A pandemia do coronavírus no Brasil trouxe mais uma reflexão. Por que o serviço doméstico foi incluído em alguns estados como serviço essencial?
Socorro Freitas, mãe de Beatriz Launé, não foi dispensada do trabalho doméstico que exercia em Belém, Pará. Apenas uma, entre as quatro casas que ela trabalhava, manteve seu pagamento sem a necessidade de comparecimento. Mesmo seu marido buscando-a todos os dias de moto, a exposição ao vírus contaminou ela e sua família. Em maio, Socorro Freiras e seu marido morreram, deixando Beatriz Launé, 18 anos, órfã.
“A senzala moderna é o quartinho da empregada.”, disse Preta Ferreira em 2019. Hoje, em 2020, a pandemia nos confirma que a Casa Grande ainda está de pé.
Estados que colocaram o serviço doméstico como essencial
Os estados do Pará e Rio Grande do Sul foram os únicos a inserirem todos os serviços domésticos como essenciais durante a pandemia, contrariando o entendimento nacional. Porém, alguns estados, como Pernambuco e Maranhão, inseriram o trabalho doméstico como serviço essencial para serviços específicos, como babás e cuidadores de idosos.
A Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD) – apesar de reconhecer que há casos específicos que necessitam de serviços domésticos – se manifestou, concluindo que o serviço doméstico ser inserido como essencial é mais uma característica escravocrata no Brasil, uma “expressão do racismo presente na sociedade”.
A presidente da FENATRAD e ex-empregada doméstica, Luiza Batista, alerta que muitos empregadores burlam os decretos estaduais para manterem os serviços domésticos em suas casas. E, além disso, afirma que está havendo um excesso de demissões dessas funcionárias por não irem ao serviço durante a quarentena, mesmo as que possuem carteira assinada.
A maioria dos empregadores não reconhecerem a importância do trabalho dessas mulheres periféricas, negras, analfabetas. E neste momento eles veem o valor do nosso trabalho, do cuidado da residência, da alimentação, das roupas que eles usam, o cuidado com os familiares.
Diz Luiza Batista ao Brasil de Fato.
A fala de Luiza é uma reflexão importante, pois se o serviço doméstico não era tão valorizado antes da pandemia, por que muitos empregadores insistem em expor funcionárias ao risco?
Zenaldo Coutinho, prefeito de Belém, no Pará, publicou em seu Twitter:
“Empregada doméstica está prevista como atividade essencial. Nos 2 decretos. Tem pessoas que precisam, pela necessidade de trabalho essencial, a ter alguém em casa. Uma médica ou médico, por exemplo, precisa de alguém que ajude em casa”.
É possível perceber que o prefeito não se refere a casos específicos, como o de pessoas que trabalham em atividades essenciais e possuem criança ou idosos em casa, mas sim, que qualquer serviço doméstico seria essencial. Como crítica, várias pessoas comentaram em redes sociais um repúdio à declaração do prefeito, “Em um país forjado na escravidão, ter outro ser humano para limpar sua sujeira é um ‘serviço essencial’”, reflete internauta em comentário no site da UOL.
O serviço doméstico e a escravidão
“Isso é muito de uma tradição histórica nossa. Estamos marcados com uma tradição que vem da escravidão, ou seja, de que você sempre precisa de um outro que vai limpar sua sujeira. São heranças de um trabalho escravo, um momento histórico que nós já devíamos ter superado”, afirma Fausto Augusto Junior, diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, à Rádio Brasil Atual, quando questionado sobre o trabalho doméstico ser inserido como essencial na pandemia.
O Brasil tem cerca de 6,4 milhões de trabalhadoras domésticas, das quais 63,3% são negras.
A historiadora e escritora Marília Bueno de Araújo Ariza afirma que o mercado de trabalho do serviço doméstico possui reflexos do trabalho escravo que, principalmente, as mulheres negras realizavam nas chamadas “Casa-Grande”.
