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Opinião: O outro Brasil – as consequências da desigualdade regional

Um país de tamanho continental como o Brasil guarda as mais variadas paisagens, culturas, povos e identidades espalhados por seu território, fato que o torna único e exuberante aos olhos daqueles que têm orgulho de fazer parte dessa terra. São praias paradisíacas e turísticas, cidades históricas e cosmopolitas, serras, vales, pantanal, cerrado, mata atlântica e amazônica, sertão e outras regiões que ajudam o País a ser ponto de referência do turismo. É até difícil acreditar que tamanha diversidade esteja contida em um único país.

Contudo, como nem tudo é perfeito (em muitos casos, algo que se aproxime da perfeição é quase inalcançável por incalculáveis motivos), ao mesmo tempo em que o Brasil é privilegiado com as belezas naturais e artificiais, também sofre com problemas seríssimos e antigos que perduram desde os primórdios do País, isto é, desde a chegada das primeiras naus que transportavam os europeus que, tempo depois, tomaram o título de “descobridores do Brasil” para si.

Os problemas e desafios que a população brasileira, de uma maneira geral, enfrenta nos dias hodiernos foram iniciados já em meados de 1500, com o genocídio indígena, o início do árduo e longo ciclo de escravidão e a exploração desenfreada dos recursos naturais, como, a priori, a do pau-brasil, por parte dos visitantes.

Mas, como uma forma de melhor analisar esses empecilhos, é fundamental que haja uma minuciosa análise de cada um desses problemas a fim de cessá-los. Ultimamente, mesmo não sendo, como já falado, uma problemática nova, a desigualdade regional do Brasil ganhou novos episódios que, impulsionados pela pandemia do novo coronavírus, retiraram a camuflagem presente durante muitos anos de pouco debate e de esquecimento.

Desigualdade regional no Brasil? O que é?

 É possível listar os diversos tipos de desigualdades existentes no Brasil e no mundo, como a de gênero, racial, de renda – entre outras – que, embora estejam interligadas em algumas situações, representam distintas definições e discrepâncias no cenário brasileiro.

A desigualdade regional é uma das maiores e mais antigas. Consiste na diferença social e/ou econômica entre regiões, províncias, estados ou cidades que trazem malefícios preocupantes à população dessas regiões pouco privilegiadas.

Brasil
Entenda as consequências da desigualdade regional no Brasil. | Foto: Antonio Scorza/ AFP/ Getty Images.

Na sexta nação mais populosa do mundo

No Brasil, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), principal órgão de geografia e dados sociais do País, utiliza, para melhor analisar o imenso território brasileiro, a divisão também usada pelos livros de geografia das escolas, do ensino fundamental ao ensino médio, em 5 grandes regiões: Sul, com três estados, Sudeste, com quatro, Centro-Oeste, com três mais o Distrito Federal, Nordeste, com nove, e Norte, com sete estados. A divisão foi feita levando em consideração as semelhanças culturais, territoriais e muitos outros, como relevo e clima.

Não é preciso um estudo muito técnico e aprofundado para chegar à conclusão de que algumas regiões gozam de uma realidade melhor e proporcionam, aos seus habitantes, um padrão de vida melhor do que outras. No nosso País, as regiões Sul e Sudeste sempre foram consideradas referências em fatores sociais, industriais, econômicos e financeiros.

Os três estados sulistas – Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina – possuem as menores taxas de analfabetismo, mortalidade infantil, homicídios e desemprego, enquanto têm os maiores IDHs (Índice de Desenvolvimento Humano), maior expectativa de vida ao nascer, saneamento básico, acesso à água potável e outros dados que qualquer brasileiro pode checar em portais oficiais do IBGE. Já no Sudeste, além de alguns estados também apresentarem índices considerados de referência, conta com a maior concentração industrial do País, sendo considerado o motor econômico do Brasil.

Subindo um pouco no mapa, observa-se duas enormes regiões, com 16 estados se somadas. As regiões Norte e Nordeste do País possuem a maior diversidade em tudo o que se possa imaginar, justamente pelo tamanho inacreditável. As praias paradisíacas dos 9 estados nordestinos são cobiçadas por milhões de turistas no verão. A culinária impressionante e exótica do Norte, principalmente no Pará e no Amazonas, aguça a curiosidade dos aventureiros, além de, claro, a imensidão da floresta amazônica.

Entretanto, o atrativo turístico, essencial na economia de muitos desses estados, esconde uma disparidade gritante na realidade dos que vivem nessas regiões. Tanto o Norte quanto o Nordeste sofrem com uma marginalização, um isolamento, sustentado durante séculos que impactam nos dias de hoje. A preferência pela região centro-sul (formado, além dos estados do Sul/Sudeste, por alguns estados do Centro-Oeste, como MS, GO e o DF, e sul do Tocantins) no que tange à centralização do poder econômico do País apenas contribuiu com o atraso do Norte/Nordeste, levando a um verdadeiro “êxodo rumo ao Sudeste” (milhões de pessoas oriundas dessas regiões saindo de suas terras em busca de emprego, principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro), à industrialização tardia, aos índices sociais comparáveis a países da África Subsaariana e à discriminação.

