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Do vento, o surgimento: Saci Pererê

As influências negras e guaranis de um mito que habita o imaginário social.

Era uma tarde comum numa fazenda de Januária, Minas Gerais. Maria das Dores F. de Souza, apelidada de Dorinha, conta, sorridente, que estava sentada sob uma árvore de copa cheia (uma mangueira mais precisamente) acompanhada de outra menina, a filha do vaqueiro, divertindo-se com brincadeiras populares da infância.

De repente, sem qualquer aviso, notaram que, de um dos galhos da árvore, apareceu uma figura negra pulando disparada ao chão: era o Saci Pererê. Dorinha diz que ele as rodeava, rindo, inofensivo e elas riam também. Com o cachimbo na boca e uma perna só, o Saci foi espantado quando o vaqueiro, ao ouvir as altas gargalhadas, chamou pela filha. Dorinha ainda conta que, durante a infância na fazenda, o pai dizia ouvir o assobio do Saci chamando as crianças para brincar.

Luana Benedito diz que o Saci sempre esteve presente na sua infância. Frequentava acampamentos no interior onde sempre falavam sobre o mito e faziam brincadeiras. “Falavam para as crianças que o Saci existia no meio da floresta”, comenta. Ela acredita que o folclore é importante para a criação de uma identidade cultural e um apego à pátria, fugindo do consumo exacerbado de cultura estrangeira e do imperialismo.

Djana Rodrigues diz conhecer a história do Saci desde a pré-escola e, durante a infância, possuía grande curiosidade sobre o folclore. Ela era um pouco cética sobre a existência, mas dando devida importância à mitologia. Afirma que tinha medo do Saci: “tudo o que é muito bizarro, fora do normal, me dava medo.

O Saci Pererê, por exemplo. Me lembra até o Taz”. Djana ainda complementa que a impressão que possui do Saci é a de uma criança pentelha, bagunceira, que rouba e faz coisas ruins. Calmamente e em tom reflexivo, ela comenta que é possível tirar um aprendizado das histórias do folclore.

Quem é ele? De onde vem? Sua história é incerta e passa por variações. Alguns também dizem já tê-lo visto, outros apenas carregam sua imagem no imaginário. O fato é que o Saci está presente nos brasileiros que tiveram contato com seu nome e lenda.

Caso o leitor fosse perguntado sobre a história do personagem, talvez contasse alguma versão entre as várias existentes. Essa multiplicidade ocorre, porque trata-se de uma lenda e, por isso, sofre a influência da cultura, da geografia e da faixa etária. Uma lenda é uma história contada oralmente e passada de geração para geração.

Não é uma história escrita e tornada popular, é simplesmente contada. “Por esta razão, muitas variações acontecem. Toda vez que alguém conta uma história de Saci, nasce um novo, porque as influências pessoais do contador atingem a história falada”, afirma Rudá K. Andrade, historiador formado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Rudá conta, empolgado, sobre a descoberta, em 2018, do livro O Fabuloso Inventário dos 77 Sacys, no qual constam 77 variações da figura: com duas pernas, negros, indígenas, portugueses e até francês. O livro foi encontrado enterrado embaixo de um bambuzal no interior de São Paulo e está na exposição #OcupaSacy, com ilustrações do Marcelo Bicalho, em Minas Gerais.

Acredito que uma boa xícara de café, talvez acompanhada de alguns biscoitos sabor manteiga ou um delicioso bolo de fubá, seria uma companhia excelente para embarcar nesta história. Já tenho minha bebida em mãos e os dedos ansiosos para destrinchar alguns aspectos da construção chamada Saci Pererê, ícone da cultura brasileira.

Saci, de onde vens?

“Pula que nem esquilo

Corre que nem preá

Barrete vermelho

e cachimbo,

ele vai chegando…

ele vai chegando…

ele vai assobiar….

Quem deu nó cego

no rabo do cavalo?

Quem gorou os ovos

da galinha?

Quem desmanchou

a casa do passarinho?

Foi o saci-pererê

que saiu do redemoinho.”

  • Elói Bocheco

O menino Saci perambula pela floresta com seu cachimbo, saltitante que só. Dizem por aí, pelas esquinas da vida onde o vento sopra, que uma de suas pernas fora perdida numa luta de capoeira. Será? Que língua ele fala? Poderia ser o espanhol, poderia ser o português, ou poderia ser o riso.

Seu assobio vem lá do sul da América. Foi mais ou menos entre Paraguai, Argentina e Brasil onde a lenda apareceu, os registros datam supostamente de por volta do século 19, me disse o Rudá K. Andrade. Sinceramente, o Saci é até que jovem! Imagine só, surgiu há pouco mais de 200 anos. Não me parece lá tanto tempo. A origem de um mito não é encontrada especificamente, o que acontece é uma especulação de estudiosos para tentar precisar um local ou data.

O nome Saci é de origem indígena, precisamente guarani, mas a figura foi incorporada pela cultura caipira e também pelos povos africanos escravizados no território. Esses grupos, ao contar suas versões do mito, depositavam sobre ele suas próprias características culturais e isso foi essencial para a formação do Saci Pererê como o conhecemos.