Isso se deve ao fato de que, após a abolição da escravidão e da chegada de milhares de imigrantes não-negros para ocupar trabalhos de mão-de-obra desqualificada e pouco remunerada, o povo negro não teve oportunidades efetivas de entrar para o mercado de trabalho, principalmente as mulheres negras. Desse modo, essas mulheres continuaram condicionadas – até mesmo como a única ocupação possível – a prestarem serviços domésticos, nos quais mais de 70% da população economicamente ativa ex-escrava estava inserida.
“Esse não pode ser o único lugar para essas mulheres”, destaca Preta Rara, rapper brasileira e ex-empregada doméstica, ao Brasil de Fato. A fala da rapper escancara a realidade das mulheres negras no Brasil que, ainda hoje, no século XXI, possuem dificuldades para se inserirem em outras atividades econômicas e, por isso, o trabalho doméstico acaba se tornando hereditário entre elas.
Essa estagnação do cenário do trabalho doméstico no Brasil faz com que, por mais que o serviço seja remunerado, essas mulheres sejam mantidas dentro das condições escravocratas da Casa Grande.
O economista brasileiro Eduardo Moreira também reagiu à decisão do governo do Pará sobre a essencialidade do serviço doméstico. Em redes sociais, ele citou que a insensibilidade com as trabalhadoras domésticas na pandemia é reflexo do papel que as mulheres negras exerciam na escravidão, postas como inferiores, mas essenciais para manter a organização na Casa Grande e atender as “sinhás”.
Caso Miguel, a criança que acompanhava mãe em seu trabalho doméstico
A insensibilidade com as trabalhadoras domésticas, mencionada por Eduardo Moreira, foi vista, recentemente, com a morte do menino de 5 anos, Miguel Otávio, que estava no apartamento onde sua mãe trabalhava – mesmo não sendo serviço essencial em seu estado.
A criança caiu do 9° Andar do prédio de luxo, em Tamandaré, Pernambuco, enquanto sua mãe passeava com os cachorros da empregadora Sari Corte Real, que deveria estar supervisionando o menino, já que as creches durante a pandemia estão fechadas.
Sari, esposa do prefeito de Tamandaré, estava fazendo as unhas quando o menino chorava procurando por sua mãe. Imagens de câmeras de segurança do prédio capturaram o momento em que ela colocou a criança no elevador à própria sorte. Miguel acabou perdido no 9° andar, escalou a grade de proteção da janela, que se rompeu, e acabou caindo de uma altura de 35 metros.
Esse acontecimento reflete uma realidade escravocrata presente na vida das mulheres trabalhadoras domésticas, principalmente, durante a pandemia. No momento de crise sanitária e isolamento social, elas são obrigadas a saírem de suas casas e arriscarem-se ao contágio, delas e de suas famílias, pois empregadores se recusam a dispensá-las e manterem o pagamento de seus salários. Ou seja, a mesma posição de inferioridade colocada a elas no período da escravidão continua existindo, suas vidas e de seus filhos não são levadas em consideração e o importante é mantê-las servindo.
Nesse caso, Mirtes Renata Souza, mãe de Miguel, contou com a sua empregadora para cuidar da vida de seu filho de 5 anos, enquanto ela, sem opção, trabalhava. Sari, que já havia confiado a Mirtes tantas outras vezes a vida de seu filho, não prestou o mesmo papel à ela.
Ele entrou no elevador. Não tiveram paciência pra tirar ele do elevador, pegar ele pelo braço e tirar ele do elevador. Porque se fosse os filhos da minha ex-patroa, eu tiraria. Ela confiava os filhos dela a mim e à minha mãe. E no momento que eu confiei meu filho à ela, infelizmente, ela não teve paciência pra cuidar, pra tirar [do elevador]. Era uma criança.
Lamenta a mãe de Miguel ao G1.
Mesmo isso tendo acontecido em Pernambuco, onde o serviço nem foi colocado como essencial, nos façamos a pergunta: onde as mães trabalhadoras domésticas deixarão seus filhos durante a epidemia? Como irão atender a si e suas famílias durante a maior pandemia do século enquanto são tidas como essenciais?
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Por Beatriz Oliveira Abrahão – Fala! UFMG