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Policiais brasileiros atuam psicologicamente desamparados

Diante de assistência psicológica aparentemente deficiente, policiais sofrem com o estresse da profissão

O papel da polícia é de proteger a sociedade. É uma instituição que não tem inimigos, é dessa maneira que a polícia brasileira se define. No entanto, em nosso contexto, estamos passando por graves problemas de ordem e sociais, em diversos locais do país. Com isso, a atuação dos policiais, que naturalmente já tem certo grau de tensão vinculado, sofreu com aumentos na taxa de estresse. Isso pode ter sido provocado pelas escaladas de tensão que vivemos em nossa sociedade, principalmente nos confrontos entre organizações criminosas e autoridades policiais.

Para tentar explicar essa escalada, um dado divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, nos anos de 2017 e 2018, os homicídios caíram 13% no país, enquanto as mortes decorrentes de intervenções policiais subiram 19,6%. E quando se fala em mortes, a questão do aspecto psicológico vem à tona. Por isso, esses aumentos das mortes e da tensão na rotina de atuação pode ter levado a uma deterioração da saúde mental de parte dos integrantes do aparato policial. Em levantamento realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública consta o dado de que, no ano passado, houve quase 20% a mais de mortes de policiais por suicídio do que em confrontos, 104 contra 87.

Outro dado assustador é o de que, no ano passado, foram registrados pela polícia um número mínimo diário de 43 PMs afastados por conta de transtornos psiquiátricos, de acordo com levantamento exclusivo feito pelo Fantástico, veiculado na Rede Globo dia 15 de setembro de 2019. O levantamento levou em conta os números de polícias de 15 estados brasileiros, que disponibilizaram seus dados para o programa.

O levantamento também apontou que, apesar de haver a avaliação psicológica na admissão do policial, apenas nos estados de MG e RS há avaliações psicológicas anuais para os agentes. “Não há efetivo suficiente para avaliar toda a tropa, anualmente”, disse o tenente-coronel Fernando Derenusson, chefe do núcleo de psicologia da PM/RJ, em entrevista ao programa.

Além de todo o estresse da rotina de trabalho do agente policial, Paulo Roberto Batista de Oliveira, coronel da reserva da Polícia Militar do Distrito Federal e responsável técnico do Programa com as Forças Policiais e de Segurança no Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), revela que, com toda sua experiência, ele sabe que o policial não gosta de admitir que tem um problema, nem mesmo falar sobre o assunto. Ao citar uma ação de apoio psicológico aos policiais oferecida em Brasília, da qual Paulo participou, o ex-coronel disse que “o policial tem a preocupação de achar que ele tem algum problema, ele tem dificuldade de reconhecer que ele tem problema”.

Para exemplificar um agente de poucas palavras, Fábio Dias Barbosa, 56, em entrevista, falou pouco sobre o tema, respondeu apenas a metade das perguntas feitas e foi sucinto nas respostas. “Meu nome de guerra é Dias, Cabo PM Dias”, disse ele em sua apresentação, o que revela um pouco de como ele se vê quanto policial e sua percepção da profissão.

“Na Polícia, a rotina te mata”, disse o Fábio, sobre seus 25 anos de Polícia Militar no estado de São Paulo. Sua colocação exprimiu a dureza da realidade de seus anos de ação. Atualmente, o veterano ainda trabalha na área de segurança, mas em dinâmica diferente à de outros tempos.

Dias contou que “no patrulhamento, você tem que ver tudo e desconfiar de todos. Tem que ficar atento ao rádio de comunicação (Copom), onde caem as ocorrências”. Também compartilhou que, em seus anos de patrulhamento, já passou por situações delicadas, tais como troca de tiros e morte de colega. “Isso te marca para sempre”, lamentou.

No Rio de Janeiro a situação fica ainda pior, com um número de afastamentos recorde no país atualmente. No estado há inúmeros casos, quase diários, de combates com organizações criminosas dos morros e também de mortes de inocentes com autorias atribuídas a policiais, que supostamente teriam abusado da força.

Nos casos que se referem a morte de inocentes, alguns notórios do estado do RJ geram maior indignação da população, como o de Ágatha Félix, menina de 8 anos que morreu baleada, com um policial acusado de ter cometido o disparo fatal. A polêmica se acentuou quando alguns policiais invadiram o hospital em que Ágatha estava internada para tentar confiscar a bala retirada do corpo da menina. As atitudes dos policiais no caso mostram que há um receio com relação ao ocorrido, o que dá indícios de abuso de autoridade e de possíveis problemas psicológicos atrelados.

Dados divulgados em novembro pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) mostram que, no estado do Rio de janeiro, o número de mortes ocorridas em confrontos com a polícia atingiram o maior índice desde 1998. Foram 1546 registros, média de cinco casos por dia, entre janeiro e outubro deste ano. Mais mortes do que em 2018 inteiro, com 1534. Se pegarmos o mesmo período de dez meses, percebemos que houve um aumento de 21% no número de casos de 2018 para este ano. Com mais mortes envolvidas, um impacto maior no psicológico dos agentes cariocas, no caso, é uma possibilidade real e não pode ser relevada.

