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5 clássicos da literatura para compreender os regimes autoritários

Diante de conjunturas políticas instáveis e cada vez menos previsíveis, é notável o aumento do interesse de muitas pessoas no que concerne às dimensões estruturais e características de regimes pautados no autoritarismo e nas violações aos direitos fundamentais. Para um melhor esclarecimento acerca do respectivo assunto, se faz necessária uma boa análise de obras literárias que marcaram gerações e promoveram profundas reflexões que transcenderam ao tempo em que foram escritas.

Segue uma lista expositiva e explicativa dos principais livros em questão; lembrando que as pequenas explanações não possuem o intuito de fornecer uma resposta pronta e categórica aos problemas e indagações levantadas pelas obras, portanto, não exime o leitor de um contato direto com os clássicos a serem citados.

O Conto da Aia, de Margaret Atwood

O Conto da Aia. | Foto: Reprodução.

Como outras coisas agora, os pensamentos devem ser racionados.

O Conto da Aia, da escritora canadense Margaret Atwood, nos apresenta uma distopia em que os Estados Unidos se encontra governado por um autoritarismo essencialmente  fundamentalista, puritano e patriarcal denominado de República da Gilead. A história é contada em primeira pessoa por uma mulher chamada Offred, cujas experiências de vida permitem um maior conhecimento das nuances da realidade do governo supramencionado.

Em suma, nesse regime, há um grupo de mulheres conhecidas como “aias” (servas) e que são mantidas para fins reprodutivos por uma classe dominante em uma era marcada pela queda na taxa de natalidade, devido a problemas constantes de esterilização oriundos de causas variadas como poluição e doenças sexualmente transmissíveis.

“Offred narra sua experiência nessa nova sociedade enquanto relembra momentos de sua vida anterior à mudança de governo, anterior a República de Gilead. As mulheres desse novo mundo são separadas e categorizadas, sendo a figura da Aia a mais emblemática, importante e discriminada. Como a fertilidade humana não é mais a mesma, as Aias – vestidas sempre em longos trajes vermelhos, quase como freiras, cobrindo os rostos com chapéus brancos de abas largas – são necessárias para assegurar não apenas a manutenção do novo regime, como da vida em um todo”.[1]

As vidas das Aias, em praticamente todos os seus aspectos, são vigiadas por Comandantes e por suas esposas, que vivem no anseio pelos bebês que as aias possam vir a gerar; pelas chamadas “Tias”, responsáveis pela instrução de grande parte das mulheres férteis, ensinando-as os preceitos da submissão e os modos a serem seguidos durante o ato sexual para possível gravidez. “Com uma vida pautada na repressão, a Aia ainda precisa se submeter a um ritual surreal em que deve fazer sexo com o Comandante designado, sob a inspeção da Esposa”[2].

Acerca da ascensão do regime totalitário em questão, o livro afirma que, em meio ao caos provocado por problemas políticos e ambientais, movimentos fundamentalistas surgiram como uma espécie de salvação para a conjuntura instável, ou seja, uma solução para a crise e, por conseguinte, um meio para o restabelecimento da ordem pública. Contudo, o preço foi alto, uma vez que o constitucionalismo democrático foi abolido, o Congresso Nacional foi tomado e os direitos fundamentais foram desprezados da forma mais hedionda possível.

Enfim, a obra nos mostra como o desprezo aos preceitos do constitucionalismo e do Estado democrático de Direito somado ao fundamentalismo é potencialmente perigoso e funesto. A violação dos direitos alheios em nome de uma cosmovisão representa a negação de um espaço público marcado pela liberdade civil.

Uma característica marcante descrita no romance é o isolamento do indivíduo, uma vez que várias personagens são retratadas como portadoras de uma opinião desfavorável ao governo, mas se sentem intimidadas e medrosas para compartilhá-la. A atomização do indivíduo é um fato nítido em regimes totalitários, sendo que a própria Hannah Arendt já demonstrou em suas obras a particularidade dessa característica nos regimes nazifascistas.

A opinião de Margaret Atwood consiste na alegação de que a concepção patriarcal e puritana é a mais propensa a gerar um Estado Totalitário, contudo, creio que seria reducionista interpretar a obra tendo como base exclusivamente a opinião da autora, uma vez que, atualmente, pessoas estão sendo oprimidas por regimes marcados pelo intervencionismo estatal e por visões de mundo pautadas na fé cega ao poder público.

