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Opinião – A romantização da pobreza e do sofrimento na pandemia

As consequências, sejam elas econômicas, políticas ou sociais, trazidas pela pandemia do novo coronavírus, já começam a preocupar lideranças, grupos sociais e nações inteiras. Esses impactos, embora muitas vezes incalculáveis, já eram previstos por especialistas ainda nos primórdios da pandemia, quando a comunidade científica ainda encarava um inimigo quase 100% desconhecido. Empobrecimento geral, fome, desemprego, recuo econômico e o aumento da vulnerabilidade social das camadas socioeconomicamente marginalizadas logo se configuraram como alguns dos desafios que a humanidade está prestes a enfrentar no ainda não alcançado pós-pandemia.

Você, leitor, pode estar refletindo através de uma breve leitura geopolítica, neste exato momento, sobre o fato de que os entraves impostos por um crise sanitária, considerada a maior desde a pandemia da Gripe Espanhola, na década de 1910, terão impactos de graus distintos dependendo do país ou região do globo. Realmente, os países do norte global, considerados de “primeiro mundo”, tendem a contornar com mais facilidade essas mazelas sociais que acompanham o vírus.

Países europeus, como Noruega, Alemanha, Suécia e Holanda, e os americanos, Canadá e Estados Unidos, possuem uma estabilidade financeira, econômica e social considerada de referência se comparados a outras nações, como as pertencentes ao sul global, ou “terceiro mundo”, como Níger, Etiópia, Somália, e algumas asiáticas e centro-americanas, taxados como “pobres e problemáticas”, que apresentam uma instabilidade política exorbitante.

Nessa divisão internacional de países, na qual cada um deve aceitar o rótulo colocado baseado nas suas características aqui já mencionadas, o Brasil se encontra no segundo grupo, fato que se torna cada vez mais fácil de aceitar ao analisarmos as conjunturas históricas e atuais – que tomam um caminho de incerteza e preocupação. O país já vinha tendo que encarar uma série de desafios antes da oficialização da pandemia, mas a Covid-19, avassaladora, atuou como um agravante às simultâneas crises brasileiras.

A população, além de se preocupar com a pandemia mortal e assustadora que se instalara, tinha que encontrar, desesperadamente, maneiras rápidas e eficazes de driblar o desemprego (um dos maiores medos) e evitar a fome, que voltou a assombrar a população de baixa renda, pouco ou nada assistida pelas esferas federal, estadual e municipal – devido aos lockdowns decretados, uma parcela significativa da população ficou sem renda e os baixos valores dos auxílios destinados a esses beneficiados não acompanharam os constantes aumentos do preço médio da cesta básica.

São justamente essas maneiras reinventadas de vencer a crise e o estilo de vida vigente que têm rendido debates e indignação nas redes.

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A pobreza aumentou durante a pandemia. | Foto: Marcello Casal/Agência Brasil.

A crise e a pandemia retratadas pela mídia

As grandes emissoras e portais de comunicação têm um papel imprescindível em momentos de calamidade. Além da função de informante, aquele responsável por propagar informação, a mídia também deve, como objetivo secundário, levar visibilidade aos menos favorecidos, isto é, mostrar, sem cobertas ou incompletamente, a realidade vivida pelos mais impactados pela pandemia e, com isso, cobrar medidas e ações contundentes do poder público.

Entretanto, algumas abordagens e matérias veiculadas em emissoras de grande alcance causaram certa estranheza e se tornaram objetos de debates acalorados nas redes sociais. Em 22 de abril de 2021, a filial paranaense do SBT exibiu uma reportagem na qual, na chamada, apareciam escritos os dizeres: “Gás caro e comida mais saborosa: fogão à lenha vira xodó nas casas”, enquanto uma moradora, que passou a utilizar o fogão à lenha após os problemas financeiros estourarem e ela se ver obrigada a substituir o quase fundamental gás de cozinha, era entrevistada. De fato, o aumento do preço médio do botijão, de acordo com a Agência Nacional do Petróleo (ANP), pulou de R$ 72,37, em janeiro de 2020, antes da pandemia no país, para R$ 75,17, em janeiro de 2021, quase um ano após a confirmação do primeiro caso de Covid-19 em território nacional.

A repercussão da matéria foi imensa. Discussões foram abertas acerca do tratamento dado pela emissora à crise. Quando, conscientemente, é veiculada uma reportagem desse tipo, fica clara a imagem a ser estabelecida: glamourizar ou romantizar a pobreza, que nada mais é do que tentar fantasiar o padrão de vida desumano, cruel e exaustivo, de alguém em específico ou de algum grupo social, e tratá-las como modelos de superação com o intuito de ratificar teorias meritocráticas.

Em um outro exemplo, desta vez reproduzido pela Bandeirantes (Band), foi ao ar uma matéria com um teor polêmico ainda maior. Na quinta-feira do dia 25 de março de 2021, imagens de uma tabela com alimentos acompanhados de um pequeno valor, a maioria na casa dos centavos, que tentava auxiliar o telespectador a sobreviver com, em média, R$ 5 diários tomaram as redes. Os valores disponibilizados pela emissora foram baseados no questionável e praticamente simbólico auxílio emergencial do governo federal, que, na chamada ‘segunda rodada’, planejava beneficiar a maioria das famílias que possuem direito à ajuda com R$ 150.

