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A resistência Juma: Seis meses após a morte do Pajé Aruká

Os seis meses da morte do Pajé Aruká Juma, apesar da saudade, marcam um novo capítulo da história do seu povo. Ivaneide Bandeira está exilada em seu próprio país para não morrer: se não de Covid, nas mãos dos garimpeiros. Doutoranda em Geografia e gestão de territórios, a ativista e coordenadora de projetos da ONG Kanindé, de 62 anos, atualmente trabalha com 21 etnias de Rondônia, do Noroeste do Mato Grosso e do Sul do Amazonas. Os Juma, ou Borahás, fazem parte desse grupo. Os perigos que hoje cercam a ativista, antes, já eram uma realidade para eles. E ainda hoje os perseguem. Há seis meses, em fevereiro, o perigo mais recente, o vírus da Covid-19, acometeu o Pajé e último homem da etnia.

Povo Juma e o Pajé Aruká

Apesar dos esforços para evitar a doença, todos da Aldeia Juma foram contaminados. “Por incrível que pareça, mesmo quando se toma bastante cuidado, às vezes o cuidado escorrega”, disse Puré Juma, neto de Aruká. É impossível impedir as conversas e refeições na maloca. O distanciamento não faz parte da rotina da aldeia. Para evitar possíveis reinfecções, o contato com pessoas de fora está suspenso. Já as normas sanitárias continuam sendo seguidas. No dia 9 de junho, Mandeí Juma esteve na Casa de Saúde do Índio (Caseí) com sintomas do novo coronavírus. O primeiro exame deu negativo. Ela o repetiu, mas, até o momento da ligação, o resultado não havia saído e, com o retorno para a Aldeia, a comunicação ficou inviável. A vacinação contra a Covid-19 ocorreu em abril e todos se vacinaram. Não podem correr o risco de que a doença, que os tirou seu símbolo de resistência, levasse também os outros.

Conhecido antes sob o nome Kagwahiva, os Juma residiam no Alto Tapajós, no Pará. Depois, migraram para a região do rio Purus, no estado do Amazonas. O contato tardio, que só aconteceu em 1922, não impediu as invasões de terra, massacres e roubos de acontecerem. Como resultado, os indígenas viram seu número ser reduzido drasticamente. Se estudos do século XVIII apontavam entre 12 e 15 mil, hoje são 15 Borahás vivendo na Aldeia Juma, no município de Canutama, Amazonas: três mulheres e seus filhos.

“Tem que ter uma força pra resistir, como meu avô”, alega Puré. Aruká era símbolo de resistência do seu povo e um grande tesouro para o movimento indígena. Ele guardava em sua memória as tradições, a cultura, a língua, a luta e a defesa por sua terra. Seu cinto de cipó, sempre amarrado à cintura, materializava o seu ser Kagwahiva. Nunca esquecia-se de usá-lo, pois era necessário mostrar que, apesar do genocídio, ele ainda estava lá. E continuava firme. Do português, Aruká só sabia umas três ou quatro palavras. Sua comunicação era toda em Tupi-Kagwahiva. O Pajé foi o único indígena que sobreviveu a todo o massacre contra os Juma, inclusive ao de 1964, ocorrido em Tapauá, cidade amazonense.

Em uma madrugada de abril de 1964, seis homens invadiram a Terra Indígena Juma, a mando de Orlando França, comerciante de sorva. Não houve confronto, pois nem um só invasor saiu ferido. Dos indígenas, alguns estipulam que 40 ou até mesmo 60 foram mortos. Segundo relatório do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Daniel Albuquerque, naquela época prefeito de Tapauá, também teria participado do crime sobrevoando a Terra Indígena Juma para reconhecê-la. Ele, porém, sempre negou. As memórias do massacre ainda doíam nos sobreviventes.

Aruká Juma, Pajé do povo Juma.
​“Ele queria mostrar que ele era Juma, que, apesar de terem matado todos os Jumas, ele estava lá, Juma”, explica a professora Ivaneide. Na foto, Aruká Juma. | Foto: Puré Juma.

O próprio Aruká não falava sobre o capítulo sangrento que acometeu os seus. Por isso, 15 anos se passaram até que a etnia desse continuidade à linhagem. O nascimento de Borehá marcou, então, mais um capítulo da obstinação dos Juma. Mãe do Puré, Borehá é fruto do casamento entre Aruká e Mborehá. Atualmente, ela é a cacique da aldeia. Da união de Aruká e Mborehá vieram também outras meninas, Maitá e Mandeí. Com a morte da matriarca, foi Aruká o responsável por transmitir toda a cultura às suas filhas. Era necessário que o ser Juma fosse além do corpo e que estivesse impregnado na essência daquelas crianças.