Por exemplo, nosso direito à liberdade de educação é suprimido em nome de uma cosmovisão estatal, nosso direito à liberdade de imprensa é suprimido em nome da segurança nacional, o direito à livre iniciativa é violado em nome de um desejo de alguns em nome do interesse público.

[1]http://valkirias.com.br/o-conto-da-aia/

[2]http://valkirias.com.br/o-conto-da-aia/

1984, de George Orwell

“Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado.” (1984, George Orwell)

Enquanto existirem sociedades organizadas, sempre deve existir, ou pelo menos sempre haverá de existir, algum grau de censura.

O livro em questão representa um clássico da literatura mundial, portanto, não é preciso muito tempo para promover uma explicação acerca de seu enredo. Num futuro distópico, o mundo se encontra divido em três megablocos: Oceania (congregação de países de todos os Oceanos, incluindo a Inglaterra), Lestásia e Eurásia.

A Oceania é governada por um regime essencialmente totalitário pautado no controle dos indivíduos por meio da coerção e da limitação de pensamento. A história apresenta como personagem principal um funcionário externo do governo totalitário instituído pelo partido IngSoc (chamado de O Partido) e comandado pelo “Grande Irmão” (Big Brother)

“Para manter a “ordem” o Partido adotava medidas como incitar os próprios filhos a delatar os pais caso eles cometessem “crimes de ideia” ou “crimidéia”, segundo a “novilíngua”, ou “nova língua” instituída pelo IngSoc. A “novilíngua” e o “duplipensar” faziam parte da estratégia do Partido de reduzir a possibilidade das pessoas de se comunicar e expressar diminuindo assim seu poder de pensar por si mesmas.[1]

No livro, o governo se vale de Ministérios para falsificar dados históricos e até mesmo informações de diversos campos para moldá-las de acordo com os interesses da tirania do Grande Irmão. A opressão era holística, ou seja, envolvia todos os aspectos da existência humana: dimensão espiritual, física, mental e emocional.

“A opressão era física e mental. A Polícia das Ideias atuava como uma ferrenha patrulha do pensamento. Relações amorosas estavam entre as muitas proibições. Nesse cenário de submissão onde não há mais leis, mas sim inúmeras regras determinadas pelo Partido, ninguém nunca viu o Grande Irmão em pessoa. Uma sacada genial do autor: o tirano mais amedrontador é também aquele mais abstrato.”[2]

A obra nos apresenta as características mais marcantes do totalitarismo, a saber: coletivismo, vigilância constante, isolamento do indivíduo, a onisciência e onipresença do Estado, culto à personalidade do líder, patrulhamento ideológico, uso notável da propaganda, censura aos meios de comunicação e manipulação das massas. Orwell era um ferrenho opositor do nazifascismo, dos regimes socialistas e do intervencionismo estatal. Não é à toa que George Orwell era um grande admirador  do liberalismo de Friedrich Hayek e de sua grande obra O Caminho da Servidão.


[1]
https://www.infoescola.com/livros/1984-nineteen-eighty-four/

[2]https://guiadoestudante.abril.com.br/estudo/saiba-mais-sobre-o-livro-1984-de-george-orwell/

O Senhor das Moscas, de William Golding

O Senhor das Moscas, de William Golding. | Foto: Reprodução.

“A gente nunca é exatamente do jeito que alguém acredita que somos” (O Senhor das Moscas)

“Nenhum homem é, de fato, bom, enquanto não souber o quão mau ele é, ou poderia ser” ( Chesterton)

Nenhum homem sabe o quanto é mau, até se esforçar para ser bom. Só conhecemos a força do vento quando caminhamos contra ele, e não quando nos deixamos levar.

C.S Lewis

Senhor das Moscas é a obra mais reconhecida do escritor britânico William Golding. O livro procura ressaltar o surgimento dos autoritarismos a partir de uma profunda alegoria da natureza humana. O autor adota  uma perspectiva essencialmente agostiniana do homem e, para isso, se vale de personagens crianças para demonstrar que o mal se encontra enraizado em nós.

A trama tem início quando um avião, cujos passageiros são exclusivamente crianças, cai em uma ilha deserta. “Eles descobrem os encantos desse refúgio tropical e, liderados pelo protagonista Ralph, procuram se organizar enquanto esperam um possível resgate. Mas, aos poucos, esses garotos ‘inocentes’ transformam a ilha numa disputa pelo poder, e sua selvageria rasga a fina superfície da civilidade, que mantinham como uma lembrança remota da vida em sociedade” (Sinopse do Romance).

