“Aqui jaz a primeira ferrovia do Brasil.” É o que diz o cartaz segurado por Luiz Octávio da Silva Oliveira, fundador da ONG Associação Fluminense de Preservação Ferroviária (AFPF), durante um protesto silencioso feito em 2014. No ato realizado em frente à estação, ele denunciou o descaso com a história da ferrovia Guia de Pacobaíba, em Magé, cidade da Baixada Fluminense. Luiz Octávio morreu em 13 de abril de 2017. Hoje, 4 anos depois da morte do ativista, a situação da ferrovia inaugurada há 167 anos só piorou.
Saiba tudo sobre o abandono da primeira ferrovia do Brasil e as consequências por trás desse fato
A história da Estrada de Ferro Mauá é de apogeu e queda. Foi inaugurada pela “Imperial Companhia de Navegação a Vapor e Estrada de Ferro Petrópolis”, empresa de Irineu Evangelista de Sousa, o Barão de Mauá, em 30 de abril de 1854. O projeto inicial pretendia ligar o Rio de Janeiro ao Vale do Paraíba e, mais tarde, a Minas Gerais. Na época de inauguração, o trecho ia de Estação Mauá (atual Guia de Pacobaíba) até Fragoso, bairro de Magé, contendo 14 km. Em 1856, ele foi estendido até a Vila Inhomirim, conhecida como Raiz da Serra, também em Magé, ficando com 14,5 km. Essa ferrovia foi inovadora para a época, por permitir, pela primeira vez, a integração das modalidades de transporte aquaviário e ferroviário, ou seja, ela tornou o trajeto bimodal.
Portanto, todo o percurso do Rio de Janeiro até Petrópolis se dava da seguinte forma: a rota começava na Praça XV, atravessando a Baía de Guanabara, no Porto da Estrela, de barca até chegar à Praia de Mauá. De lá os passageiros entravam na locomotiva Baronesa, a primeira locomotiva a vapor do Brasil, em Guia de Pacobaíba e seguiam até Raiz da Serra. Desse ponto, subiam a serra de carruagem ou a cavalo até Petrópolis, a Cidade Imperial. Após 30 anos de uso, a locomotiva Baronesa saiu de circulação.
Em 1883, o Barão de Mauá, já em processo de falência, vendeu os direitos da ferrovia para a Estrada de Ferro Príncipe do Grão Pará. Nessa época, a tecnologia já havia se desenvolvido o suficiente para que a ferrovia chegasse até Petrópolis. A subida era feita com a instalação do plano inclinado da Serra da Estrela, que eram 7 km de trilho, e usava-se a cremalheira, um tipo particular de caminho de ferro que permite a subida de planos inclinados através de uma peça mecânica com uma engrenagem ajustada.
Em 1926, a estação Leopoldina, localizada na Central do Rio de Janeiro, foi inaugurada e a viagem de barca foi interrompida. No trajeto do início do século XX, usava-se um trem direto da Leopoldina até Mauá e de lá até Raiz da Serra. Em 1962, todo trecho de Mauá foi desativado em meio à expansão das rodovias e estradas no Brasil.
Do antigo esplendor ficaram um píer enferrujado e a pequena, e antiga, estação em Magé. O local ainda conta com alguns visitantes, mas o passeio dura pouco, já que não tem nenhum tipo de atração turística além de uma réplica da Maria Fumaça.
Relatos
Jessika Killian, moradora de Praia de Mauá, Guia de Pacobaíba, disse que observou melhorias no local recentemente, sendo possível ver cidadãos fazendo piquenique e passando a tarde por lá. Além disso, acredita que o investimento no local poderia ser maior, mas admite que a pandemia pode ser um fator prejudicial na recepção do público.
Alexsandro Rosa, diretor de Cultura da Secretaria Municipal da Educação e Cultura de Magé (SMEC), contou que, após encontrar o local abandonado, a atual gestão criou algumas melhorias, como manutenção permanente, vigilância 24h e mais iluminação. Em junho de 2021, logo depois do aniversário de inauguração da ferrovia, o município iniciou o Projeto Ferroviário de Guia de Pacobaíba, com a proposta de divulgar a importância histórica da estação para crianças.
Nas visitas, os alunos da rede municipal são recepcionados pelos personagens Barão e Baronesa, representando Irineu Evangelista e sua esposa Maria Joaquina de Sousa, além de outros dois mediadores formados em história. Todos recebem uma viseira, um folder informativo e perguntas para serem respondidas nas escolas. O projeto, em apenas três meses, já recebeu mais de 3000 alunos de todos os distritos de Magé. Rosa diz que isso é uma “tentativa de trazer à sociedade civil a consciência da preservação do espaço”, acrescentando que “a preservação dos bens culturais é um dever de todos, não somente do poder público”.
Além das medidas do município, também existem outras feitas pelo estado do Rio de Janeiro. A Lei Estadual 8.210/2018 propõe a Recuperação da Malha Ferroviária com objetivos turísticos e de transporte, beneficiando os trechos de Guia de Pacobaíba, Vila Inhomirim e Fragoso. Ela prevê que a revitalização poderá ser realizada por meio de convênios entre Governo Estadual, a União e as Prefeituras Locais, podendo haver, também, parcerias privadas.