Saci, quem tu és?

“Bonequinho preto 

de uma perna só,

cachimbo na boca 

e gorro vermelho 

— fogo vivo de suas magias.”  – Cleonice Rainho

Durante a conversa com Rudá, algumas aproximações foram feitas entre o Saci, os indígenas e os negros para que se torne possível a compreensão de sua complexidade e magnitude. O Saci tem uma forte ligação com a floresta. Este lado ecológico o aproxima tanto de sua matriz guarani quanto da africana, já que permite comparações com o orixá Ossanha e o Exu, guardião das aldeias, das cidades e casas.

Além disso, o Saci guarda em si um lado infantil, uma criança risonha, brincalhona e traquinas. Imagino eu que, quando o Saci apareceu para Dorinha e sua amiga, só queria mesmo brincar, expressão do menino que nele vive.

Além disso, o Saci guarda em si um lado infantil, uma criança risonha, brincalhona e traquinas. Imagino eu que, quando o Saci apareceu para Dorinha e sua amiga, só queria mesmo brincar, expressão do menino que nele vive.

Quando algum indivíduo considerado mau adentra na floresta em busca do quilombo, ou visando o desmatamento, é o Saci quem defende. Impõe-se com bravura, faz o indivíduo se perder, esconde suas coisas e faz com que seja atacado por animais. 

“A floresta é uma entidade, um ser que nunca foi entendido. Há um saber na floresta que os índios e o Saci participam, mas que não é de entendimento da civilização, do mundo racional e, quando este mundo não compreende, destrói, ateia fogo”, diz Rudá, que ainda complementa: “acredito que o Saci venha sofrendo desse mal. Além da questão racial, mas também pela ligação com a própria floresta, por estar ligado a mata ele também vira um alvo de preconceito e distorções”.

O Saci é um grande protetor da mata e conhecedor de plantas. Domina a medicina natural como ninguém! Um chá preparado pelo Saci deve ter efeito imediato, sem resistência de nenhuma gripe. Talvez nossas avós tenham aprendido muito com ele. Este ser enigmático vive entrelaçado com a floresta, a eterna mãe, cujo cordão umbilical nunca fora cortado. Não consigo pensar o que seria de um menino sozinho se a mata não lhe servisse de casa.

Ainda conversando com Rudá, chega-se ao seguinte ponto: por todo o histórico do povo negro no território brasileiro (não nos esqueçamos do quadro Aplicação do Castigo do Açoite, do francês Jean-Baptiste Debret),  a imagem do Saci deu lugar a um discurso racista, o aproximando da figura de um diabo, ou a de um ladrão, ou a de um ser extremamente travesso e que só faz maldades.

“Tudo isso com o intuito de depreciar a imagem do negro, demonstrando os resquícios do racismo presente na sociedade brasileira e a popularização do discurso por meio de um mito”, comenta Rudá. Algumas pessoas acabam associando o Saci a essa negatividade, totalmente desvirtuada da real construção da lenda. 

E diz-se ainda que o Saci seria o símbolo brasileiro por conta da confluência das três raças: o nome guarani, a pele negra e o gorro (piléu), símbolo da liberdade dos escravos desde os tempos do império romano, que o adquiriam quando eram libertos. Acreditar no Saci como símbolo nacional não significa não ser racista, é apenas uma forma de mascarar o preconceito. “É preciso ter cuidado com esse discurso”, orienta Rudá.

Segundo Rudá, o shorts do Saci nada é mais do que a demonstração da civilização que veste um índio. “O vento é associado ao Saci porque traz a transformação, tornando a figura um movimento neste sentido. O redemoinho é associado ao Saci porque desde Padre Vieira, é associado ao demônio, algo que tira a ordem.”

A ideia da saciologia moderna anseia a compreensão do papel de resistência do Saci, da liberdade e da diversidade — cada história contada dá lugar a uma nova figura —. Não se deve mais ensinar que as crianças prendam o Saci numa garrafa. “Isso remete a imagem de um cativeiro. Em Lobato, caçar e prender o Saci é a ideia de possuir um escravo, já que o Pedrinho cita que quando ele tem o Saci torna-se seu senhor, e esse Saci é obrigado a realizar seus desejos”, diz Rudá.

Caríssimos, minha bebida neste momento encontra-se gelada, não nego. Não beberiquei um só gole durante essa fabulosa história. Mas… Ah! Saci, se um dia tu me aparece nem susto eu levo mais. Captei tua resistência e entendi sua liberdade. Somos todos Sacis.

Saci que, entre mim e ti, há a consciência, mãe formadora de nós. Carrega o peso do mundo em suas costas, equilibrando-o sobre a perna solitária. E tua imagem construída a partir de demasiadas perspectivas, fazem-no perder-se como quem já nem conhece a floresta. Popularizado em nós, é negro, mas de fruto guarani. Nada de diabólico como o pintam, faz apenas a proteção de seus entusiastas. Surge e desaparece como o vento, assobia como as rajadas e brinca como uma criança de senzala, sem o abatimento pela triste história que condena e põe um erro forjado na alma.

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Por Kaynã de Oliveira – Jornalismo Jr. ECA USP

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