Diante do medo da luta pela sobrevivência, as crianças estabelecem uma hierarquia, uma ordem inspirada no mundo que conhecem, mas que será corrompida pela radicalização de posturas autoritárias. Em outras palavras, em tempos marcados pelo medo generalizado, não há necessidade de um líder racional, mas sim de um líder capaz de assegurar uma tranquilidade a todos, não importando os meios.

Trata-se de um resgate do pensamento de Maquiavel acerca de como seria a atitude de um verdadeiro “príncipe”. Para o pensador, um bom governante é capaz de controlar os eventos de uma adversidade e assegurar a sua continuidade no poder político. As pessoas anseiam por um sentimento de segurança, mesmo que isso signifique a negação da liberdade.

“Algumas crianças acham que a ilha é um lugar dos sonhos, sem pais, sem professores…Por que então obedecer ordens? Por que se comportar de acordo com as regras? Os líderes têm um papel crucial, e as crianças vão escolhendo a quem querem se unir até que eclode uma guerra entre os dois grupos. Os rumores de que uma besta habita a ilha fazem com que todas as crianças tenham medo e apoiem aquele que parece mais forte; outros acabam vendo a liberdade e o poder alimentando seus instintos mais selvagens. Assim, a ilha que no começo era paradisíaca, acaba se tornando um verdadeiro inferno repleto de destruição.”[1]

A obra dialoga intimamente com os pensamentos e ponderações dos contratualistas Jean Jacques Rousseau e Thomas Hobbes, ao nos colocar em um cenário marcado pela luta constante pela sobrevivência, desafiando as concepções tradicionais acerca da moralidade e do senso ético.

O livro apresenta uma verdadeira reflexão acerca da natureza do mal e de como estamos suscetíveis a regimes totalitários quando o medo generalizado se espalha pela sociedade. Para contribuir com essa linha de pensamento, segue uma lição de Benjamin Franklin: “Aqueles que estão dispostos a abrir mão de uma parcela da liberdade em troca de segurança, não são dignos da liberdade nem da segurança”.


[1]https://amenteemaravilhosa.com.br/senhor-das-moscas/

A Revolta de Atlas, de Ayn Rand

A Revolta de Atlas, de Ayn Rand. | Foto: Reprodução.

“Coletivismo é tirania disfarçada.” 

“A menor minoria da Terra é o indivíduo.”

Altruísmo imposto é criador de Hipócritas.

Ayn Rand

“Um Estado que torne os homens anões, a fim de que possam ser nas suas mãos instrumentos mais dóceis de seus projetos (mesmo que para fins benéficos) descobrirá que não é possível fazer grandes coisas com homens pequenos, e que a perfeição da máquina a que sacrificou tudo afinal não lhe servirá de nada, por faltar-lhe o poder vital que preferiu pôr de lado para tornar mais suave o funcionamento da máquina” (John Stuart Mill, em Sobre a Liberdade).

A obra em questão é um clássico da literatura norte-americana e representa um best-seller há mais de 50 anos, com 11 milhões de livros vendidos no mundo inteiro. O livro aborda uma versão distópica dos Estados Unidos, cujo governo controla boa parte da economia por meio de regulamentações e opressões constantes aos empreendedores, empresários e indústrias.

“Neste clássico romance de Ayn Rand, os pensadores, os inovadores e os indivíduos criativos suportam o peso de um mundo decadente enquanto são explorados por parasitas que não reconhecem o valor do trabalho e da produtividade e que se valem da corrupção, da mediocridade e da burocracia para impedir o progresso individual e da sociedade. Mas até quando eles vão aguentar? (…) Nesse cenário desolador em que a intervenção estatal se sobrepõe a qualquer iniciativa privada de reerguer a economia, os principais líderes da indústria, do empresariado, das ciências e das artes começam a sumir sem deixar pistas. Com medidas arbitrárias e leis manipuladas, o Estado logo se apossa de suas propriedades e invenções, mas não é capaz de manter a lucratividade de seus negócios.”[1]

Ayn Rand procura demonstrar a importância da livre iniciativa e da liberdade econômica na preservação de um ambiente político pautado na garantia dos direitos inalienáveis do homem. Milton Friedman, mais tarde, alegaria que não é possível um liberalismo político autêntico sem a existência e proteção dos princípios axiológicos da liberdade econômica.

A iniciativa privada favorece o desenvolvimento das potencialidades dos cidadãos, tornando-os indivíduos criativos, únicos, esforçados e produtivos. A vida em um mercado livre é marcada por grandes tensões, desafios, instabilidades, perdas, triunfos e empolgações, contudo, suportar tais adversidades e inconstâncias para garantir sua felicidade e sustento próprio é uma atitude extremamente nobre, uma postura heróica, na visão da autora.