Puré Juma faz parte da geração mais recente. Fruto do casamento interétnico entre Juma e Uru-eu-wau-wau, aos 19 anos, já se divide entre as suas responsabilidades juvenis e as da liderança indígena. Apesar da linhagem Uru-eu, advinda de seu pai Erowak, Puré se identifica como Juma. “Eu posso dizer que eu sou Puré Juma Uru-eu-wau-wau, ou seja, eu praticamente sou mestiço, né? Mas eu me considero mais do povo Juma. E me considerar do povo Juma me fortalece e dá uma diferença muito grande”, fala com convicção.

Puré, filho de Borehá.
​“E para quem ouse desafiar o povo Juma: o Povo Juma nunca vai se rebaixar para ninguém. Mesmo nos dias de sol, chuva, noite, a determinação, a luta pelos seus direitos e o respeito serão os mesmos.” | Foto: Puré Juma.

​Na aldeia, em Canutama, Puré é coordenador da Associação Indígena do povo Juma, criada em 2020. Em Humaitá, cidade que fica a 185 km da aldeia, é estudante do Ensino Médio-técnico no Instituto Federal do Amazonas (IFAM). Ao fim desse ano, já estará formado como técnico administrativo. Os seus estudos não o distanciam das suas origens, pelo contrário: são usados para conquistar novos espaços. Seu Projeto de Conclusão de Curso vai contar a biografia do seu avô, Aruká Juma “para mostrar às próximas gerações quem foi o povo Juma e quem foi nosso avô”, ele conta. O jovem pensa em transformar seu projeto em livro, no futuro.

A veiculação da morte do pajé parecia decretar o fim de toda a etnia. A profunda desaprovação de Ivaneide com essa abordagem, contudo, aparece no tom irritado de sua voz. Ela julga ter faltado uma análise de gênero sobre o caso. “Porque morreu o homem, desapareceu o povo? Ei, as mulheres estão lá, sabe?”, alerta. A ativista reconhece a importância de Aruká — afinal, era Pajé — , mas os Juma não sumiram com a sua morte. Pelo contrário, continuam firmes com as mulheres Borahá em cargos de liderança, dando continuidade à uma história de lutas, resistência e vida.

Puré também reconhece a importância de sua mãe e suas tias para sua cultura. “Nós estamos dialogando com essas três que permanecem, que eu posso dizer que é Juma”, reafirma.

No povo Juma, as mulheres sempre foram caciques. Segundo documento da ONG Kanindé, “Terra Indígena Juma”, as “cacicas” são escolhidas pelo povo. Mandeí já foi cacique. Borehá é a atual. São as mulheres que organizam a rotina da aldeia, fazem a proteção territorial e planejam a colheita. Além disso, são elas também que fazem a representação indígena fora do seu território. É, por fim, de sua responsabilidade passar para as próximas gerações a cultura Juma. Mesmo casada com líderes Uru-eu-wau-wau, não se deixaram dominar: “na sua aldeia, quem manda são elas”, completou firmemente Ivaneide.

A ativista continua dizendo como a resistência das mulheres permanece com a manutenção da sua liderança. “Elas permanecem firmes culturalmente”. Geralmente, esses cargos sofrem influência da Funai, que acaba investindo em homens que sabem falar português. Das três, a que tem o melhor domínio da língua é Mandeí. Ela aprendeu português quando foi morar na Aldeia Alto Jamari, do povo Uru-eu-wau-wau. Pedro, também historiador e integrante do CIMI, conta que a indígena aprendeu a língua para que pudesse também levar a palavra para o branco, já que eles não faziam questão de aprender Kagwahiva. Borehá, a cacique atual, sabe pouco a língua portuguesa, mas nem mesmo o órgão indigenista foi capaz de passar por cima disso.

A língua também é fator importante para que a etnia Juma não se extinguisse. Em 2015, a prefeitura de Canutama construiu uma escola infantil aos moldes não indígenas, na aldeia Juma. Isso era um avanço para as mulheres Juma, que não precisariam percorrer um extenso caminho e muito menos separar as famílias. Antes, as crianças Borahás tinham que residir na Aldeia Alto Jamari para facilitar seus estudos. Apesar da facilidade que a escola na aldeia apresentava, tinha-se um problema: a professora contratada em 2020 não era bilíngue. Falava apenas português.

