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Opinião: O mito da maldição de Cronos e o personagem político de Bolsonaro

“Há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar a nossa vã filosofia”. É nesse abismo de Hamlet, entre a razão e o espaço ocupado por narrativa alguma, em que se impõe o domínio da mitologia clássica. Caracterizados por um simbolismo intrínseco, os mitos demonstram sua força através da tradição e, mesmo que tenham ou não sobre si o valor de verdade, são responsáveis por ordenar toda uma sociedade ao redor de seu sagrado.

De encontro à trivialidade de se pensar a filosofia grega como uma ruptura nas diretrizes do pensar, Jean-Pierre Vernant, em Mito e pensamento entre os gregos, escreve que “em uma época em que se inquieta pelo seu futuro e em que põe em dúvida os seus princípios, o pensamento racional volta-se para suas origens: interroga o seu passado para se situar, para se compreender historicamente”. Ele ainda argumenta que as cosmologias filosóficas distendem e reiteram as representações míticas, em uma lógica contínua na busca de respostas para as mesmas perguntas.

Em sua forma mais pura, a filosofia manifesta nossa origem e todas as histórias antigas que, ainda hoje, nos regem. Nesse sentido, há paralelos a serem traçados entre Cronos – filho dos céus estrelados e da terra, titã da astúcia e da trapaça – e a figura política de Jair Bolsonaro.

A relação entre Cronos e a figura política de Jair Bolsonaro
A relação entre Cronos e a figura política de Jair Bolsonaro. | Foto: Reprodução.

A origem da maldição de Cronos

Nas narrativas primordiais, o mundo nasceu de um vasto abismo, o Caos (kháos). É desse vazio, espaço ilimitado da desordem e onde nada em si existe, que surge a Terra, do grego Gaia (Gaia). Ela representa a estabilidade e a exatidão que se contrapõem à existência do Caos, mesmo que ainda reúna, em seus abismos, a vertigem e o sombrio que a precederam.

Depois de Caos e Gaia, aparece Éros, amor intrínseco e primordial. É a expressão de uma pulsão no universo que, em Gaia, faz germinar o que existe em suas próprias raízes. Sem precisar se unir a ninguém, Terra, em primeiro lugar, traz ao mundo Urano (Ouranós) e, em sequência, origina Ponto (Póntos), respectivamente céu e água, onda do mar.

O céu, ou seja, Urano, tem o mesmo tamanho de Gaia. Simétrico à sua mãe, ele se deita sobre ela, cobrindo cada porção de terra com um pedaço equivalente nos céus. Na presença das duas divindades, o amor não mais se manifesta de forma única em cada ser e surge da união entre forças, do poder de Gaia somado ao poder de Urano.

Violentada sucessivamente, Gaia engravida de Urano, mas é impedida de dar à luz, por não haver, entre céus e terra, espaço para vida. Cansada e furiosa por reter em seu ventre todos os seus descendentes, a deusa primordial explode de raiva e manifesta seus desejos de liberdade aos filhos que, presos em seu corpo, a sufocam.

Ela arquiteta, então, um plano para fazer cessar a violência a qual era submetida. Concebe dentro de certo tipo de foice, em metal branco, e articula com o mais jovem dentre seus sucessores, Cronos, uma vingança contra o deus-céu. Quando este a invade mais uma vez, o caçula corta as partes sexuais de seu pai, jogando-as ao mar.

Ao ser castrado, Urano se fixa no alto, acossado a não mais decair. Separados, céu e terra abrem espaço para o surgimento da vida. Outros seres agora podem respirar, criar e se reproduzir. Quando se afasta de Gaia, o deus-céu brada a seus filhos: “Ireis chamar-vos titãs, porque estendestes os braços alto demais, ireis expiar o crime de ter levantado a mão para vosso pai”.

As gotas de sangue que jorram de seu membro decepado originam as Eríneas, guardas da vingança entre mortais, que resguardam a lembrança da dor infringida a algum familiar. São forças primordiais a serviço da vingança e representam a raiva, a memória do erro e o castigo. Tem início, dessa forma, a maldição de Cronos que, algum dia, haverá de pagar a dívida pelo sofrimento de seu pai.

