O Sol é para Todos e Olhos que Condenam contam a história de homens que tiveram sua liberdade e suas vidas ceifadas devido às sociedades estruturadas na base do preconceito. Nos dois casos, a total falta de desumanização da população negra por sociedades que ainda não aceitam o fim da escravização é clara, com isso, o princípio básico da presunção de inocência dá lugar a um “princípio básico da presunção de culpa” pautado na cor de pele do acusado.
11 de Julho de 1960
Harper Lee publica seu primeiro e único romance*, que lhe concederia o Prêmio Pulitzer de Ficção um ano depois. Conta-se que a autora acreditava que a contribuição de O Sol é para Todos para a sociedade era tamanha que não haveria o porquê de escrever outra obra.
Nascida em Monroeville, no Alabama, a autora cresceu em uma cidadezinha sulista, afundada na depressão econômica no início dos anos 1930, e conhecida por seu conservadorismo e pela adoção de políticas de segregação racial. Seu pai, Amasa Coleman Lee, era um advogado conhecido na cidade por defender clientes negros diante de juízes e júris brancos, e de uma sociedade que ainda não aceitava o fim da escravidão.
Aos que já leram a obra-prima da estadunidense, irão perceber as fortes semelhanças entre a história e a própria vida da autora, agregando-lhe ainda mais valor, por atestar que o livro não se trata de uma ficção tão longe da realidade vivida na época.
A história de O Sol é para Todos é narrada pela perspectiva de Scout Finch, uma garotinha de 6 anos, que vive na cidade ficcional de Maycomb, no Alabama, no sul dos Estados Unidos, marcada pela ignorância e pelo racismo.
O leitor, na primeira parte do livro, é absorvido pelas aventuras da menina e de seus amigos. Apesar de, para alguns, ser esse momento da leitura um pouco monótono, as passagens servem para ambientar o leitor no espaço criado e o ajudar a entender e traçar o perfil daquela sociedade que alguns anos depois condenará um homem negro e inocente, acusado de estupro, à pena de morte. Não, isso não foi um spoiler. Não foi porque até mesmo a pessoa mais esperançosa sabe, ao ler o livro, que aquele homem já está condenado antes mesmo de entrar no tribunal.
Só há três pessoas em toda a cidade que acreditam que Tom Robinson pode ser inocentado com a ajuda de Atticus Finch: Scout, Dill e Jem. Três crianças que representam a inocência daqueles que ainda não foram introduzidas aos códigos sociais e observam embasbacadas como aquelas pessoas boas com quem convivem diariamente podem cometer tamanha atrocidade.
19 de Abril de 1989
Uma jovem é estuprada e espancada no Central Park e 5 meninos, entre as idades de 14 e 16 anos, são acusados de cometer o crime. A vítima sofre perda de memória e não se lembra do agressor, não há digitais dos meninos nas evidências, não há testemunhas. Os cinco meninos são negros.
Donald Trump, magnata do ramo imobiliário na época, publica anúncios nos jornais pedindo a volta da pena de morte em Nova York e a execução dos 5 jovens, “”É mais do que raiva…É ódio, e eu quero que a sociedade os odeie”, é o que diz o anúncio.
31 de maio de 2019
A rede de streaming Netflix lança a série Olhos que Condenam, que conta a história dos 5 meninos inocentes condenados no caso Central Park e como os policiais, detetives e promotores conseguiram de forma abusiva e coercitiva as confissões inverossímeis dos jovens. Tais confissões nem sequer estavam de acordo com hora e local do crime, mas foram usadas como principal prova para incriminá-los.
A série retrata também como os acusados e as famílias sofrem com a condenação social que precede a jurídica, e leva o espectador ano a ano na juventude perdida daqueles que estiveram mais do que na hora e no local errado, mas que nasceram na cor de pele que os olhos condenam.
A séria conta com apenas 4 episódios de mais ou menos uma hora cada, o espectador acompanha o fatídico dia do crime, as condenações, os anos em afastamento social e a tentativa de uma vida normal após o fim da pena. Além da construção das personagens principais, a representação das famílias de cada um deles contribui ainda mais no processo de envolvimento do público com a obra. O quarto e último episódio, que acompanha a jornada de um personagem em especial, é o mais dilacerante de todos, e finaliza perfeitamente a história.
Assistir a Olhos que Condenam é como completar a experiência literária de O Sol é para Todos. O livro mostra a narrativa pela perspectiva de quem assiste à condenação, a série traz a realidade de quem é condenado. Por mais que a obra de Harper Lee se baseie na realidade vista e vivida pela autora, ser uma obra ficcional nos conforta por podermos pensar “bom, isso não aconteceu realmente, então tudo bem”. A produção de Ava DuVernay causa no espectador exatamente a sensação contrária, assistimos sabendo que tudo ali foi a realidade de 5 meninos, e nos faz questionar quantos mais existem por aí passando pelo mesmo.
O livro de Harper Lee, um clássico americano, pode ser encontrado em qualquer livraria. Já a série Olhos que Condenam, está disponível na Netflix. Além disso, na rede de streaming é possível ver também uma entrevista dos 5 condenados com a apresentadora Oprah Winfrey chamada When they see us.

*Em 2015 foi publicado o livro Vá, Coloque um Vigia, que teria sido encontrado perdido em uma gaveta de Harper Lee. Alguns acreditam que seria uma continuação de O Sol é para Todos, outros que seria uma primeira versão do livro. Quando foi publicado, Harper Lee estava com 89 anos vivendo reclusa em um asilo, o seu principal biógrafo defende que a autora não estava em condições de autorizar a publicação, e que teria sido manipulada pelos editores.
___________________________________
Por Maria Luiza Gonçalves Penna Guedes dos Reis – Fala! UFMG