O Big Brother Brasil 20 acabou há mais de um mês e foi marcado por importantes discussões de questões contemporâneas, como machismo, sororidade feminina e racismo. O elenco da vigésima edição do programa foi o melhor de sua história e, apenas nos primeiros sete dias, o número de menções em redes sociais superou toda a temporada de 2019 do reality show da Globo. Entretanto, se engana quem acredita que as reverberações do programa acabaram com a vitória de Thelma, uma conquista simbólica pela história e representatividade da participante.
Em sua última live, uma entrevista com a jornalista Luanda Vieira, da revista Glamour, que também é negra, as duas conversavam sobre o racismo estrutural, e não demorou muito para que mensagens de ódio aparecessem. Isso só demonstra a importância de se debater o tema, pois ataques racistas continuam ocorrendo e a necessidade de um movimento como o #BlackLivesMatter (#VidasNegrasImportam) é a prova disso.
Um dos casos mais representativos foi o do empresário e guia turístico nos Estados Unidos, Rodrigo Branco, que, durante uma live no Instagram, declarou que “torcer por Thelma é racismo” e afirmou que a torcida dela só existia porque “ela é negra, coitada”.
Trajetória de Thelma no BBB20
Thelma é a quinta mulher consecutiva a ganhar o prêmio do BBB. Anônima, a médica de 35 anos, ultrapassou os famosos convidados pela Globo e era a única finalista pertencente ao grupo Pipoca, composto pelos integrantes inscritos da edição. Mesmo assim, fez muitas amizades e integrou o grupo autointitulado “comunidade hippie”, que também tinha Manu Gavassi e Rafa Kalimann. Unidas, elas se voltaram contra atitudes machistas dos homens da casa, que pretendiam promover uma espécie de teste de fidelidade para desestabilizar as participantes do gênero feminino.
Seu primeiro desentendimento foi com Lucas, quando o participante não contribuiu com as compras semanais, apesar de ser o participante com mais estalecas, o dinheiro utilizado no reality. A atitude causou descontentamento em muitas pessoas na casa, e Thelma o confrontou. Perseverante, a médica protagonizou uma das provas de resistência mais difíceis da temporada, que durou 26 horas.
A participante sempre mostrou ter um forte posicionamento e opiniões formadas, muitas vezes indo contra a maioria. Um exemplo disso foi não abandonar Babu Santana, seu colega de confinamento, com quem se identificou pelos cabelos afros, os desafios sociais e econômicos que enfrentaram e pela luta racial. Apesar disso, Thelma, chegou a ser subestimada por outros jogadores, como Guilherme e Victor Hugo, que a descreviam como “planta”.
Impactos sociais da vitória de Thelma
Criada na periferia de São Paulo, a vencedora do último BBB foi adotada com apenas três dias de vida pela funcionária pública aposentada Yara Assis e pelo gráfico Carlos Alberto de Assis. O casal havia perdido um bebê. O sonho de ser médica surgiu ainda na infância, quando passava pelo tratamento de uma bronquite. Mesmo com dificuldades, seus pais batalharam para que ela conseguisse se formar no Ensino Médio em uma escola particular.
Em sua juventude, Thelma não tinha dinheiro para pagar a faculdade e precisou estudar intensamente, durante três anos, e receber uma bolsa de 50% na mensalidade do cursinho pré-vestibular para conseguir uma vaga em Medicina. Por ter estudado balé quando jovem, ela pagava o cursinho dando aulas de balé e distribuindo panfletos.
Na universidade privada, a Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), Thelma conseguiu bolsa integral para estudar em seu curso, um dos mais disputados do país, onde se formou, em 2011, como médica anestesiologista. Entretanto, não foi aí que os seus problemas acabaram, já que ela nunca comprou um livro e não tinha nem estetoscópio para as aulas práticas. Para conseguir estudar, ela passava grande parte do tempo na biblioteca.
Em seu canal no YouTube, Thelma expõe o seu dia a dia de trabalho nos quatro hospitais em que é médica e também a vida de passista da Mocidade Alegre. Em um dos vídeos, com grande repercussão nas redes, ela relata casos de racismo que enfrentou na faculdade e como profissional já formada.