Retornando às estatísticas e comparando alguns estados do N/NE com alguns do Sul/Sudeste, é possível perceber a lacuna: O menor IDH do Sudeste (Espírito Santo, com 0,772) ainda se encontra acima do maior índice do Norte/Nordeste (Roraima, com 0,752). Na desocupação da população, o desemprego, observa-se que a menor taxa pertence a Santa Catarina, no Sul, 6.6%, enquanto a maior está com a Bahia, do Nordeste, com 20.7%.

Seguindo nesse âmbito, é ainda mais preocupante se listarmos as taxas de desempregados por estado e por ordem numérica. Dos 10 estados com os maiores índices de desemprego do País, 7 são do Nordeste, 2 do Norte e apenas 1 do Sudeste.

Se estudarmos os dados relacionados à expectativa de vida, que nada mais é do que o tempo médio de vida que a população de um determinado local possui, a disparidade parece ainda maior. Os estados com a maior expectativa são, em sequência e em ordem decrescente, Santa Catarina (79.9 anos), Espírito Santo e Distrito Federal (79), Rio Grande do Sul (78.5), São Paulo (78.4), Paraná e Minas Gerais (78), Rio de Janeiro (77), Rio Grande do Norte (76.4) e Mato Grosso do Sul (76.3).

No outro extremo da tabela, os 8 piores ranqueados são Sergipe, 73.4 anos, Pará e Alagoas, 72.7, Amazonas, 72.6, Roraima, 72.4, Rondônia, 72, Piauí, 71.6, e Maranhão, 71.4. Ou seja, das 10 maiores médias, 7 são do Sul/Sudeste, 2 do Centro-Oeste e apenas 1 do Norte/Nordeste. Por outro lado, na classificação dos piores, 4 são do Norte e 4 do Nordeste. Na prática, é como se um nortista ou nordestino nascesse já tendo em mente que ele viverá menos em relação a um sulista ou sudestino. Você pode, como já dito, acessar os portais do IBGE, conferir outros dados e colocá-los lado a lado.

Esse abismo entre as regiões brasileiras já foi, e ainda é, objeto de estudo de diversos geógrafos, historiadores e sociólogos. Um deles foi o jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano, que, na década de 70, já se propôs a abrir debates e discussões acerca da desigualdade após publicar o renomado livro As veias abertas da América Latina, referência na área de estudo sociais das bases históricas latino-americanas.

Em um dos mais de 70 tópicos abordados no livro, Galeano discorre sobre as primeiras atividades dos europeus em solo brasileiro, a exemplo da divisão de boa parte da costa brasileira em Capitanias Hereditárias, da instalação de engenhos e do cultivo da cana-de-açúcar, bastante rentável ao velho continente, explica como essa monocultura desvalorizou o solo da região e por quais motivos essa “administração” colaborou com a desvantagem nordestina no cenário brasileiro, além de trazer informações que espetam o senso crítico do leitor ao comparar a qualidade de vida da maioria dos nordestinos com a de muitos países considerados paupérrimos.

Alguns episódios recentes reacenderam a chama da desigualdade regional e expuseram a necessidade de abordagens e soluções eficazes para essa urgência. Confira alguns deles:

O Amapá entre o apagão e a invisibilidade

Amapaenses tiveram dias de desespero após um grande apagão atingir quase todo o estado, inclusive a capital, Macapá, no dia 3 de novembro de 2020, em plena pandemia do novo coronavírus. O apagão teve início após um incêndio em uma subestação de uma empresa privada que abastece os municípios amapaenses.

A escuridão total dominou o estado por 4 dias, deixando boa parte da população sem acesso à televisão e, consequentemente, às notícias, à Internet, estabelecendo ainda mais barreiras nos hospitais já sobrecarregados com a Covid-19, estragando alimentos, prejudicando comércios e aumentando o preço médio de muitos produtos.

O que trouxe ainda mais revolta aos atingidos pela falta de energia foi a visibilidade quase nula à situação por parte da grande mídia do País. Coincidentemente, o início da crise no abastecimento no Amapá ocorreu no mesmo dia da largada da contagem de votos das concorridas eleições estadunidenses entre Joe Biden, democrata e mais tarde vencedor, e Donald Trump, republicano que tentava a reeleição para mais quatro anos no cargo. Grande parte da grade informativa nacional, incluindo telejornais e discussões, voltava-se às apurações nos Estados Unidos, fato que acabou ofuscando a emergência amapaense.

Após alguns dias do Amapá às escuras, muitas celebridades puxaram correntes de solidariedade, lançaram campanhas na Internet e cobraram medidas drásticas e imediatas do governo federal, além de questionarem: “E se fosse no seu estado?”, “Você está sentindo falta do Amapá?”.

A pergunta, talvez, que melhor se encaixaria nessa celeuma pudesse ser: “E se fosse em São Paulo? No Sul? No Rio de Janeiro? O Brasil seguiria normalmente a sua vida como se nada estivesse acontecendo ou pararia para acompanhar as notícias desesperadamente enquanto torce para que tudo se resolva o quanto antes?”. As respostas são automáticas, mas a reflexão nem tanto (e, com isso, as desigualdades vão se mantendo e até mesmo se fortalecendo).