Com dois pães por 60 centavos, meia colher de manteiga por 20, dois ovos por 1 real e outras sugestões absurdas, a matéria insinua que o telespectador deve encontrar maneiras quase milagrosas para alimentar-se, em vez de, o que seria considerado correto, levar a população a questionar por quais motivos grande parte da classe baixa brasileira chegou ao inacreditável ponto de tentar sobreviver com tão escassos recursos, abrindo espaço para uma piora na qualidade de vida a curto e médio prazos, e manifestar-se contra a situação incômoda atual.

A falsa superação

Pessoas com deficiência (PCDs) expostas às mais variadas formas de desgaste no cotidiano apenas para trabalhar, mães solo exaustas física e psicologicamente devido às jornadas de trabalho extensas e às sobrecargas rotineiras e crianças que tiveram a infância roubada pelas desigualdades. A romantização da pobreza se manifesta de diferentes formas.

É mais do que comum se deparar com uma publicação, em qualquer que seja a rede social, mostrando um ser humano com uma expressão visível de cansaço tendo que ‘vencer’ desafios cotidianos que chegam a ser torturantes. Majoritariamente, essas publicações são legendadas com frases motivacionais ou que tentam trazer alguma mensagem de superação e garra, tais como ‘nunca desista’, ‘seja forte’ e ‘você ainda reclama da sua vida?’. O que passa despercebido pela grande maioria dos que veem e compartilham tais publicações é a imensa desumanidade por trás da foto.

É, mais uma vez, a romantização da crueldade, do ridículo e do sofrimento de alguém que gostaria de não passar por essas situações insalubres. Em uma sociedade ideal, que não chega a ser utópica, nenhum indivíduo deveria sujeitar-se a tais constrangimentos, mas a sociedade da meritocracia e do individualismo parece querer que isso não aconteça.

Trabalho infantil

A infância é um dos períodos mais importantes da vida. É a fase na qual o ser humano conhece seus medos, sonhos, começa a investigar e procurar o seu lugar no mundo e, talvez o mais importante, é caracterizada pelo maior tempo livre, pela brincadeira e pelo lazer. Essa breve definição é quase unânime entre pediatras, organizações e especialistas voltados à área da infância. Contudo, não é possível afirmar que tudo de benéfico que a melhor parte da vida proporciona pode ser usufruído por todos os infantes.

Nas mais movimentadas avenidas dos grandes centros urbanos, é possível observar, a qualquer hora do dia, um número impressionante de crianças, desde mais novas até pré-adolescentes, tendo que pedir esmolas, vender chicletes, confeitos, água e outros produtos em semáforos e cruzamentos. Em outros casos, também há aqueles que limpam o para-brisa dos carros em busca de alguns trocadinhos. Embora a exploração infantil seja crime, essa ‘forma de trabalho’ é tratada como uma das saídas para incrementar a renda média familiar por uma parcela considerável da população.

Desde “Criança pode roubar, matar, estuprar, mas não pode trabalhar” até “Deixa o moleque trabalhar”, ambas declarações de representantes políticos que apoiam a prática e que acabam por endossar o trabalho infantil, a exploração sem limites praticada bem abaixo dos narizes de uma população que os ignora vai sendo diariamente naturalizada. Não é bonito romantizar crianças em semáforos implorando por dinheiro enquanto a maioria dos que ali transitam estão no conforto do ar-condicionado dos seus veículos motorizados.

Desemprego e exaustão na pandemia

Com o avanço da tecnologia, uma nova forma de prestação e utilização de serviços vai, aos poucos, sendo incorporada às movimentações capitalistas. Há alguns anos, a uberização, que consiste no uso dos próprios objetos pessoais, como carro, motocicleta ou bicicleta, ou no “aluguel”, da empresa para o trabalhador, para a prestação de serviços de transporte por aplicativo ou entrega de comida sem vínculos empregatícios com essas repartições (carteira assinada) e direitos trabalhistas assegurados pela lei (férias, décimo terceiro salário, seguro desemprego ou plano de saúde) vêm ganhando uma crescente notoriedade e se estabelecendo como uma alternativa viável para a desocupação e uma maneira quase paliativa de complementação da renda mensal. 

Com a falta de perspectiva de melhora para a escassez de emprego em todo o país, o brasileiro passou a dar mais espaço para esse fenômeno da uberização, que teve um “boom” após a onda, causada pela pandemia, que devastou empregos, em uma tentativa de fugir do sufoco financeiro. Entre aqueles que não possuem emprego e acabam dependendo exclusivamente desses serviços não fixos, o medo cada vez maior de uma possível falta de recursos para as despesas básicas fazem com que os trabalhadores se afundem, mesmo sem perceberem, em um poço cíclico de exaustão e fadiga após longos períodos ininterruptos de trabalho, já que, como não há vínculo formal com a empresa, a carga diária não é estabelecida, deixando o trabalhador sem uma margem limite de tempo em serviço. 

Seguindo a linha da meritocracia e da falsa superação, a parcela quase escravizada e maquiada como “autônoma” ligada indiretamente a essas multinacionais bilionárias recebe, frequentemente, a alcunha de “guerreiros” e “pessoas de boa vontade” por outra parcela populacional mais estável financeiramente. 

A romantização de um ser esgotado, refém da uberização desenfreada e testemunha de uma esfarelamento sutil e progressivo dos direitos trabalhistas, que vende a sua força de trabalho em troca do básico para sobrevivência, está cada vez mais impregnada nesta nau colossal e vazia chamada Brasil, em especial durante a pandemia. 

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Por Raul Holanda – Fala! UFPE

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