No romance A Revolta de Atlas, os “heróis” são empreendedores afligidos pelo intervencionismo do Estado, pois os burocratas impõem medidas restritivas e limitadoras da amplitude da livre concorrência. Em suma, Rand expõe de forma clara os perigos da defesa de posturas estatistas pautadas no planejamento central da ordem econômica pelo Poder Público.

É quase impossível não traçar um paralelo com o clássico de Hayek, em O Caminho da Servidão, pois ambos apontam que a negação da liberdade econômica e das potencialidades individuais na produção e inovação é um passo importante rumo à destruição sistemática da liberdade como um todo.

“Quando você perceber que, para produzir, precisa obter a autorização de quem não produz nada; quando comprovar que o dinheiro flui para quem negocia não com bens, mas com favores; quando perceber que muitos ficam ricos pelo suborno e por influência, mais que pelo trabalho, e que as leis não nos protegem deles, mas, pelo contrário, são eles que estão protegidos de você; quando perceber que a corrupção é recompensada, e a honestidade se converte em auto sacrifício; então poderá afirmar, sem temor de errar, que sua sociedade está condenada.” (Ayn Rand)


[1]http://www.editoraarqueiro.com.br/livros/revolta-de-atlas/

Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley

Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. | Foto: Reprodução.

“O que é realmente assustador quanto ao totalitarismo não é que cometa atrocidades, mas que agrida o conceito de Verdade Objetiva” (George Orwell)

“Liberdade que ignora a diferença transcendental entre o Bem e o Mal acaba por negara própria Liberdade” (Venerável Fulton Sheen)

A ditadura perfeita terá a aparência da democracia, uma prisão sem muros na qual os prisioneiros não sonharão sequer com a fuga. Um sistema de escravatura onde, graças ao consumo e ao divertimento, os escravos terão amor à sua escravidão.

Aldous Huxley

O romance distópico de Huxley se passa em um mundo sem pobreza, fome, violência e doenças. Os seres humanos são criados em laboratório, com sentimentos pré-condicionados e divididos em castas, ou seja, a engenharia social governa tudo e a todos. Quando as pessoas se encontram em solidão, tristeza, estados de reflexão ou crises existenciais, basta o consumo de uma droga denominada “Soma” para dissipar tais sentimentos “lesivos” e “destrutivos”.

Nessa sociedade, há uma verdadeira “atomização do indivíduo”, pois as pessoas apenas se preocupam exclusivamente com a satisfação de seus desejos, uma vez que a cosmovisão majoritária nada mais é do que um materialismo hedonista. Sexo sem compromisso, individualismo exacerbado, abandono de uma ética do dever e a negação de valores morais elementares como honestidade, coragem, lealdade, fidelidade e esperança são traços típicos da sociedade descrita por Huxley.

Diferentemente de 1984, o governo no Admirável Mundo Novo não se mantém única e exclusivamente pela coerção, mas sim, pelo consentimento da população e pela alienação dos cidadãos, já que a satisfação de prazeres vulgares é considerada suficientes para “alegria” e “contentamento”. Alguns pontos são necessários para um melhor esclarecimento acerca dos questionamentos levantados pelo autor, tais como:

  • Os perigos de uma mentalidade cientificista positivista: O desenvolvimento da tecnologia desprovido de valores pode levar a uma completa abolição do homem. “Cada poder conquistado pelo homem é um poder sobre o homem” (CS Lewis).
  • O individualismo materialista, em última instância, é o principal fator para ascensão de totalitarismo: A negação de valores morais de altruísmo, solidariedade, caridade e justiça é a negação da própria concepção de política enquanto bem comum. O materialismo é a abolição do conceito de Verdade Objetiva e, por conseguinte, dos valores morais supramencionados.
  • Liberdade sem elementos da ética do dever e da ética das virtudes é a abolição da própria liberdade.
  • Os perigos da nivelação, padronização e massificação em uma sociedade do consumo são notáveis.

Enfim, os livros aqui abordados representam uma fonte inesgotável de reflexões, críticas e ponderações acerca do atual sistema político. Sendo assim,  espero que a leitura das explanações feitas até aqui tenha despertado um sentimento de explorar com mais afinco as obras supramencionadas. Asseguro que não será em vão.

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Leonardo Leite – Reaviva Mack – Universidade Presbiteriana Mackenzie

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