A ONG AFPF também segue na luta para defender a história do Brasil e preservar as estradas de ferro. Antonio Pastori, presidente do conselho fiscal da organização, diz que o principal objetivo deles é a reativação da Estrada de Ferro Mauá, que vai da Estação de Guia de Pacobaíba (antiga Estação Mauá), no município de Magé, passando por Fragoso, até Raiz da Serra, também conhecida como Vila Inhomirim. Mas ainda há dificuldades, a própria AFPF esteve perto de encerrar as atividades no ano passado por falta de recursos.
Richardison Barros, morador de Magé, relata que o município não ajuda o suficiente: “[A ferrovia] faz parte sim da história do Brasil, faz parte sim da história de nós da Baixada Fluminense. Principalmente de Magé. É uma ferrovia muito importante, que precisa ser bem cuidada”. O estudante de 22 anos também afirmou que as pessoas, normalmente, não sabem dessa importância e não valorizam o local, isso ocorre, pois a cidade divulga muito pouco sua parte histórica.
Eric Abreu, estudante de Astronomia na UFRJ e também morador de Magé, relata que a falta de valorização da memória e o mau aproveitamento do potencial do local lhe causam indignação. “Temos uma réplica da primeira locomotiva, só que mesmo assim o lugar não tem nada de especial. O píer que recebia navios está em pedaços, é só ferrugem. Está bem acabado, uma pena!”
O estudante de 20 anos conta que a população do local sabe que o município foi o primeiro do país a receber uma ferrovia, mas não tem noção da importância histórica de tal feito. Revoltado, desabafa: “O que pode melhorar no local é tudo! Um potencial extremo a ser explorado e que é renegado como tudo de importante que temos de histórico no Brasil”.
Como está a primeira ferrovia do Brasil atualmente?
Atualmente, o trecho de Guia de Pacobaíba está sob os cuidados do Instituto do Patrimônio Histórico e Cultural Nacional (Iphan). Sobre a situação da ferrovia, o instituto informou que existe um estudo de viabilidade da Valec que pretende reativar a linha Mauá-Fragoso, mas ainda em estágio preliminar. O Iphan disse, ainda, que contratou em 2016 um estudo para requalificação urbana de Guia de Pacobaíba, mas o projeto não chegou a ser executado. Além disso, foi afirmado que existe um diálogo com a Prefeitura para a requalificação urbana do trecho até que haja uma reativação da ferrovia.
O trecho Mauá-Fragoso tem proteção do Iphan e é tombado como parte do patrimônio histórico. Segundo as definições legais, está sob proteção do Decreto Lei nº 25, que proíbe a destruição de bens culturais. Em outras palavras, é um patrimônio oficial público instituído por um regime jurídico especial em propriedade, com o objetivo de garantir o respeito à memória do local e a manutenção da qualidade de vida.
Outros trechos do Ramal Vila Inhomirim, como Fragoso e Vila Inhomirim/Raiz da Serra, ainda têm condição de funcionar para o transporte de passageiros. Entretanto, por problemas técnicos, estão desativados desde o dia primeiro de novembro de 2020.
Esses trechos estão sob a responsabilidade da Supervia. Segundo uma nota da companhia de transporte ferroviário, a paralisação se deve a medidas de segurança. Foi elaborado um projeto de recuperação da ponte que passa pelo rio Ribeirão das Moças em função da necessidade de reparos estruturais. A Supervia afirmou que o projeto está sendo atualizado e, quando questionados, não manifestaram se existe ou não uma previsão de reabertura.
Pablo Henrique Mendes, formado em Administração Pública pela UFRRJ, elaborou um Trabalho de Conclusão de Curso sobre o Ramal Vila Inhomirim. A escolha do tema veio do seu vínculo desde a infância com o trem que via passando na frente de sua casa. Na época, ele dizia a todos que quando crescesse seria “motorista de trem”. Pouco tempo depois, teve duas tristes descobertas: o nome da profissão, que na verdade é maquinista, e a realidade desse trem, que não é tão bonita quanto em seu sonho de infância.
Pablo diz que o trem que passa pelas estações de Fragoso e Vila Inhomirim apresenta muitos problemas, como piso muito danificado e janelas que não funcionam, o que dificulta as viagens em dias de chuva. Ele também completa que são frequentes os atrasos, que existem muitas crianças trabalhando no trem e passageiros interrompendo o fechamento das portas, o que mostra a falta de fiscalização.
Dentre as consequências da paralisação, Pablo relata que quem é prejudicado com o fechamento das estações de Fragoso e Vila Inhomirim não são só os moradores de Magé, mas sim toda a região metropolitana que acaba sofrendo com a maior quantidade de ônibus e carros, gerando engarrafamentos e dificuldade de mobilidade.
O administrador público também observa a importância da ferrovia e da memória, e que o fato das estações de Vila Inhomirim e Fragoso serem originárias da primeira ferrovia do Brasil traz um potencial imenso para a cidade. No entanto, a falta de divulgação é um obstáculo para isso.
Com o som do trem ao fundo, Pablo se emociona, lamentando o fato das pessoas não terem consciência do valor da riqueza histórica que existe: “A gente não tem um museu, a gente não tem uma casa de memória, a gente não tem uma insignificante plaquinha que diga que estamos passando pela história do nosso país e que devíamos ser um polo cultural. Isso tem capacidade para movimentar todos os bairros do entorno, gerando economia, cultura, lazer e emprego, seja direto ou indireto. É muito triste ver esse potencial não ser utilizado. Isso tem impacto na nossa construção como cidade e na nossa formação como cidadão”.
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Por Eduarda Soares e Gabriel Iquegami – Fala! UFRJ