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Como a indústria da moda afeta a percepção dos corpos femininos?

O movimento feminista promoveu e continua a promover incontáveis avanços em relação aos direitos e à liberdade da mulher, mas a realidade não reflete exatamente isso, principalmente quando se diz respeito aos corpos. A mulher moderna pode e não pode ser tudo, uma vez que as silhuetas estão no controle de uma instituição que incansavelmente capitaliza, padroniza e difunde corpos irreais: a indústria da moda

Indústria da moda
Indústria da moda. | Foto: Reprodução. 

Impactos da indústria da moda

Seus olhos brilharam quando viu na vitrine de esquina uma calça perfeita. Cor, modelo, acabamento… nunca antes havia se encantado tanto por uma peça. Há meses procurava por um par de jeans, não por falta de procura, mas por falta de tamanho. Entrou na loja. Trinta e quatro, trinta e seis, trinta e oito, quarenta. Mais uma vez, a história se repetia, e mais uma vez iria deixar o shopping de mãos abanando.

Decidiu voltar para casa para evitar o tormento de acabar mais um dia chorando no provador. E é assim que termina o dia de compras de muitas mulheres que sofrem com a comercialização de corpos magros e ‘perfeitos’ padronizados pela indústria da moda. 

“Por que você não procura por uma loja com tamanhos maiores?”, isso é o que Danielli Piffer escuta frequentemente quando decide embarcar na frustrante missão de comprar roupas. Desde criança, a estudante de biologia sente-se desconfortável em relação ao próprio corpo, e enxerga isso principalmente como resultado da influência que a era da idolatria corporal promove.

Eu nunca consigo me ver representada porque todas as mulheres em revistas e manequins são magras. Não sinto que exista espaço para mim na moda ou na sociedade. Todas as vezes que vou comprar roupas é um martírio porque as vendedoras me olham de cima a baixo e fazem comentários desnecessários.

desabafa. 

A moda assume a posição de acompanhar e traduzir todas as pressões culturais sobre o corpo feminino desde a Revolução Industrial, que possibilitou a difusão de um padrão ‘ideal’ de beleza, representado pelo magro, sexy e jovem, a santíssima trindade da era moderna. 

Meu corpo minhas regras?

A disseminação do ideal de beleza como um ‘produto’ provoca reflexos em diversas mídias, que vendem e incentivam padrões físicos considerados ‘ideais’. Dentro dessa cultura de valorização estética, a moda acaba sendo relacionada a um ‘corpo- padrão’, caracterizado pela magreza, o conceito de beleza vigente. A associação do corpo magro e inatingível à figura de desejo gera debates no universo fashion não só em relação aos corpos das modelos, mas também sobre a numeração das roupas produzidas pelas marcas. 

Paula Antunes*, no auge de seus 20 anos, trabalha como modelo em uma loja de confecção própria e sente-se constantemente pressionada a manter um corpo cada vez mais magro.

Embora eu seja uma mulher magra, frequentemente ouço comentários dos estilistas durante as provas, do tipo “nossa, o seu quadril está enorme, está impossível provar roupa em você, parece mais um tamanho G”.

conta.

A pressão fez com que Daniele desenvolvesse paranoias em relação ao corpo, o que inclusive já levou a manequim a comer escondida no trabalho para evitar comentários como: “Por isso que você está enorme, não para de comer”. 

impactos da indústria da moda
Os corpos femininos sempre foram moldados por diversas instituições. | Foto: Reprodução.

Independentemente da silhueta, o padrão de beleza imposto pela moda exige que os corpos se transformem cada vez mais. A indústria fashion passa, então, a produzir vulnerabilidade, e a construção social em torno dos mandamentos da beleza intensifica cada vez mais a insatisfação das mulheres quanto à própria aparência.

Quem não se adequa aos padrões, sente na pele a angústia da sensação de não pertencimento. “As roupas não são atuais e não me valorizam em nada, é só um monte de pano que me cobre da cabeça aos pés. Só uso roupas ‘de velha’ e sem graça, não me vejo bonita desse jeito. Nunca encontro nada que quero porque sou obrigada a levar o que me serve”, conta Danielli.

A influência da mídia nas formas dos corpos femininos determina que estes devem ser moldados para se adaptarem aos formatos das roupas sugeridos pela moda atual. As mulheres são as mais afetadas por esse culto da aparência, justamente porque são sempre bombardeadas com informações sobre beleza.

Desta forma, a moda consegue revelar padrões estéticos e, consequentemente, interferir no modo como as pessoas cuidam do corpo, sugerindo mudanças e ajustes que, muitas vezes, levam à adoção de medidas nada saudáveis, desencadeando até distúrbios alimentares e distorções de imagem. 

