Conheça a história por trás da peça que inspirou o novo filme da Netflix, The Boys In The Band, que é considerada a primeira obra centrada na vivência gay
Atualmente, é bem mais comum encontrar personagens LGBTQ+ em produções midiáticas e culturais. Pode ainda não ser a melhor quantidade ou qualidade representativa, mas é um avanço, considerando que há pouco mais de cinco décadas isso seria inconcebível. Naquela época, uma censura limitava como pessoas queers eram representadas, carreiras poderiam ser arruinadas caso alguém abraçasse essa bandeira e as chances de fracasso da obra eram enormes. No entanto, houve aqueles que ousaram e conseguiram fazer o inimaginável acontecer.
Há poucas semanas, a Netflix lançou The Boys In The Band, mais um fruto do contrato de Ryan Murphy com a gigante dos streamings. O filme é uma nova adaptação de uma importante obra queer na história das artes cênicas. Mart Crowley foi pioneiro ao lançar, em 1968 (um ano antes da revolta de Stonewall, marco do orgulho LGBTQ+), a peça homônima, cuja trama e personagens são totalmente centrados na vivência homossexual. A obra foi a primeira a fazer isso e chamou muita atenção, como também gerou polêmicas – inclusive com a comunidade gay da época – e isso se repetiu com sua adaptação cinematográfica de 1970.
Durante anos, o texto de Crowley foi muito mal visto pela comunidade LGBTQ+. Apenas quando houve maior distanciamento da época do lançamento que a obra começou a ser ressignificada e mais bem vista, mesmo com certas ressalvas. Os bastidores de The Boys In The Band são tão interessante quanto a própria peça, envolve superação de barreiras, derrotas e redenção; tudo que um bom drama precisa.
The Boys In The Band
Primeiro Ato: A concepção da obra
Apesar dos anos 60 serem um período histórico próximo, muito mudou nas décadas que se passaram, principalmente quando observa-se a vivência queer. Há pouco mais de cinquenta anos, a homossexualidade ainda era considerada doença pela OMS e crime na maioria dos países espalhados pelo globo; eram tempos difíceis para expressar livremente sua essência e até mesmo aceitá-la. Logo, não é surpresa que, neste período, não houvesse muitas representações midiática de pessoas LGBTQ+ e, quando tinham, sempre os retratavam como vilões abomináveis, pessoas imorais ou destinadas à tragédia.
Mart Crowley passava pelo pior momento de sua vida profissional, pois não conseguia vender seus roteiros por serem progressistas demais, e a frustração lhe fez desenvolver um sério quadro depressivo. Enquanto se reerguia, leu um artigo de Stanley Kauffman chamado Homossexual Drama and its deguises (em tradução livre, O Drama Homossexual e seus Disfarces), no qual o articulista apontava a falta de histórias mais reais sobre gays, mesmo quando tantos escritores e roteiristas eram homossexuais. Após a leitura do artigo, a ideia para a peça surgiu e, em 5 semanas, o texto estava pronto.
Diferente do que se pensaria, a peça não tinha pretensão de ser uma forma de ativismo, na verdade, era um modo de Crowley expressar a raiva que tinha por si e pela própria sociedade preconceituosa. Michael, o anfitrião e também protagonista, foi livremente inspirado no próprio Crowley; Harold, o aniversariante, foi baseado em seu melhor amigo, o dançarino Howard Jeffrey, assim como os outros personagens e a própria dinâmica do grupo tiveram referências em seu círculo pessoal de amizades.
O nome da peça foi uma referência a uma das falas do personagem de James Mason para a de Judy Garland, na versão de 1954 de Nasce uma Estrela: “Vocês estão cantando para si e para os rapazes da banda”. Já o enredo, retrata uma festa organizada por oito amigos gays, para celebrar o aniversário de um deles, mas mágoas afloram e desentendimentos começam quando um amigo hétero do anfitrião se convida para a celebração. Conforme a trama se desenvolve, temas como relacionamento aberto, solidão, homofobia, auto-aversão, depressão e tantos outros comuns aos gays da época vão sendo desenvolvidos.
Com o texto pronto, Crowley começou a desenvolver a montagem da peça, a parte mais complicada do processo, pois ninguém queria comprometer a carreira se associando ao projeto. Foi então que Laurence Luckinbill, amigo dos tempos de faculdade de Crowley, aceitou participar da montagem e deu vida a Hank, mesmo com seu agente o desaconselhando. Depois outros atores foram entrando no elenco e a peça foi tomando forma. Em 4 de abril de 1968, The Boys In The Band abriu para apresentações no pequeno teatro Soho Playhouse, para as 5 apresentações previstas.
Segundo Ato: Um sucesso com um gosto amargo
Assim que estreou, a peça se tornou uma tremenda sensação, logo, o número das apresentações aumentaram e precisaram migrar para um teatro maior, o Theater Four, onde continuaram encenando até meados de 1970. O motivo de tanto sucesso foi a curiosidade do público com o tema inédito. Os gays ficaram curiosos para se verem representados num espetáculo e os héteros intrigados com o que assistiam.
