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Opinião: Afeganistão não foi deixado à própria sorte, mas foi deixado de lado

Qual é a diferença entre uma tragédia marcada para amanhã e uma marcada para um futuro distante? O ideal não seria impedi-lá independente do momento para qual ela é prevista?

Pessoas tentam se segurar no avião pelo lado de fora para fugir do Afeganistão.
Pessoas tentam se segurar no avião pelo lado de fora para fugir do Afeganistão. | Foto: Reprodução.

Após retirar tropas americanas do Afeganistão, com a justificativa de que o país não representava mais uma ameaça terrorista, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, disse que a nação afegã poderia ser deixada à própria sorte. Entretanto, depois de quase 20 anos de ocupação, essa entrega “à sorte” resultou em caos. Desespero para sair do país a qualquer custo – mesmo que o custo fosse a vida – e uma espécie de “Déjà vu” naqueles que já viveram tempos horríveis nas mãos do Talibã, foram o que retrataram o retorno temido por especialistas, do grupo ao poder do Afeganistão. 

Afeganistão, abandonado à própria sorte após 20 anos de controle norte-americano

Em uma espécie de efeito cascata, o grupo considerado sinônimo de fundamentalismo extremista islâmico invadiu rapidamente uma província após a outra, até chegar na capital de Cabul, no Afeganistão. O presidente Ashraf Ghani deixou o país ainda no mesmo dia (15 de agosto) da tomada da capital e com isso, há não só uma ameaça a todos os avanços sociais e direitos humanos conquistados na região, como há uma surpresa duvidosa do “mundo ocidental” diante do ocorrido, que já era previsto, independente do momento para qual era aguardado.

O espanto é duvidoso, uma vez que durante todos esses anos, os atualmente espantados estavam de olhos fechados para uma invasão violenta e mortal para boa parte da população afegã. Com dispêndio de trilhões, a ocupação estadunidense não só não realizou seus fins ditos democráticos e morais, como ocasionou a morte de milhares de civis.

A ocupação não se estabeleceu com suficiente apoio popular dos afegãos, que tiveram a violência como algo cotidiano, desencadeou sofrimento à classe trabalhadora e prejudicou até mesmo os próprios jovens americanos, que tiveram suas saúdes físicas e psicológicas arruinadas irreversivelmente. Além disto, o Talibã mesmo afastado do domínio da região, nunca esteve genuinamente enfraquecido. A suposição de que o país poderia ser classificado como um lugar seguro devido a presença americana na região foi uma das maiores, se não a maior mentira do século, só competindo com a grande mentira na verdadeira intenção da missão dos Estados Unidos no Afeganistão, que nunca foi moral.

As cenas bastante repercutidas nos grandes meios midiáticos que televisionaram para o mundo o desespero de pessoas, que para conseguirem sair do país, se arriscaram a se segurar no lado exterior dos aviões prestes a decolar e invadiram o aeroporto num tumulto que deixou mortos e feridos, são chocantes. Mas a razão pela qual também deveríamos nos chocar está na percepção clara de quais foram as verdadeiras razões para que a 20 anos atrás, as tropas americanas ocupassem o Afeganistão.

Agora, mais do que nunca, é visível que os “direitos humanos”, a “dignidade das mulheres”, os “valores democráticos e os valores morais” foram belos termos usados simplesmente para substituir “interesses políticos”. E como mencionado mais acima que a ocupação custou trilhões e como os interesses políticos também mudaram, uma vez que o custo-benefício não é positivamente efetivo, o melhor a se fazer é se retirar e deixar o país a própria sorte, como disse o presidente Joe Biden antes de retirar as tropas americanas da região. Se sorte para ele significa medo popular, retrocesso, caos, mortes e desespero, o presidente conseguiu êxito. 

Em uma matéria para aDW,a jornalista e chefe de redação Waslat Hasrat-Nazimi, que fugiu do Afeganistão para a Alemanha com a família quando criança, escreveu que os ocidentais que agora se mostram surpresos precisam parar de ser hipócritas. A jornalista aponta como Biden se “esqueceu” de mencionar que a intenção dita pelos EUA na invasão em outubro de 2001 – após os ataques de 11 de setembro – não era somente combater o Talibã e a Al Qaeda, mas democratizar o país e principalmente proteger os direitos das mulheres afegãs.

As mesmas mulheres a quem foram prometidas a democracia e o Estado de direito são agora traídas e jogadas a um sentimento de Déjà vu – ou pesadelo, para quem prefira assim chamar – de 20 anos atrás. Agora não há mais mulheres que precisam de dignidade e direitos assegurados no Afeganistão? Os depoimentos de moradores do Afeganistão durante esses anos de ocupação retratavam um lugar realmente democratizado? O que choca o mundo são as cenas do caos que estão sendo frequentemente expostas ou o fato de que a “grande missão” nunca se tratou de democracia, mulheres e direitos? Era tudo uma retórica vazia.

Waslat também ressalta que a mesma hipocrisia pode ser vista na política de refúgio da União Europeia (UE) e da Alemanha, os políticos da UE se recusaram a reconhecer que a situação de segurança no Afeganistão era desoladora e que a intervenção havia falhado. Afegãs e afegãos estão fugindo de seu país de origem há muitos anos e precisam ser acolhidos, isso é o mínimo do que deve ser feito. O mínimo. Hoje, muitos desses refugiados encontram-se sob condições cruéis e desumanas em diversas partes da Europa, como na Grécia, Turquia e nos Bálcãs.

Agora, quando é tarde demais, eles se mostram chocados – os políticos, a mídia e os acadêmicos. No entanto, países como a Alemanha têm uma responsabilidade. Em vez de apoiar senhores da guerra e políticos corruptos durante anos, eles deveriam ter se dedicado seriamente ao povo afegão e à sua cultura. Deveriam ter escutado as mulheres em vez de apaziguá-las. Em vez de construir um exército, deveriam ter trabalhado com o povo para criar uma perspectiva para o país.

Waslat Hasrat-Nazimi para a DW

O fato é que uma guerra como esta tem causa inicial, mas não tem previsão de final. Joe Biden admitiu que errou com o Afeganistão, alegando que o “colapso estourou antes do previsto”, mas o colapso nunca saiu de cena e esse colapso ao qual ele se refere poderia e deveria ter sido evitado, independente do momento para qual era previsto. Esta questão despende de soluções justas, que visem a vida e não fins econômicos, os direitos e não o imperialismo, visam unicamente o povo e a classe trabalhadora afegã que estão sendo marcados a anos pela falta de cidadania, pelo capitalismo a qualquer custo, pelo sangue, tristeza e pelas inúmeras mortes.

A ocupação imperialista ocidental foi impetuosa e hoje, passados vinte anos, são as vítimas que pagam o preço de um conflito que parece não ter fim, um conflito contra inimigos cujos limites não são pautados pela lógica. Se a intenção deles era “exterminar o terrorismo”, só o engrandeceu.

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Por Nathalia Medeiros – Fala! UFRJ

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