” Trancavam o estabelecimento e partiam. Ao longo do caminho, apanhavam pedrinhas brilhantes, coisas que tinham caído dos vagões de minérios. “Era uma busca pela pureza junto à poeira cinza do chão.”

“Aquilo talvez tenha sido para mim a primeira vez na poesia, porque eu via meu pai como uma criança que eu tinha de disciplinar. Eu ficava a dizer: ‘pai, vamos voltar!’” Depois que sua mãe via a areia das pedras, jogava fora as sacolinhas, pois aquilo era para ela “mais ou menos como um lixo acumulado na varanda”.

“Era uma coisa mágica para mim, pois havia um prazer somado, o prazer da desobediência à minha mãe e o de estarmos os dois cúmplices nessa infância que inventamos. Acho que essa história pode dar uma dimensão da minha cidade, que era uma cidade que tinha tempo. Não havia medo, eu tinha uma infância infinita e isso é fatal.”

[Imagem: SAPO]

O narrador

Marcelino Francisco

“Angola e Brasil estão no Atlântico, é como se fossem dois países cujos rostos conseguem se olhar. Enquanto isso, Moçambique está de costas para o Brasil. Essa é minha imaginação.”

— Manuel Cochole

Quando se trata de cultura e costumes, via de regra, nós brasileiros temos pouco conhecimento sobre países de onde milhares foram forçados a emigrar para trabalhar nossa terra e participar da formação nacional. 

A recíproca, porém, não é verdadeira: uma das emissoras de televisão em Moçambique, Miramar TV, pertence à rede brasileira Record. Nossos programas e novelas são muito consumidos por lá. “Eu conheci o Brasil por meio da televisão, assistia muito e gostava de ver como era nas cidades brasileiras, a cultura brasileira”diz Marcelino Francisco, que nasceu na Beira, faz licenciatura em inglês e tem 22 anos.

Ao preparar este texto, tive uma dificuldade considerável de encontrar informações sobre Moçambique e, mais ainda, sobre a Beira. Poucos sites contam a história do país ou da cidade. Se contam, é com a profundidade de uma poça d’água. Os jornais brasileiros são anêmicos. Há mais conteúdo de qualidade em inglês do que português. As bibliotecas da maior universidade da América Latina tampouco satisfazem: a maioria dos livros é sobre todo o continente africano, com pouquíssimo aprofundamento no país e cidade que eu queria descobrir.

Marcelino também quer combater a história única.

Por questões como essas, ele decidiu criar um canal de vídeos no Youtube. Pode-se conhecer mais sobre as gírias moçambicanas, o café da manhã  — ou matabicho —, ver a Beira depois do ciclone e passear pelas ruas de Maputo. “Muitas pessoas ainda acreditam que a África não acompanhou o desenvolvimento global, que é completamente atrasada. Os estrangeiros não têm informações completas sobre ela e Moçambique. Faço meus vídeos para provar que essas ideias são um engano.” 

O canal, que começou em 2015, leva o próprio nome do moçambicano. Sua primeira versão tem 44 mil inscritos. A outra, criada em janeiro deste ano, em poucos meses alcançou 29 mil, e 1 milhão de visualizações. Ambas estão ativas. A grande projeção do canal o permitiu viajar ao Brasil e até mesmo receber um convite para gravar com Luciano Hulk em Moçambique.

Eu pergunto então sobre suas memórias.

“Eu sou o último de 5 filhos, desde cedo meus pais eram separados e minha mãe cuidava sozinha de nós. Então, ela tomava muito cuidado conosco. Mas, eu gostava mesmo de fazer algo que ela proibia.” Marcelino amava a praia, ao contrário de sua mãe, que se traumatizou com as histórias de afogamentos na Beira.

“Eu fugia da minha mãe e ficava horas e horas nadando. Voltava à casa e, como a água da praia deixa nossa pele negra com umas marcas bem brancas do sal, eu passava terra no rosto para disfarçar, e assim enganava minha mãe.” Um dia, ele e seus amigos resolveram fazer um desafio na Praia dos Veleiros, no Bairro das Palmeiras.

“Atravessamos a muralha que levava até um ponto distante no mar, acho que uns 20 metros, onde a profundidade já era maior.” O desafio era pular na água e sair dela. Quem fizesse mais rápido, seria o vencedor. Marcelino empurrou um dos meninos, que não estava pronto para nadar. 

“Meu Deus.”

O garoto atirado ao mar se debatia constantemente e não dava mostras de saber o que estava fazendo. O remorso corroía Marcelino do alto da plataforma. Seria o culpado pelo afogamento? Felizmente seus devaneios não se materializaram. “Meu amigo acabou por conseguir sair. Eu entendi o trauma que a minha mãe tinha, porque o mar pode levar. Depois disso, fiquei cuidadoso.”