No período seguinte, desponta a dinastia dos titãs, que se instalam no mais alto dos céus, governados por Cronos, herdeiro do reino dos deuses e do mundo. Ele, persona da audácia e lascívia, se casa com Rea, sua irmã e aspecto mais humanizado da terra. Com ela, gera uma segunda geração de deuses, mais tarde nomeados como Olimpianos. Cada um dos Olímpios terá seu próprio nome, essência, relações e esferas de influência.

Amedrontado pela maldição do pai, Cronos come seus próprios filhos, escondendo-os em sua barriga. Como afirmou Elias Canetti: “Tudo o que se come é objeto de poder. O faminto preenche um espaço vazio dentro de si próprio”.

Na tentativa de frear o impacto do destino que se aproximava, Cronos sorvia o poder de seus descendentes, ao aniquilar possíveis adversários, impedindo-os de sequer existir. Seu pior pesadelo era ser destituído. É a posterior astúcia de Rea que libertará Zeus, primeiro olimpiano, deus responsável pela nova ordem mundial e aquele que libertará o mundo das ambições do pai.

A relação entre a maldição de Cronos e a figura política de Bolsonaro

O pesadelo brasileiro traz cores à velha história grega. Bolsonaro reproduz o cerne do titã primordial quando, por exemplo, em uma reunião ministerial do dia 22 de abril – cujas imagens foram liberadas na última sexta-feira – ataca governadores e prefeitos, eclipsando suas conquistas no combate ao novo coronavírus.

Ao defender um medicamento com graves efeitos colaterais como a grande salvação do país, ele envenena pessoas. Medicamento este que, inclusive, segundo maior pesquisa já realizada sobre o assunto, publicada pela Revista The Lancet, deteriora as chances de melhora em pacientes com Covid-19.

Ele, do mesmo modo que Cronos, sorve da popularidade de seu possível adversário João Dória, ao nomeá-lo “leviano” ou “demagogo”. É uma ameaça. E, quando ameaçado, o presidente brasileiro rosna, mesmo que jamais consiga morder. Em suas quase insanas tentativas, Jair Bolsonaro é o cão que late para o carteiro enquanto preso pelos portões, representados por sua decadente aprovação popular e pelo frágil apoio no Congresso Nacional.

Bolsonaro gripezinha
Jair Bolsonaro. | Foto: Reprodução.

Ele se alimenta da morte quando se coloca acima da ciência, da verdade e das pilhas de vítimas que se amontoam em ritmo frenético. Assim também o faz ao reafirmar a falsa dicotomia entre saúde e economia, ao insultar povos indígenas, ao se colocar como o grande inimigo da Amazônia e ao disseminar 1026 declarações falsas ou distorcidas em apenas 506 dias no cargo, segundo dados do radar Aos Fatos.

Sucessivamente, reproduz o pesadelo de Cronos: perder, ser derrotado pelo poder. É a sua incrédula ambição, ao lado de sua ignorância, que o fazem matar pelo medo. Bolsonaro é uma bela pintura das tradições orais gregas quando ataca o Congresso, rechaça o Supremo Tribunal Federal e se intitula “Constituição”. Ele entope as veias de nossa democracia com cloroquina e, dessa forma, a enfraquece. Trata-se da velha construção pelo terror, do jogo de ganhar ou morrer.

Tal como seu semelhante na linguagem antiga, é um governante amedrontado pela maldição que já o assola, que já o faz temer a cada dia em que suas menções no Twitter, mesmo com a atuação massiva dos bots, são em maioria negativas. Ele se agarra a um último fio de expectativa e mobiliza a base mais extrema de todo o seu grupo de apoio.

Além do mais, Bolsonaro nunca se ocorreu em lamentar pelas diversas vítimas: as do coronavírus e as do Estado – marcas da ditadura, das políticas de genocídio negro e do crescente desmonte do SUS e dos órgãos de proteção social. O presidente está matando o Brasil, engolindo todos aqueles que manifestam a transgressão de sonhar com uma pátria mais harmônica. Ainda assim, ele, por estender os braços alto demais, irá expiar o crime de ter levantado a mão para nossa mãe: a Constituição.

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Por Ana Flávia Pilar – Fala! UFRJ

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