Em uma aula da faculdade, eu tive que ouvir, imagine eu numa sala com dez pessoas, eu tive que ouvir um professor conceituado, que escreveu livro, um professor de ginecologia e obstetrícia, que, na opinião dele, os negros deveriam se dedicar ao esporte, porque a nossa musculatura é muito melhor, que a nossa força de explosão é muito melhor, e que a parte intelectual e científica, que significa a parte de inteligência, deveria ficar com os brancos.
Ela conta no vídeo
Thelma conseguiu transmitir conhecimento para quem a assistiu e, principalmente, abriu espaço para a discussão da pauta e representação negra. De acordo com Babu Santana, a médica era uma referência para a filha dele, que sonha em cursar Medicina. Isso só reforça o impacto de uma médica vencer, em plena pandemia do coronavírus, um reality show de âmbito nacional.
Eu sou médica e me especializei em anestesia. Dentro de uma equipe, o hospital trabalha com equipes multidisciplinares. Dentro da equipe tem enfermeiros, técnicos de enfermagem, auxiliares de enfermagem, cirurgiões, anestesistas, instrumentadores. Se você pegar dez mulheres, sendo nove brancas e eu, que sou negra, e colocar dentro de uma sala de cirurgia no hospital, e perguntar quem é a médica anestesista, ninguém – e eu falo isso com propriedade -, ninguém, nem mesmo o paciente, vai dizer que a médica anestesista sou eu.
Desabafa
Mais de 50% da população brasileira se declara negra, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em dezembro de 2019, o mesmo divulgou que, pela primeira vez, o número de negros (pretos e pardos) nas universidades públicas ultrapassou o de brancos, chegando a ocupar de 50,3% das vagas, mas isso não significa que o problema foi solucionado.
De acordo com a ativista Djamilla Ribeiro, em entrevista à BBC, a vitória de Thelma é extremamente simbólica, mas os grandes veículos de comunicação brasileiros ainda não representam a diversidade de seu povo.
“Precisamos refletir e ter uma discussão séria sobre isso. Há uma reivindicação histórica para que mais pessoas negras ocupem lugar de destaque na mídia, e não só reproduzindo estereótipos”, diz Ribeiro à BBC News Brasil. Segundo Ribeiro, “comemoramos porque são tão poucas as vezes que isso acontece que entendo a euforia das pessoas. A massa assiste à TV e milhares de meninas negras podem se inspirar em Thelma. Isso é inegável”.
A estudante de Nutrição da Faculdade São Camilo, Alana Silva, é negra e não só concorda com afirmação de Djamilla Ribeiro, mas a completa ao ressaltar a importância de, como Thelma, sempre batalharmos pelo que acreditamos e não desanimar frente às dificuldades.
A vitória da Thelma foi importante pela representatividade, pois ela é uma mulher, é negra e conseguiu ser médica. Ela venceu na vida e correu atrás dos seus sonhos, sem se deixar afetar pelas barreiras da desigualdade social, quando decidiu ter como profissão a Medicina. Eu vejo isso como uma forma de mostrar para todos que se identificam com ela pela cor, sexo ou questões sociais que, independente de todas essas características, qualquer um pode ser o que quiser e vencer um reality show. Um rótulo não pode impedir a realização de desejos.
Outra estudante negra da área da saúde da Faculdade São Camilo, a futura psicóloga Nayara Ferreira, destacou a inspiração que a vitória de Thelma traz, tendo em vista anos de injustiças raciais, em um mundo racista.
Ela é e foi uma mulher inspiradora, que mostrou força e raça, não só para mim, mas, com certeza, para muitas meninas e mulheres negras. O prêmio foi muito mais do que um milhão e meio de reais e muito mais do que fama, foi a esperança. A expectativa de que, aos poucos, o mundo pode melhorar e que sempre há aquela luz no fim do túnel.
A sociedade, através da televisão e do entretenimento, impulsiona mudanças. Thelma se tornou símbolo delas e representação de luta. Uniu o apoio de muitas pessoas, incluindo nomes conhecidos como Taís Araújo, Preta Gil e até mesmo a atriz americana Viola Davis. Thelma construiu e ainda constrói um legado.
Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela.
Angela Davis
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Por Maria Cunha – Fala! Cásper