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‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’ – Leia uma resenha do filme

O filme Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), dirigido pelo cineasta Glauber Rocha, é uma obra brasileira que retrata de forma muito interessante um período importantíssimo na história do país: a República Velha. A obra é marcada pela dualidade apresentada no título, que é ressaltada no filme através de dois movimentos de contestação contra o governo vigente: através da prática missionária e do cangaço, que representam Deus e o diabo, respectivamente.

Logo no começo, o que mais chama atenção são os modos utilizados para a ambientação da narrativa. Em primeiro lugar, destaco que o filme é em preto e branco. Essa característica é digna de uma evidenciação, pois os recursos visuais utilizados em um filme podem sugerir diversos significados que, mesmo implícitos, colaboram para a complementação e entendimento da obra. De acordo com a matéria Representação em preto e brancoredigida por Danielle de Noronha para o site abcine.org.br, no cinema, desde a década de 1960, as cores se tornaram hegemônicas. O filme foi produzido em 1964, e isso me faz pensar que o uso do preto e branco na obra pode ter sido proposital, para que assim haja o destaque de certos elementos presentes na produção de Glauber Rocha.

Deus e o Diabo na Terra do Sol – Leia uma resenha

Já nos primeiros minutos do drama, podemos deduzir várias coisas a partir do universo apresentado, visto que há a apresentação de um ambiente seco, escasso em recursos e rico em pobreza, o que pode-se inferir a partir da visualização da carcaça de alguns animais deteriorando-se ao Sol, e também do solo do local. O uso do preto e branco pode ser justificado por colaborar para que o público interprete a gravidade e a negatividade dessas características.

Em segundo lugar, aponto as condições de vida dos personagens principais da obra: Manuel e Rosa. Ambos vivem em uma casa simples com quintal de terra batida no sertão nordestino, criando gado, moendo mandioca para fazer farinha e se manterem vivos. É impossível ignorar o semblante dos dois, marcados pela desesperança, tristeza e sofrimento. Esses recursos visuais também colaboram para ambientação da obra num contexto de pobreza e insatisfação.

Deus e o Diabo na Terra do Sol
Rosa e Manuel. | Foto: Reprodução.

Na tentativa de transformar sua realidade e também de sua esposa, Manuel tenta vender seu gado ao coronel Moraes, para que, com o dinheiro, tenha condições de comprar uma nova terra e, assim, viver com base numa agricultura de subsistência. Suas expectativas são brutalmente esmagadas pela morte de quatro de suas vacas, que foram atacadas por cobras no caminho. Nessas condições, o coronel que já havia feito uma breve negociação com Manuel, recusa a proposta: “Manuel: Dá licença outra vez, senhor Moraes, que lei é essa? | Senhor Moraes: Quer discutir? | Manuel: Não, senhor. Só tô querendo saber que lei é essa que não protege o que é meu”.

Considero esse trecho do diálogo dos dois muito interessante, e marcou demais a cena para mim. Ele ressalta como no coronelismo havia a defesa dos interesses de apenas um grupo da sociedade, e contextualizando Achille Mbembe (2018), exercendo a necropolítica, prática que consiste no uso dos poderes social e político para ditar como algumas pessoas podem viver e definir o modo como outras pessoas devem morrer. Manuel, insatisfeito com o modo em que está sendo tratado, reage da pior forma possível: assassinando o coronel.

Dessa forma, o homem parte com sua esposa para seguir São Sebastião, descrito pelo narrador como um homem que possuía “bondade nos olhos e Jesus Cristo no coração”. Manuel, assim como vários outros sertanejos que também caminhavam com o missionário, buscavam a graça divina, o perdão e a proteção, e nessa parte do filme, Glauber Rocha retrata de maneira muito emocionante e forte essa forma de contestação da República.

A Guerra de Canudos é perfeitamente relacionável com esse momento do filme, pois assim como havia o São Sebastião, houve também o Antônio Conselheiro, outro missionário anti-republicano não representado no filme, mas que coagiu milhares de sertanejos a instalarem-se em outro local, livres das influências dos coronéis, situação muito bem retratada no filme Guerra de Canudos (1997), outra ótima obra, porém produzida pelo diretor e roteirista Sergio Rezende. Não acredito que o retratado no filme de Glauber seja uma referência à Guerra de Canudos, pois esse evento é citado em Deus e o Diabo na Terra do Sol.

Assim como Antônio Conselheiro, São Sebastião era, claramente, uma ameaça à ordem imposta pelos coronéis, e então, foi contratado o “Antônio das mortes” para dar fim à organização. A concretização de seu objetivo fez Manuel e Rosa caminharem sem rumo pelo sertão, e assim, foram de encontro a Lampião (Virgulino Ferreira da Silva), um cangaceiro brasileiro que ficou conhecido como Rei do Cangaço, por ter sido o mais bem-sucedido líder do movimento da história. Nessa fase do filme, fica evidente a representação do “diabo”.

Lampião
Lampião, o Rei do Cangaço (representação no filme). | Foto: Reprodução.

Manuel, antes determinado em ter os pecados perdoados, disposto até a “retirar o demônio da esposa” para que isso acontecesse, agora viajava com Lampião cometendo crimes, ajudando o líder cangaceiro a executar suas vinganças, roubando comida e destruindo propriedades. Virgulino até o apelidou de “satanás”.

Dessa maneira, Glauber Rocha representa de maneira muito intrigante as duas formas de objeção à República, e casando muito bem com a dualidade do título da obra, o que foi o mais genial na minha opinião, visto que usou maravilhosamente esses recursos verbais para o ressalte da contradição de ideias.

Gosto muito também como utiliza o termo “Terra do Sol” para se referir ao sertão nordestino. Ele pode admitir, ao meu ver, uma interpretação que coloca o Sol como potencializador da seca, fator climático que influencia muito nas condições de vida da população (mesmo sendo os fatores social e político os mais preocupantes). 

ReferênciasDeus e o Diabo na Terra do Sol (1964), dirigido por Glauber Rocha, financiado pela Prefeitura do Rio de Janeiro, Cinemateca Brasileira.

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Por Eduarda Leite – Fala! UFG

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