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Conto – Florescências

Talvez ele nunca leia isso. Mas se um dia, porventura, ele souber de tudo que sinto, tenha total consciência de que são puras verdades.

Beba duas doses de coragem pela manhã e sobreviverá.

Naquele dia não entendera muito o porquê. Passou na cafeteria e pediu o de sempre: café com nozes e baunilha. Foi de lá para o trabalho, oito horas por dia, sendo alguém eficiente. De lá, natação, apartamento, banho e uma velha livraria. Raras as noites que saía de seu apartamento. A não ser pra comprar comida quando estava com preguiça de cozinhar, ou quando lembrava dos trevos que cultivava na sacada e saía na varanda pra regá-los. E isso também era uma desculpa pra ficar ali, devaneando com as luzes da cidade.

Às vezes gostava de mentir pra si mesmo. Ou como naquela noite que se conheceram. Quando não tinha ninguém para conversar e foi numa velha livraria. Eram dois homens altos, desconhecidos nessa vida, mas não em outras. Os apresentei. Disseram prazer, Eduardo, prazer, Teo. A livraria não estava cheia, havia eles e talvez mais alguns seis gatos pingados, mas ouviram boatos que uma alma especial reconhece de imediato outra (boatos possivelmente ditos por mim, prefiro não comentar por agora). Trocaram telefones e se encontraram outras vezes. Vezes essas marcadas, outras não. Viraram amigos, ou mais que isso.

Eduardo, tinha um ano menos que trinta, e Teo um mais que vinte e cinco. Eduardo tinha cabelos cacheados, mas nem tanto. Morava em um pequeno apartamento, era jornalista e trabalhava em uma editora e, nas horas vagas, aprendia a fotografar. Teo usava óculos, tinha um apartamento um pouco maior que o de Eduardo no centro da cidade, passou cinco anos cursando arquitetura e mais cinco fazendo astronomia, e ainda não aprendera quase nada sobre mim (acho que nem um dos dois sabem muita coisa sobre o que sou, acho que ninguém, na verdade. Juro que quando os conheci me apaixonei mais do que eles próprios).

Depois daquela noite em que se conheceram, algo mudou, eram diferentes. Depois que Eduardo chegou em casa naquela noite em que conheceu Teo, ficou encarando aqueles números que recebera pouco antes. Como se quisesse desvendar algum segredo, ou como se tentasse ler e descobrir mais sobre quem era esse cara que conhecera tão rapidamente e se tornara tão único. Trocaram ligações diversas noites seguintes.

De lá, migraram para encontros toda manhã na mesma cafeteria que algum deles comprara café com nozes e baunilha cotidianamente. Em um desses encontros, Teo chegou primeiro. Eduardo não demorou muito, demorara mais tempo do lado de fora admirando a beleza das costas de Teo. Camisa preta, calça jeans, cabelos molhados, barba e óculos, talvez nada que chamasse a atenção para aquele homem no balcão que visivelmente esperava por alguém ou que o tornasse muito autêntico, mas era. Eduardo entrou. Sentados ali, passavam horas juntos trocando conhecimentos e histórias. Foi em um desses encontros rotineiros que Eduardo ensinara para Teo o que era prosopopeia, efeito mandela, ascendente em peixes, e relatara o quão não gostava de amoras. Enquanto isso, Teo o levava pra ver as estrelas, num lugar que conhecera nove anos antes.

Com o tempo, as manhãs se tornaram pequenas para tanto assunto. Eduardo se tornou Edu, Teo comprou flores pra fazer companhia aos trevos da sacada, se tornaram melhores, Eduardo aprendeu norueguês – já sabia tantas línguas, porém, amava a da alma.

Teo foi fazer intercâmbio na Alemanha, o que deixou Eduardo entediado por semanas, passara horas na tela do computador escrevendo artigos. Outrora se distraía com o barulho dos carros e o pôr do sol. Teo voltou, sua barba tinha crescido, estava mais bonito. Na noite seguinte, compraram um vinho, tomaram banho de chuva e Eduardo deu para Teo um livro: O Buraco de Minhoca Que Existe Em Teu Olho. Um livro pequeno, escrito por ele mesmo, com alguns poemas. Teo lera em um dia e não sabera definir o quanto amara. Foram para o apartamento de Eduardo. Passaram a noite ali. Estavam nus. “Qual sua cor favorita?”. “Azul, e a sua?”. “Azul também”. “Você tem um corpo bonito”. “Você também”. Tocava Ben Howard, estava escuro e estava um pouco quente.

Três semanas depois, Teo fez vinte e sete. Eduardo deu a ele uma réplica de A Noite Estrelada e Teo pendurara na parede. Já não se fazia cedo, Teo ajudou Edu a pintar seu apartamento, colocou o seu a venda e mudou-se de lá. Passaram horas ouvindo Clarice e arrumando caixas. Eduardo aprendeu a gostar de amora. Teo comprou amoras. No dia seguinte foram vigiados pela inconformista da Maria, que morava no 507, e que passava a vida na janela invejando amores, e que sobrevivera com sequelas a um casamento fracassado (fracassado porque não sabia meramente nada sobre mim).

Entrelaçaram os dedos, como se quisessem comprimir o sangue quente das mãos. No ecoar de passos na garagem, antes de irem para o trabalho e terem que lidar com a vontade de virar a próxima esquina, até que pudessem voltar para os olhos de Teo que eram infinitos e para os braços de Edu que eram casa para morar, abraçaram-se trocando peles, como se em silêncio quisessem dizer: “Te vejo mais tarde. Pô, se cuida. Passa no supermercado e compra aquele vinho. Cê tá tão bonito.”.

Entre o ar agradável daquela manhã e a felicidade de serem dois em um, gentilmente, ouvi um sussurro honesto de eu te amo dançar no ar. Te amo dito não na intenção de ser correspondido, somente dito porque achava bonito carregar verdades. Timidamente, outra voz fundiu-se com a atmosfera matutina, provando a teoria de que sentimentos recíprocos sabem voar. Olharam-se e sorriram.

A maioria das pessoas passam uma vida inteira pregando cartazes nos postes à minha procura. Mas a questão é que eu só apareço nas horas certas. Tenha calma, perca as esperanças ou, pelo menos, não as deixe visíveis para mim e me encontre numa esquina qualquer. Estarei lá, observando tudo como sempre faço, e não diga simplesmente nada, apenas sinta.

Eram quase oito da manhã e os ponteiros dos relógios pararam e não lhes faltavam absolutamente nada. Sabiam.

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Por Higor Gabriel Barbosa dos Santos – Fala! UFMG

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