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A Abolição do Homem na Era Contemporânea

Por Leonardo Leite e Vinicius Canalli – Fala!Mack

A conquista da liberdade é bradada no ocidente desde a queda do Muro de Berlim e o custoso fim do totalitarismo, marcando o prevalecimento do exaltado Estado democrático de direito e, por conseguinte, a adoção de um caráter valorativo no ordenamento jurídico, trazendo o ideário de dignidade da pessoa humana para o seu núcleo.

 Após tais conquistas, seria lógica e imediata a expectativa de um Estado dedicado à manutenção e ao aperfeiçoamento das práticas que garantem a liberdade e a dignidade humana ao nível individual, expectativa esta que é perversamente afrontada pelas populares e crescentes ideologias relativistas que, com assustadora frequência e idolatria, recorrem ao estatismo como a absoluta solução para todos os males em detrimento dos mais fundamentais e indispensáveis direitos, banalizando até mesmo o direito punitivo do poder público.

Cada vez mais cega, a espada da justiça ainda é incapaz de nos defender das agressões e injustiças das quais, ironicamente, tínhamos esperança de nos livrar. Em seus vários aspectos, as normas que compõem as ordens legais de diversos países acabam por se esquecer dos fundamentos principiológicos que supostamente deveriam nortear o âmbito jurídico contemporâneo pós-guerra.

No caso brasileiro, a Constituição de 1988 prevê em seu escopo princípios de proteção da dignidade humana e defesa da liberdade econômica. É possível, entretanto, vislumbrar violações explícitas aos seus dispositivos nas normas infraconstitucionais e nas decisões proferidas pelos tribunais.

Leis que procuram intervir na vida privada, regulamentações exacerbadas, formação de monopólios, relativização da liberdade de expressão e punição de crimes sem vítimas. Por conseguinte, o Brasil ocupa a posição 150 entre os 180 países analisados no que concerne ao respeito aos princípios de livre iniciativa, segundo dados estatísticos da Heritage Foundation (2019 Index of Economic Freedom).

Somente no ano de 2018, 59,5% dos projetos de lei analisados violam a liberdade econômica em pelo menos uma dimensão, como avaliado pelo Centro Mackenzie de Liberdade Econômica. Conforme exposto, o respeito aos direitos e garantias individuais ainda não está nem perto de se consolidar, pois o estatismo permanece arraigado no anseio popular que se manifesta através da eleição de representantes populistas e intervencionistas.

Mas afinal o que está por trás desse fenômeno, o que explica essa nefasta tendência da população em abrir mão das liberdades em prol da centralização do poder político?

Ainda no século XVI, essa discussão já era eminente e ocupava a atenção dos grandes pensadores, dentre eles o jovem francês Étienne de La Boétie, cujos escritos refletiam uma atitude de inconformidade perante o fenômeno de concentração do poder nas mãos de um governo cada vez mais centralizado.

Importante ressaltar que La Boétie em meio a um contexto de  inexistência de liberdade política afirmava que toda servidão é voluntária e tem suas raízes no próprio indivíduo, seja pelo hábito, pela superstição em torno da figura de um líder, pelo fascínio decorrente dos supostos benefícios do poder político ou até mesmo pelas paixões intrínsecas à própria natureza humana, como o medo, a necessidade de um sentimento de segurança e de estabilidade perpétua frente a um futuro de incertezas.

Dando continuidade a essa discussão, o pensador Alexis de Tocqueville, já na Idade contemporânea, aprofundou o debate concernente às origens do autoritarismo na sociedade política. Em suas obras, procurou ressaltar a eminência da liberdade como meio necessário para a coexistência das vontades individuais e como valor moral a ser priorizado nas relações intersubjetivas.

Com base nessa perspectiva, Tocqueville ressalta que a tirania não é imposta vias coercitivas, mas nasce quando outros objetivos que não sejam a liberdade ocupam o centro das atenções no campo político; objetivos estes que possuem uma origem interna e pungente no coração humano, frutos da inveja e da corrupção que se amplificam na esfera social dada a possibilidade do uso da força para a consolidação de vontades individualistas pervertidamente colocadas em nome da igualdade.

Há de fato uma paixão viril e legítima pela igualdade que incita os homens a querer tudo para ser forte e estimado. Esta paixão tende a elevar o pequeno ao posto do grande; mas também encontra um gosto depravado pela igualdade no coração do homem, que faz o fraco querer atrair o forte ao seu nível, o que faz os homens preferirem a igualdade na servidão a desigualdade da liberdade. Isso não quer dizer que os povos cujo estado social é democrático naturalmente desprezam a liberdade; pelo contrário, eles têm um gosto instintivo por isso.

Mas a liberdade não é o objetivo principal e contínuo da sua vontade; o que eles desejam com um amor eterno é a igualdade; eles correm em direção à liberdade com um impulso rápido e esforço repentino, e se perderem a meta eles se resignam; mas nada pode satisfazê-los sem igualdade, e rapidamente vão consentir em perecer do que perdê-la.

Assim como afirma Benjamin Wiker, teólogo contemporâneo: “Nossa preocupação com conforto material leva-nos ao longo de um caminho para a servidão, em que nós voluntariamente abraçaremos um estado servil: segurança e conforto à custa da nossa liberdade”.

Os desejos mais naturais do homem, dentre os quais a inveja, o medo, a angústia, a busca pela satisfação de interesses pessoais às custas de outros e a necessidade de preencher a desesperança e insegurança de um futuro incerto acabam por favorecer a ascensão de autoritarismos. Por este motivo, a defesa da liberdade deve ser acompanhada da paixão pela prática das virtudes, da responsabilidade e da prudência. Tal como disse Aristóteles:

Assim como o homem é o melhor dos animais quando aperfeiçoado; separado do direito e da justiça… Ele é o pior de todos. Porque a injustiça é a mais severa quando aparelhada com armas; e o homem nasce naturalmente possuindo armas para o uso de prudência e virtude, que, no entanto, são muito suscetíveis a ser usadas por seus opostos. Esta é a razão pela qual, sem virtude, ele é o menos sagrado e mais selvagem dos animais.