Os transtornos alimentares

As aulas de ballet já não eram as mesmas quando Ana Luiza Iost e Beatriz Silva* começaram a comparar seus corpos com o das outras dançarinas no collant. “Eu fazia ballet e era a única que tinha coxas grossas e peitos grandes, então eu achava que precisava mudar para me encaixar no padrão magrinho das outras meninas”, conta Ana.

A estudante de publicidade, Beatriz, também se sentia desconfortável nas aulas, e decidiu seguir uma dieta restritiva sem acompanhamento, a fim de compensar sua frustração com o manequim. “Baixei um aplicativo de contagem de calorias, e comparava quem comia menos com uma amiga minha. Também me viciei em tomar laxante, tomava uns 3 por semana”, lembra. 

“Posso afirmar que eles têm aparecido [transtornos alimentares] cada vez mais cedo no caso das meninas”, conta Marina Nogueira, nutricionista e criadora do Não Conto Calorias (@naocontocalorias), sobre os transtornos alimentares. Percebe-se que o mundo da moda e toda sua difusão midiática influencia meninas cada vez mais novas na busca pelo corpo padrão, e assim Marina investe em uma abordagem não prescritiva, baseada no aconselhamento nutricional.

“Os transtornos alimentares são doenças psiquiátricas caracterizadas por disfunções do comportamento alimentar e da imagem corporal. As mais comuns são a Anorexia Nervosa, a Bulimia Nervosa e o Transtorno de Compulsão Alimentar”, conta a nutricionista. Existem várias causas para o surgimento dos distúrbios, dos quais pode-se destacar outras comorbidades psiquiátricas, a cultura alimentar atual (que populariza diversas dietas restritivas) e a aceitação social pelo tamanho e formato do corpo. 

transtornos alimentares
No Instagram, Marina compartilha suas visões sobre como o acompanhamento nutricional é muito mais do que ‘fazer emagrecer’. | Foto: @naocontocalorias.

Ana Luiza procurou por acompanhamento nutricional, e luta contra a Bulimia e a Anorexia desde 2014. Beatriz, porém, levou tempo para perceber a problemática de seus comportamentos, e nunca compartilhou suas aflições sobre o próprio corpo com sua família ou com profissionais da área.

Como vivemos numa sociedade onde o culto ao corpo é exacerbado e o ‘comer perfeito’ é uma forma de adequação social, muitas não percebem ou não querem se tratar por medo de uma ‘perda de controle’ sobre o que comem ou sobre o peso do corpo. Comportamentos típicos de alguns transtornos alimentares são vistos como ’normais’ e até como ‘esperados’ pela sociedade, sobretudo, nas mídias sociais.

conta Marina. 

Ao entrar no mundo adolescente, Melissa Drigo começou a se comparar e desejar o corpo perfeito, que é vinculado por todas as mídias e indústrias. “Comecei a dar indícios de depressão, e passava horas sem comer. Por conta disso, desenvolvi compulsão alimentar e acabei piorando a minha saúde”, conta a atleta, que encontrou no kick boxing a força necessária para superar as barreiras da autoaceitação. “As pessoas acabam buscando tanto a perfeição, sabe? Que não veem o que está acontecendo por dentro. Não conseguem enxergar o quão sufocadas estão. Eu não estava bem por dentro, mas queria estar bem por fora”, reflete. 

Apesar da consciência quanto aos riscos à saúde, o padrão estético continua sendo o desejo de muitas mulheres. “Isso só reforça a ideia de que nosso corpo é uma massinha de modelar, que temos total controle sobre ele, e que a felicidade depende de um corpo ideal. O que as pessoas não percebem é que, a cada época, esse corpo (ou essa felicidade) tem um tipo físico. Portanto, nunca alcançaremos esse apogeu”, afirma Marina.

Historicamente, a sociedade de cada período diferente exige uma silhueta diferente das mulheres, para que se encaixem nos padrões estabelecidos. O corpo feminino nunca esteve sob suas próprias regras, e a moda expõe essas noções de transformação do corpo ao longo das décadas. 

Corpos livres

“Depois que te conheci, eu uso tudo o que quero”, dizem as seguidoras de Layla Brígido, influencer plus size que defende a representatividade das mulheres gordas e a valorização de corpos reais. “Eu fico muito grata e emocionada, porque eu sempre quis mostrar que foi possível para mim e é para elas também! É uma honra poder ser esse empurrão, poder fazer com que elas questionem as coisas, reflitam e se libertem!”, conta Layla. 

