Há trinta anos, Clarice Starling (Jodie Foster), uma mulher jovem de passos hesitantes, caminhou pelos corredores da antiga prisão que abrigava o serial killer Hannibal Lecter (Anthony Hopkins). Era então lançado O Silêncio dos Inocentes, longa-metragem que quebrou o status quo de Hollywood e revolucionou o terror norte-americano.
Não por coincidência, Starling é a primeira personagem com quem nos deparamos em cena. Ela aparece correndo em um bosque, quando é interrompida e convocada à sala de Jack Crawford (Scott Glenn), agente a quem é subordinada no FBI. A próxima cena é uma imagem perfeita da névoa sexista que encobre a personagem ao longo de todo o filme: Clarice vai ao encontro do chefe e entra em um elevador no qual todos os presentes são homens. O moletom cinza desbotado que veste é um objeto fora do lugar no meio do mar vermelho vivo que a faz encolher: camisas engomadas e masculinas que expressam potência.
Já dentro da sala pequena e mal iluminada, recortes de jornal estão dispostos na parede indicando uma caça em curso do serial killer conhecido apenas como Buffalo Bill (Jame Gumb). À procura da resolução do caso, Starling é designada para extrair informações do prisioneiro Hannibal Lecter, um psiquiatra condenado por canibalismo e assassinatos múltiplos. Nos diálogos travados entre os dois, ela busca decifrar a verdadeira face do foragido, que tem como alvo mulheres jovens e de peles bem cuidadas.
O Silêncio dos Inocentes e o terror
Cunhado na literatura e lapidado no cinema, Hannibal é o tipo de personagem que transborda os limites de nossa fantasia. É sarcástico e narcísico, um típico psicopata americano, mas que transcende o temperamento enérgico e descontrolado de nomes como Patrick Bateman (Christian Bale, American Psycho). Costumo pensar que existem certos paralelos a serem traçados entre a realidade e a intelectualidade desmoralizante de Hannibal Lecter sobre o que constitui a essência da humanidade. Na filosofia de um dos maiores serial killers da ficção americana, não há como lutar contra nossa própria natureza e todos vivemos em uma sociedade corrompida, submersa em suas próprias aflições. Nem selvagem, nem sábia: um delírio pessimista de natureza autêntica e sórdida.
Ao longo dos últimos 30 anos, o filme já arrecadou mais de 270 milhões de dólares em todo o mundo. Até o ano de 2015, foi o único do gênero de terror a conquistar o Oscar de Melhor Filme e também foi o terceiro a ser premiado nas cinco categorias principais da Academia: Melhor Filme, Melhor Atriz, Melhor Ator, Melhor Diretor e Melhor Roteiro Adaptado. Como uma de suas principais realizações, o longa foi escolhido para ser preservado pelo National Film Registry, uma seleção de obras cinematográficas feita pela National Film Preservation Board para conservação na Biblioteca do Congresso americano.
Não é por nada que Hopkins e Foster conquistaram lugar nas cerimônias de premiação, nas estantes e corações dos espectadores e na história do cinema. Na esteira do tempo, a coragem e a perspicácia de Clarice Starling finalmente calaram os gritos atormentados das ovelhas sacrificadas, um símbolo da metamorfose que caracteriza os personagens do filme. Ela finaliza sua jornada pessoal rumo a um horizonte transformador, quando o silêncio se instaura e os gritos se tornam miragens no passado.
O Silêncio dos Inocentes é uma carta de amor deliciosamente escrita ao terror cinematográfico. Jonathan Demme dirigiu um filme que vai além do horror e tensiona o imaginário coletivo de que os homens se movem até somente o que seria uma fronteira bem delimitada: a nossa capacidade de sentir empatia. Através de um novo ângulo sobre os criminosos, nus da estética mística que costuma recair sobre eles, Demme presenteia a crítica especializada com uma narrativa imersa na mente humana, em uma busca desenfreada pelos simbolismos que desencadeiam a construção de novas realidades. Emblema principal da história, as mariposas são mensageiras da morte e significam a transformação pela entrada no mundo dos mortos. Da lagarta a crisálida, ou pupa e, daí, para a beleza.
Na trama, Buffalo Bill marcava as cenas de seus crimes com os insetos, em uma representação extraordinária da morte de sua própria persona, o abandono de seu antigo “eu” com destino a um novo espetáculo de si mesmo. O Silêncio dos Inocentes não é um filme sobre a loucura, é um longa sobre nossos próprios ímpetos de busca por uma representação mais exata do que pretendemos ser. Posso alimentar a lagarta; posso sussurrar através do casulo; mas o que me incuba segue sua própria natureza e está além de mim.
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Por Ana Flávia Pilar – Fala! UFRJ