Sem controle próprio e sem o desenvolvimento de um senso de responsabilidade pessoal através da prática do Bem, o homem, inexoravelmente, sofrerá com os males nefastos do controle autoritário. “Os homens estão preparados para a liberdade civil na proporção exata de sua disposição a controlar seus próprios apetites com cadeias morais”, como dizia Edmund Burke em sua famigerada obra Reflexões sobre a Revolução Francesa.

A esse fenômeno pós-moderno desconstrutivista marcado pelo abandono de um padrão moral objetivo a ser alcançado pelo cultivo das virtudes, CS Lewis atribuiu o nome de “abolição do homem”, uma vez que as correntes filosóficas contemporâneas estão conduzindo a humanidade cada vez mais para a total escravização, reprimindo a autonomia dos indivíduos rumo a realização plena de suas potencialidades e mitigando a capacidade pessoal de conhecer o mundo através de um impulso natural ao saber, a Verdade e a liberdade.

 Na realidade, o que os teóricos atuais propõem não passa de uma perspectiva completamente reducionista da natureza humana e de sua complexidade.

 É clara a recorrente intenção de restringir o homem a aspectos meramente físicos (naturalismo), à sobrevivência do mais apto (darwinismo), ou até mesmo às interações socioeconômicas (materialismo dialético), reduzindo a virtude a concepções meramente factuais que, por sua vez, são insuficientes para descrever a condição humana, negando, assim, o impulso inato do espírito ao que é transcendente.

Tal insuficiência faz com que esta sociedade desnorteada de uma ordem moral objetiva transfira a sua necessidade pelo que é intrinsecamente correto ao que é essencialmente falho, a ponto de que não sabermos, não apenas quais políticas legitimamente adotar, mas até quais ações tomar nas situações mais rotineiras.

Em meio a esse contexto de vazio existencial e de insuficiência ética, o Estado surge como resposta aos mais variados anseios e angústias humanas. A lei positiva, imposta pelo Poder político centralizado, passa a ser o padrão de conduta e de referencial aos comportamentos e costumes.

 A forma totalitária de Estado surge logicamente da negação da realidade desse reino das ideias transcendentais. Quando as fundações espirituais para toda a livre dedicação às atividades humanas – do cultivo da ciência ou do academicismo, da distribuição da justiça, da profissão de religião, do exercício da arte sem peias e da livre discussão política -, quando as razões transcendentais para todas essas atividades livres são sumariamente negadas, então o Estado se transforma necessariamente, em herdeiro de toda a devoção do homem. (Michael Polanyi).

Por conseguinte, a liberdade só é verdadeiramente legítima quando se encontra em correspondência com os pressupostos dessa ordem moral objetiva e transcendental, também denominada de Lei Natural, um sentimento compartilhado de justiça intrínseco à natureza humana, um mínimo ético universal cuja origem encontra-se somente em Deus, o Sumo Bem e fim último da existência.

Assim, tendo em vista a perda da concepção de um sentido transcendente à nossa realidade, de um compromisso deontológico para com os princípios morais, é evidente que voltamos sempre a cair no ciclo de idolatria ao mundano e na infrutífera tentativa de preencher o vazio imensurável do coração humano que, como escreveu João Calvino, “é uma fábrica de ídolos”.

Neste ciclo, criamos uma sucessão de tiranos que perversamente oferecem sórdidas medidas disfarçadas de soluções miraculosas que se aproveitam de mentalidades utilitaristas e hedonistas, estas sendo resultados claros e diretos da ausência coletiva de princípios sólidos e basilares.

Sem estes, nos tornamos maleáveis e sujeitos às dissimulações ideológicas que atormentam, em nome do mundano e efêmero, nossos princípios transcendentes e eternos; pois, como dito por Jordan Peterson, “ideologias são como religiões aleijadas, essa é a forma correta de pensar sobre elas.

São como uma religião que perdeu um braço ou uma perna, mas ainda consegue sair mancando por aí, proporcionando certa segurança e identidade de grupo, muito embora esteja torta, pervertida, distorcida. São parasitas de algo que a precedem, algo muito rico e verdadeiro”.

Portanto, é evidente que, ao abandonarmos os valores que nos precedem, não apenas fracassamos na busca pelo Sumo Bem, mas também trazemos tormento e angústia ao mundo de forma cíclica e constante. O romance Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, nos choca com a fatalidade de tais trágicas premissas ao nos apresentar uma sociedade cientificista e voluntariamente submissa, desprovida de qualquer conceito de transcendência e dominada pelo hedonismo desenfreado (mas atendido), nos provendo, nas palavras do autor, uma reflexão cruciante aos dias atuais:

 “Um estado totalitário realmente eficiente seria aquele em que o todo-poderoso executivo de chefes políticos e seu exército de gestores controlam uma população de escravos, os quais não precisam ser coagidos, porque amam sua servidão”.

Logo, é inevitável a conclusão de que a liberdade genuína depende fortemente da disciplina de sermos submissos ao divino para, finalmente, nos livrarmos das correntes do mundo, pois Jesus disse aos que creram: “Se vocês permanecerem firmes na minha palavra, verdadeiramente serão meus discípulos. E conhecerão a verdade, e a verdade os libertará”. Apenas assim, libertos, poderemos caminhar para longe da escuridão, não apenas hoje, mas por toda a eternidade.

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