Apesar das mídias sociais representarem um dos meios de maior propagação da ideia de beleza atribuída à magreza e jovialidade, elas também vêm se tornando um espaço de compartilhamento de movimentos que procuram valorizar a diversidade do corpo feminino em suas diferentes formas. Percebe-se que o padrão de beleza começa a ser entendido como uma construção social, e a naturalização dos corpos reais começa a surgir como uma forma de desafiar essa ideia, incentivando uma maior aceitação das silhuetas. 

Em época de exaltação corporal, a gordura é associada a características negativas. Para que o corpo magro seja valorizado, é preciso que o corpo gordo seja desvalorizado, e é por isso que somente a magreza é relacionada a tudo aquilo que é positivo. “O corpo como um produto gera a falsa ideia de que somente o corpo ‘ideal’ é o saudável, afastando cada vez mais a população de discussões sobre saúde e bons hábitos alimentares, além de uma boa saúde mental”, defende Marina. 

“Na sociedade, o gordo é considerado aquele que não deve ser olhado com a mesma dignidade de uma pessoa magra”, diz Layla sobre o atraso do mercado plus size em relação ao slim. “Existe o reforço e a necessidade de ‘parecer mais magra’ nas peças, as dicas seguem sempre voltadas a isso: disfarçar seu corpo, alongar, parecer mais fina. Parece inofensivo ‘usa quem quer’, mas a verdade é que existe muita gente que se torna refém disso, somos ensinados que para o look parecer bom, é preciso que ele ‘nos emagreça’”, afirma a influencer

autoestima
Layla defende que a roupa certa para seu corpo é aquela em que você se sente bem. | Foto: @laylabrigido.

No perfil, @laylabrigido, a ideia de que a moda deve ser inclusiva e valorizar todos os tipos de corpos é sempre enfatizada. “Foi triste me dar conta que, quando via peças no meu tamanho, elas eram extremamente diferentes das peças menores, sem informação de moda, muito ultrapassadas, feitas apenas para cobrir, e não para expressar meu estilo. Frustrante! Usei coisas que nem me identificava porque era literalmente o que tinha”, lembra. 

O conteúdo é cada vez mais procurado por mulheres que tentam se livrar da escravização da indústria. Os espaços voltados ao meio plus size funcionam como instrumentos de valorização da diversidade corporal e da resistência diante das padronizações estéticas, e encontram no ambiente digital a abertura necessária para debater as relações entre moda e corpo feminino. “A moda é um reflexo da sociedade e a sociedade é gordofóbica. Ela que cria esses padrões inatingíveis!”, conta Jéssica Lopes, que a cada dia, assim como Layla, conquista um maior número de seguidoras que procuram por um conteúdo mais real.  

Em seu perfil no instagram, @jessicalopes, a influencer compartilha os avanços da moda plus size e como a moda tende a se transformar cada vez mais para incluir todos os tipos de corpos. “Comprar roupas já foi desafiador, mas eu sempre quis usar os looks que eu queria, então eu usava a criatividade a meu favor, personalizava peças, comprava na sessão masculina, cortava, pintava e dava meu jeito. Hoje em dia, é outra realidade, existem inúmeras marcas que atendem ao mercado Plus, de inúmeros estilos, e encontro basicamente tudo que tenho vontade”, conta. 

Jéssica reconheceu como poderia quebrar todos os padrões quando seu trabalho na Internet começou a se tornar inspiração e referência para outras pessoas. “Hoje, minha relação com o meu corpo é de extrema aceitação e autoestima, mas não foi sempre assim, essa autoestima eu construí ao longo de 11 anos de caminhada, onde, antes de começá-la, tentei me encaixar em padrões e lutar contra a minha imagem”, relembra. 

corpos livres
Através de seu perfil no Instagram, Jéssica promove a normalização dos corpos reais. | Foto: @jessicalopes.

A liberdade que esta caminhada proporciona inspira cada vez mais mulheres a se livrarem de suas inseguranças e trabalharem cada vez mais o amor próprio dentro de uma sociedade que quer a todo momento impor limites e determinar as silhuetas.

Eu defino meu trabalho como uma influência positiva para as mulheres se olharem com mais carinho e compaixão, para que elas se desprendam de tudo que foi ensinado ao longo da vida, de que seus corpos são errados e passem a enxergar sua real beleza, se empoderando através das suas roupas.

pensa Jéssica. 

Layla garante a mesma ideia de que estilo independe de tamanho, e também enxerga a liberdade como sua maior inspiração. “Viver uma vida em função de um padrão massacra e não te deixa crescer, somos tão mais que isso, não nascemos para viver como reféns, nascemos para protagonizar nossa história!”, conclui. 

*Alguns nomes foram alterados para manter o anonimato.

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Por Gabriella Capuano – Fala! Cásper

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