“Há de se observar que esses profissionais ficam expostos a desgastes constantemente, e esses desgastes físicos e emocionais vêm à tona a todo tempo. Há de se pontuar também que os policiais têm que aprender a lidar com algo que não é muito muito legal para o ser humano, que a gente não costuma pensar, mas os policiais têm que pensar nisso, que está diretamente ligado ao sentimento de morte. Seja a morte de suas vítimas da violência, seja as mortes dos criminosos e as mortes dos companheiros de trabalho e às vezes também com a ideia da sua própria morte e como ficarão seus familiares, então isso gera um estresse também muito grande para eles”, diz Andréa Regina Santos, mestra em psicologia com especialização em psicologia analítica e em psicologia jurídica.

Andréa pondera que, por conta de o trabalho do policial ter altos níveis de estresse, “tanto interna quanto externamente”, um desequilíbrio emocional é altamente provável, ainda mais com a precarização da segurança pública. “Devemos pensar nos policiais além de suas atividades militares, porque além de todo o estresse do expediente, eles têm que estar o tempo todo em estado de alerta, mesmo em descanso, então devemos nos preocupar com a saúde mental desses profissionais”, disse.

Segundo Paulo, a situação oficial atual do país é a de que estamos em meio a um cenário de “violência coletiva”, que é classificado como um distúrbio interno. Esse quadro gera consequências humanitárias graves, que devem ser discutidas e remediadas.

Entretanto, o ex-coronel disse que apenas são discutidas as consequências “rasas” dessa violência armada, em detrimento de outras que causam um impacto mais profundo. Assim, problemas decorrentes dessa violência como restrição de mobilidade (evidente no RJ), abusos, pessoas desaparecidas, transtorno mental em decorrência da violência, deslocamentos forçados e população com acesso limitado aos serviços essenciais são bem menos discutidos que temas como mortos, feridos e presos.

O CICV atua justamente nesses produtos da violência que acabam sendo deixados em segundo plano. A organização atua no fornecimento de inteligência e soluções para tentar diminuir esses efeitos. O Comitê também trabalha junto com a polícia brasileira na integração entre doutrina, ensino, “treinamento e equipamento” e sanções no sistema interno dessa instituição.

Com relação à faceta psicológica do trabalho policial, a realidade apontada por Paulo é a de que há todo um aparato institucional e efetivo de amparo psicológico ao policial quando ele necessita, paradigma que não parece proceder, muitas das vezes.

O funcionário do Comitê ressalta a importância da existência de um protocolo, se possível unificado, de ação policial. Um protocolo dessa natureza ainda é inexistente no Brasil, apesar de estar presente em muitos países do mundo.

A falta de um protocolo gera, como consequência, uma confusão do agente policial com relação aos direitos humanos e sua aplicação no momento de sua ação, o que pode causar confusão e erros de procedimento, segundo Paulo.

A capacitação do treinamento do policial, devidamente especificado com a existência de um protocolo, faz com que o agente esteja ciente de fundamentos primordiais, tais como a legitimidade de seu trabalho. Esse conceito perpassa todo o sentido da legalidade da atuação do policial, passa pela aceitação da atuação da polícia aos olhos da sociedade, a proporcionalidade na atuação, e a necessidade de determinadas medidas.

Junto disso, o protocolo seria grande vetor de legitimação da atuação do agente. “O protocolo é fundamental para garantia da segurança jurídica. Ele te traz a normativa de como você deve atuar, dentro de um padrão internacional aceito e alinhado com as normas internas do país. O policial não pode sair para rua na dúvida de quando ele pode utilizar força e quando ele não pode utilizar força”, frizou Paulo.

“Vejo que os policiais militares muitas vezes arriscam sua vida para a proteção do cidadão em geral, mesmo assim o trabalho desses policiais, tanto da segurança pública quanto na privada, recebe muitas críticas, referente ao julgamento de suas atuações”. Essa observação de Andréa conversa intensamente com a ausência de um protocolo de ação policial, sugerido por Paulo. Isso porque em situações críticas da ação do agente, ter uma insegurança quanto à ação correta a ser tomada pode gerar muitos erros. Em tempos mais violentos, como os atuais, o agravamento disso é consequência certa.

No intuito de tentar remediar a situação, Andréa acha que “seria fundamental nós pensarmos em um severo trabalho psicológico individual e remunerado semanalmente para essa população. Seria então um tratamento psicológico realizado semanal e individualmente, e não em grupo, e que essas sessões fossem pagas pela polícia, que também remuneraria os policiais por esse horário de tratamento como se fosse de trabalho. Com isso, a gente consegue fazer uma quantificação da qualidade da saúde mental do policial que está sendo colocado para atuar na rua e do trabalho desempenhado”.

Por fim, Paulo comentou sobre um estudo, ainda inacabado, que está sendo feito com 4 polícias, 2 do Brasil, uma de Paraguai e outra do Chile. “O que a gente observou é que os problemas estão no mesmo nível (do apoio psicossocial). O que a gente observa, até agora, é que as forças policiais estão com trabalho de terceira linha, ou seja, ele se adoece, de acordo com a psicologia e psiquiatria.”

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Por Artur Alvarez – Fala! Mackenzie

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