[Foto: @marcefranciscoo]

Ela falava pouco, mas sempre falava as coisas certas

Alberto Antonio e Julieta Comuana

O primeiro contato que tive com pai e filha foi pelo Facebook. Alberto faz parte da administração do Núcleo de Moçambicanos em São Paulo, uma página na rede social. “É um meio de articulação! Compartilhar conhecimentos sobre o que é ser moçambicano em São Paulo. É acolhimento, ajudar na adaptação com as experiências que cada um teve”, ele conta.

Ambos moram no Brasil. Alberto tem 60 anos. Julieta, 30. Ele é católico. Ela, pentecostal. Só Djuly nasceu na Beira. Seu pai é de Maputo, mil quilômetros para o Sul. 

Todavia, os 10 anos vividos na cidade natal de Julieta foram cruciais para o desenvolvimento de Alberto. Ele havia se mudado para a Beira aos 20 anos por causa do trabalho: a assistência social lhe solicitou serviços no Hospital Central. “Era a primeira aventura, saí da casa da minha mãe. Será que eu conseguiria ter, eu mesmo, uma casa? Viver num lugar estranho? Um lugar em que não falam minha língua?”

A questão da linguagem é complexa e controversa. Se, por um lado, a língua do invasor que colonizou o país é opressora, na medida em que impôs uma outra cultura, ela também possui hoje um caráter unificador. “Eu tinha que conversar com a minha esposa em português, que é o idioma oficial, já que nós não falávamos as mesmas línguas tradicionais.” 

Alberto explica: existe quem não fala o português, ou é pouco fluente, assim como pessoas que simplesmente preferem conversar em sena ou ndao, as línguas originárias da região. Alberto, nascido em Maputo, é falante do ronga. Sua primeira imersão no português foi na escola, já que em casa falava-se ronga. A próxima geração teve uma vivência diferente: Julieta aprendeu primeiro o idioma oficial.

Os medos de Alberto não se concretizaram. O moçambicano não ficou desabrigado, foi acolhido inicialmente num quarto do Instituto Nacional de Deficientes Visuais, uma espécie de escola para pessoas com problemas de visão. Aprendeu muito em casa e no trabalho. Fez amigos…

Conheceu um amor.

A mãe de Julieta, Catarina, também trabalhava no hospital. “Ela falava pouco, mas sempre falava as coisas certas. Eu gostava demais disso, e a Djuly puxou dela.” Alberto diz que ele e a ex-esposa tinham uma grande sintonia. “Éramos muito companheiros, muito respeitosos. Teve uma vez que ela parou, me olhou, e disse: ‘é engraçado, você é meu marido mas poderia ser meu irmão.’”

O parto da Julieta foi prematuro. “Eu trabalhava no hospital, então sabia do índice de mortalidade de crianças prematuras. Isso me deu uma agonia muito grande. Tinha tanto medo de ela não sobreviver! Nasceu só com 1 quilo e 800 gramas.” Felizmente, Alberto era amigo de um padre médico, membro de uma igreja que ele frequentava. Naquele dia, quatro crianças prematuras nasceram, mas só Djuly sobreviveu. Alberto atribui esse fato à gentileza do amigo: “tem um tipo de cálcio que faz uma fortificação, e aquele padre me deu, um remédio pessoal dele que tinha trazido de Roma”. Uma semana depois, o bebê estava pronto para entranhar-se no mundo exterior.

Julieta tem hoje 30 anos saudáveis, e trabalha com instalação de redes em São Paulo. Tão distante da Beira, ela conta que o episódio do Idai a lembra de uma história que ouvia da mãe e dos tios aos 9 anos de idade. “Nós crescemos em uma cultura em que sempre contamos histórias. Normalmente elas não são tiradas dos livros. É de família. Vai ficando entre as famílias e, dependendo da região, são totalmente diferentes.” A ideia dessas histórias é sempre ensinar alguma coisa. É também um momento de união: ficar em volta da fogueira ouvindo os mais velhos, assar maçaroca (milho), amendoim fresco, mandioca, e batata doce. Comer bem e prestar atenção ao outro.

“Minha mãe amava contar, assim como eu amava ouvir, a história da menina Saminingo.” Esta vivia para viajar. Não queria parar em casa, saía com os amigos e ficava muito tempo fora sem dar qualquer notícia. “Sempre que ela voltava, depois de vários meses, a mãe e o pai diziam: ‘não podemos te impedir de ir embora, mas você precisa saber que, se continuar esquecendo da sua casa, um dia pode voltar e não a encontrar mais.’”

Saminingo nunca dava ouvidos.

Certa vez, ela demorou tanto para voltar que sua aldeia não existia mais. Durante o tempo em que ficou fora, um terremoto varreu tudo. A menina arrependeu-se intensamente. A lembrança dos avisos dos pais latejava em sua cabeça. “O ciclone Idai me lembrou justamente essa história. Me deixou um sentimento de culpa de não voltar pra casa para ver como tudo estava. Mas, diferente da Saminingo, eu sei agora que os familiares estão bem.”

Para doar às vítimas dos ciclones Idai e Kenneth, acesse: https://crisisrelief.un.org/mozambique-flash-appeal.

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Por Amanda Mazzei – Jornalismo Jr. ECA USP

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