Mesmo com avaliações positivas da crítica especializada e uma audiência volumosa, a recepção dos espectadores não foi a esperada. Por um lado, a peça gerava uma identificação do público gay com o drama dos personagens, tanto que, em entrevistas, Luckinbill conta ter ouvido frequentemente que seu personagem Hank ajudou alguém a se aceitar. Mas, no geral, esse mesmo público não queria se ver num retrato tão humilhante e depressivo como o da peça.
A obra também não ajudou muito numa melhor aceitação dos homossexuais pela sociedade. Edward Albee, autor de Quem tem medo de Virginia Woolf, relatou no documentário Making The Boys, produção referente aos bastidores de The Boys In The Band, que assistiu inúmeras vezes ao espetáculo e em cada uma delas observou uma plateia de héteros felizes por verem pessoas que não precisavam respeitar.
Apesar de recepção mista, logo houve interesse em adaptar a peça para o cinema, sendo lançada em 1970, dois anos após a estreia nos palcos. O filme contou com o mesmo elenco do teatro reprisando seus papéis, mas, mesmo com os esforços para o diretor também ser o mesmo, quem cuidou da direção para as telonas foi William Friedkin (O Exorcista). Mart Crowley cuidou da adaptação do roteiro, além de algumas escolhas criativas como o layout do cenário, inspirado pelo apartamento no Upper East Side de sua amiga, a atriz Tammy Grimes.
Friedkin sugeriu e até chegou a gravar uma cena na qual o casal do grupo teria um beijo apaixonado, mas descartou a cena na edição por achar que o filme já seria polêmico o suficiente. Ele estava certo quanto a isso, pois até o cartaz de divulgação enviado para os cinemas provocou resistência, por revelar que um dos presentes do aniversariante era um garoto de programa.
Quando o filme estreou, a reação do público foi a mesma com a da peça, mas com um agravante, a produção saía após Stonewall, ou seja, no auge da primeira onda do orgulho LGBTQ+. Assim, o retrato feito por Crowley se tornou antiquado e degradante, quase uma heresia, aos olhos da comunidade gay.
Como era de se esperar, integrar uma produção com um tema mal visto pela sociedade da época afetou a carreira da maioria dos atores. Alguns continuaram com trabalhos bem-sucedidos, mesmo que limitados; outros apenas conseguiam papéis pequenos e tiveram aqueles que a carreira acabou de vez. Hoje, a maioria do elenco original já faleceu, sendo que cinco deles morreram em decorrência da Aids.
Terceiro Ato: Uma nova chance
Em 1996, houve uma remontagem na Off Broadway (teatros menores com espetáculos iniciantes ou menos populares). Com o distanciamento da época de lançamento e até por conta de uma maior estabilidade da situação do movimento LGBTQ+, o texto de Crowley foi ganhando um olhar diferente. Como dito numa das reportagens da época, admirar The Boys In The Band voltou a ser permitido.
No entanto, a redenção final da obra veio com o revival de 2018. Dessa vez, a peça seria encenada num grande teatro da Broadway, Booth Theatre. O elenco contava com Jim Parson, Matt Bomer, Zachary Quinto, Andrew Rannells e outros atores abertamente gays com carreiras já bem-sucedidas, assim como o diretor, Joe Montello, e o produtor Ryan Murphy. Mart Crowley, já em idade avançada, também participou da adaptação do roteiro junto com Montello, dessa vez atualizando alguns poucos aspectos da história, que fizeram certa diferença quando somados às novas interpretações.
Os momentos em que havia falas racistas foram cortados ou ganharam reações diferentes, numa tentativa de não normalizar tal comportamento; também escalaram um ator de origem latina para interpretar Emory, numa tentativa de não isolar Bernard como o único personagem não branco. Emory ganhou uma nova interpretação e interação com o grupo, o tornando mais humano e afastando sua imagem da caricatura de gays afeminados que servem apenas para serem humilhados. Outros personagens também ganharam novas nuances e se tornaram mais reais.
A nova montagem fez um enorme sucesso com público e crítica, sendo até reconhecida com um Tony (Oscar do teatro) de Melhor Revival. Então, aproveitando seu contrato com a Netflix, Ryan Murphy levou mais uma vez a obra de Crowley para as telas. Da mesma forma que o filme de 1970, o elenco é exatamente o mesmo do teatro e, dessa vez, o diretor também. Apesar de também se envolver na adaptação, Crowley faleceu antes do lançamento.
Observando os comentários em diversas redes sociais, as novas adaptações foram bem recebidas pela comunidade LGBTQ+, diferente do que ocorreu cinquenta anos atrás. Mesmo com algumas críticas, a obra ganhou um status de retrato histórico de uma época que não se tinha as mesmas liberdades de hoje. Sem contar que, mesmo após cinquenta anos, o texto ainda conversa com as novas gerações, pois os dramas pessoais de cada um dos amigos não ficaram tão datados.
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Por Anna Carolina Ferreira – Fala! PUC