Jordeanes Araújo, professor e pesquisador da Universidade Federal do Amazonas, trabalhou no doutorado com os indígenas Tenharim, que fazem parte do mesmo tronco linguístico dos Juma, o Tupi-Kagwahiva. Araújo explica que é na língua que há a manutenção da própria cosmologia Juma. “A língua foi responsável pela não extinção. É ela quem dá a continuidade da cultura”, afirma. Nesse sentido, o uso de material e aulas da língua materna são essenciais para o fortalecimento e a passagem da cultura. Quem assume esse posto de professora de Kagwahiva é a Mandeí Juma. Aliás, quem detém o conhecimento da língua são as mulheres Juma, responsáveis por passá-la aos seus filhos, filhas e netos. Aruká, por exemplo, só falava Kagwahiva e sabia pouquíssimas palavras em português. “É nesse aspecto que os netos se assumem Juma e não Uru-eu-wau-wau”, conclui.

Borehá Juma e seu filho Puré.
Ao lado de Puré está Borehá, sua mãe e atual cacica. Além dela, há outras duas mulheres Juma, filhas de Aruká: Mandeí e Maitá. | Foto: Puré Juma.

​A terra é outro ponto necessário para a vitalidade de um povo indígena, e a sua ancestralidade tem ligação direta com quem nela habita. Esses são pensamentos do historiador Pedro. Retirar um povo indígena de sua terra sem qualquer estudo antropológico pode quebrar um elo cultural de maneira irreparável e implicar em mudanças nos modos de caça, nas tradições e nos seus espíritos protetores. “A nossa sociedade ocidental cria essa ideia de que os indígenas são todos iguais, mas não é assim”, protesta. Assentar indígenas em terras que não são suas pode, inclusive, gerar conflitos entre alguns povos. Desde 2014, a partir de uma pesquisa própria, Pedro estuda a possibilidade de existência de um possível grupo isolado dos Juma, dissidentes do massacre de 64, em Tapauá.

Depois do contato com brancos, os Jumas chegaram a migrar para duas cidades, Tapauá e Lábrea, ambas no Amazonas, antes de se firmarem em Canutama, além de viverem por mais de uma década na Aldeia Alto Jamari. Na época, os únicos dois idosos do povo, Inté e Marimã, morreram pouco tempo depois de chegarem ao Alto Jamari. Até hoje não se sabe a causa das mortes. Faleceram sem jamais ter voltado à sua terra. Temendo que o estado dos indígenas se agravasse, os órgãos indigenistas pediram com urgência que a Funai tomasse a assistência integral do povo. Tempos depois, porém, em 2004, a mesma Funai tentava assentar indígenas Guarani Mbya na Terra Indígena Juma. O assentamento dessas famílias só não foi concluído devido às denúncias do CIMI.

Imigrar também era sinônimo de resistir frente a ataques e doenças. Dado o imenso território que os Juma tinham, deslocar-se dentro dele era uma das opções quando sentiam que era necessário se proteger. Com o avanço dos extrativistas, as invasões aumentaram e os conflitos se intensificaram. A pressão exercida sobre o território afetava diretamente os indígenas, que não viam saída. E os Juma guerreavam: “eles acreditavam que era melhor morrer do que recuar”, conta o indigenista. Atualmente, mudar-se para um novo território por conta própria é quase impossível. “Não se pode mais dar um passo pra frente, porque senão pisa num terreno de alguém que se diz dono”.

A instabilidade na internet — tanto a da repórter, quanto a do indigenista — não deu trégua. Apesar disso, Pedro prossegue explicando que as atuais demarcações das terras indígenas esquecem-se das terras de outrora que os povos já habitaram. Mesmo que na atualidade não residam lá, ela é ainda uma terra ancestral e sagrada. Ele relembra, por exemplo, que Tapauá, apesar do massacre, já abrigou a Terra Indígena Juma um dia. Puré também menciona Tapauá como o antigo centro da Aldeia do seu povo. Na falta das terras para promover o fortalecimento de uma etnia, o historiador conclui: “atualmente, os casamentos são os elos que evitam possíveis enfraquecimentos dos povos”.

Aldeia do povo Juma.
Aldeia Juma vista do alto. A Terra Indígena Juma atualmente está localizada na cidade de Canutama, no Amazonas. | Foto: Puré Juma.

​A ativista suspira. Ela conta que não tem sido fácil para os indígenas. As pressões vêm de todos os lados: do governo, da mídia, das universidades, de quem mora no entorno. “Uns cobram que eles vivam como no passado, enquanto outros cobram que eles vivam brancos”, diz a historiadora. A vida aqui fora, além disso, é invasiva a ponto de muitas vezes mudar a organização social desses povos. Para garantir a sobrevivência dos Juma, a Funai tem como plano a fiscalização e a proteção da terra. Assim, as unidades de Coordenações Regionais (CRs) planejam, monitoram e executam os Planos de Trabalho de Proteção Territorial (PTPT). “O que eu espero é que eles continuem resistindo. E que continuem Juma”.

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Por Beatriz Coutinho – Fala! UFRJ

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