É como se o Amapá não pertencesse ao Brasil ou, até mesmo, não existisse em atlas algum. Como uma narrativa padrão, os primeiros bairros a terem o reestabelecimento de energia concretizado foram, sem surpresas, os de classe-média alta da capital, deixando claro que a desigualdade regional dialoga com a desigualdade de classes e o elitismo. 

A pluralidade de crises no Acre

Como se uma crise sanitária (a maior em décadas) em todo o País e no mundo não bastasse, o Acre, um dos estados mais isolados, física e politicamente falando, teve que enfrentar um “combo” de problemas que parecem que combinaram entre si para atingir, ao mesmo tempo, os acreanos.

Em meados do dia 15 de fevereiro de 2021, um grande período de chuvas deixou 9 cidades do estado e a capital, Rio Branco, debaixo d’água e milhares de famílias desabrigadas. Os barcos e botes salva-vidas se transformaram nos principais meios de resgatar, transportar e abastecer a população nos municípios atingidos. Muitos bairros ficaram sem energia elétrica. 

Agora, some a isso a crise hospitalar causada não só pela avassaladora pandemia, mas também por um surto de dengue sem precedentes. De acordo com o Governo Estadual e o Ministério da Saúde, o estado já registrou, até o dia 27 de fevereiro, quase 55 mil casos de Covid-19, com quase mil óbitos, e mais de 1500 diagnósticos de dengue, além de mais 8 mil em investigação. Na capital, a taxa de ocupação dos leitos destinados para o tratamento de pacientes com Covid-19 beira os 90%, não contabilizando as internações provenientes da infecção pela dengue.

A lista de calamidades em solo acreano ainda não chegou ao fim. Junto a tudo o que aqui já foi citado, o estado ainda passa por uma crise migratória no município de Assis Brasil, fronteira com os vizinhos peruanos. Formado, em sua maioria, por haitianos, um grupo migratório deseja sair do Brasil rumo aos Estados Unidos em busca de emprego e melhores condições de vida, entretanto, eles acabaram, em março de 2020 – portanto, no início da pandemia no Brasil – retidos, na fronteira, por uma barreira sanitária estabelecida para evitar o fluxo de carros e pessoas e tentar conter o avanço do vírus nos dois países. Instalado por lá desde então, o grupo começa a pressionar as autoridades para que a passagem seja liberada e eles possam seguir a perigosa viagem rumo à América do Norte.

A escassez de oxigênio em pleno pulmão do mundo

 Na terceira semana de janeiro de 2021, um caos que já vinha sendo sinalizado há meses pelos órgãos de saúde começou a virar manchete em todos os meios jornalísticos e nas redes sociais devido à falta de leitos e, principalmente, ao esgotamento de cilindros de oxigênio nos principais hospitais do Amazonas. Na capital, Manaus, pacientes morreram asfixiados nos corredores do Hospital 28 de Agosto, referência no tratamento contra a Covid-19 no maior estado brasileiro em se tratando de território.

As acusações de negligência do Ministério da Saúde vieram à tona logo em seguida. Muitos especialistas afirmaram que o Governo Federal já tinha ciência da iminente falta de oxigênio na capital amazonense, mas nada foi feito. Com o passar dos dias e a situação se agravando em movimentos sufocantes, o governo do Amazonas decidiu transferir muitos pacientes para outros estados e recomendar que muitos hospitais deixassem de receber novos pacientes.

Ambulâncias enfileiraram-se nas portas dos hospitais e familiares acompanhavam, com um sentimento doloroso de impotência, os seus familiares à espera para receber algum tipo de atendimento. Algumas famílias tentaram mover montanhas para adquirir, a preços absurdos, cilindros de oxigênio para os enfermos. Outras, sem poderio financeiro, ficaram à mercê da boa vontade das autoridades competentes.

2 semanas após a realidade caótica ser instalada em Manaus, a falta de oxigênio estendeu-se para outras localidades, como o oeste do Pará, mesmo que em uma proporção menor do que a vivenciada na maior cidade do Norte brasileiro.

Reflexão e ação sobre as desigualdades no Brasil

São esses e outros exemplos que turbinam o sentimento de invisibilidade da população situada mais ao Norte do País. É como se um país continental como o Brasil se resumisse ao que chamamos de “eixo SP/RJ”. Resultado desse vão socioeconômico, os nortistas e nordestinos têm que lidar com um preconceito enraizado relacionado a uma visão ultrapassada de um Nordeste esfomeado, sedento por água, e do Norte atrasado no meio de um matagal e sem acesso aos meios tecnológicos modernos. Essa realidade desigual afeta, também, a ótica do turista estrangeiro que, com uma mentalidade já estereotipada, restringe o País ao Cristo Redentor, à Ipanema e à Copacabana. 

Estudar Geografia não é apenas decorar países, estados e capitais, mas saber enxergar as realidades dentro do país e tomar uma posição favorável ao fim dessas nuances seculares e cancerígenas do outro Brasil.

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Por Raul Holanda – Fala! UFPE

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