Dados do IBGE mostram que 78% das crianças e adolescentes têm acesso precoce às redes sociais; psicólogos alertam os riscos no desenvolvimento educativo e na concentração dos jovens.
A jovem Mariana, 15 anos, estudante do segundo ano do ensino médio, costuma acordar bem cedo para pegar o ônibus e conseguir chegar no horário da aula.
No caminho, sempre checa o celular para ver o que tem acontecido nos aplicativos que mais usa: dá uma olhada nas últimas publicações, compartilha memes, curte suas fotos favoritas e passa o resto do tempo a verificar nos stories o que os colegas fizeram no dia anterior.
Como sua escola é de tempo integral, muitas vezes fica difícil manter a concentração. Apesar de gostar muito do ambiente escolar, sente-se cansada nos dias mais corridos. No último ano, passou por uma situação que têm mexido com seu ânimo.
“Tinha um perfil no Instagram com um monte de fotos antigas e as usaram para criar uma comparação e me diminuir. Fizeram publicações com ‘como a gente quer ser’ e colocaram fotos de outras meninas, e ‘como a gente é de verdade’ e colocaram uma foto minha”.
desabafa a estudante
Desde então, tem tido dificuldades em falar sobre seus problemas para as pessoas próximas, preferindo guardá-los para si. O tempo exagerado de conexão tem incomodado a mãe de Mariana.
“Às vezes tenho de lavar a louça ou limpar a casa, mas me sento e deixo a vassoura ali. Logo já se passaram cinco horas e corro para fazer tudo nos últimos minutinhos antes de minha mãe chegar. Deixo tudo mal feito e ela reclama que uso o celular o tempo todo”,
confessa a jovem.
Identificou-se com a situação?
Mariana não é uma única pessoa. Sua história foi construída a partir da junção dos relatos de diversos alunos entrevistados na Escola Estadual Manoel Bonifácio Nunes da Cunha, localizada no Jardim Tarumã, em Campo Grande (MS). Tantas outras Marianas existem Brasil afora.
Interferência na aprendizagem
Dados do estudo TIC Kids Online Brasil publicados pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (CETIC.br) em 2017 apontam que 78% dos adolescentes brasileiros de 15 a 17 anos utilizam a Internet mais de uma vez por dia, enquanto 92% estão conectados às mídias sociais.
A pesquisa domiciliar teve o objetivo de compreender os usos que crianças e adolescentes de 9 a 17 anos fazem das tecnologias online.
Segundo a Coordenação de Psicologia Educacional de Mato Grosso do Sul (CPED-MS), órgão vinculado à Secretaria Estadual de Educação (SED) que orienta os profissionais das escolas no trabalho com a aprendizagem dos estudantes, o uso da tecnologia é inevitável no contexto das novas gerações.
“O ambiente escolar tem que abrir espaço para as tecnologias”, defende a psicóloga Paola Nogueira Lopes, da equipe do CPED-MS, que desenvolve pesquisa em psicologia escolar. “É preciso aproximá-las com a realidade da escola e com a realidade do jovem”, complementa a pesquisadora.
Mariana, por exemplo, já foi prejudicada algumas vezes por usar o celular até tarde e não estudar devidamente para as avaliações. Uma de suas professoras chegou a abaixar sua nota devido ao uso excessivo durante as aulas. Por ter deixado o hábito atrapalhar os estudos, sua mãe limitou a utilização do dispositivo.
“Uso muito o celular para estudar, assistindo vídeos-aula, mas, como a internet está ligada, recebo as notificações e começo a conversar”, relata a estudante.
A interferência das novas tecnologias no aprendizado é tanta que algumas escolas já incentivam o desenvolvimento de técnicas para auxiliar no cronograma de estudos.
A aluna de cursinho pré-vestibular, Isabella Fernandes da Cruz Martins Brum, 18 anos, menciona que usa o celular para auxiliar no aprendizado. “É claro que me distraio às vezes, mas não me atrapalha”, diz.
A jovem, que teve oportunidade de realizar intercâmbio na Alemanha, conta que no país europeu seus professores costumavam incentivar bastante o uso das tecnologias como fonte de pesquisa e auxílio nos estudos.
Excesso de informações
A psicóloga Paola Nogueira alerta sobre o uso excessivo dos aparelhos digitais. “Nos dias de hoje, estamos sujeitos a uma quantidade imensa de informações, tornando comum o surgimento de um grande número de pessoas com dificuldades de gerir emoções”, explica.
“A energia que deveria ser destinada aos músculos e aos outros órgãos do corpo é consumida pelo cérebro, fazendo com que a pessoa se sinta esgotada física e mentalmente”.
completa a pesquisadora.
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD-C), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2017, cerca de 74,9% dos brasileiros possuem acesso à internet em suas casas. O aumento com relação ao ano anterior foi de 5,6 pontos percentuais.
Estudos apontam que a abundância de informações proporcionada pela ampliação do acesso pode causar prejuízos, dificultando o desenvolvimento de capacidades essenciais, como criatividade, inovação, reflexão e persistência.
Outros sintomas relatados são: ansiedade, inquietação, dificuldade de manter o foco, sensação de cansaço contínuo inclusive ao despertar, dores de cabeça ou nas costas, dificuldade para dormir, entre tantos outros sintomas.
Paola ainda comenta sobre o fenômeno inconsciente denominado Registro Automático de Memória (RAM), relacionado com o exagero de dados que transformam a mente em uma espécie de “depósito”.
O fenômeno não está relacionado com a qualidade ou com o conteúdo dos pensamentos, mas com sua abundância. A grande quantidade de impulsos, de acordo com a psicóloga, dificulta a concentração, aumenta a inquietude, gera reatividade, intransigência, irritabilidade e prejudica a concentração.
Além disso, atrapalha o gerenciamento da rotina, a sensação de ter muitas coisas a fazer e não conseguir concluir.
Outros estudos mostram que o desenvolvimento dos meios digitais, com sua facilidade de acesso e instantaneidade, torna os impactos cognitivos muito mais presentes. A síndrome conhecida como Fomo (fear of missing out, ou ‘medo de perder algo’ em português), por exemplo, caracteriza justamente esse receio de estar desconectado.
Fenômeno novo
A difusão em massa do acesso a dispositivos eletrônicos é um fenômeno relativamente novo. Muitas pesquisas sobre as implicações do uso da tecnologia na vida cotidiana ainda não possuem resultados conclusivos.
Para o pesquisador na área de comportamento Ronaldo Rodrigues Teixeira Júnior, docente do curso de Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), por mais que os sintomas sejam comuns atualmente, é importante passar por uma consulta médica para que se tenha um diagnóstico preciso.
“Esses nomes (dos transtornos) popularmente ganham repercussão porque um número grande de pessoas passa pelo que está sendo definido por essas síndromes. Mas isso é diferente de um estudo técnico, de uma pesquisa realmente validada que vai definir os parâmetros para classificar alguém que tenha aquela síndrome ou não”, esclarece.
Teixeira ressalta que não se pode culpar as tecnologias e as redes sociais de forma isolada, pois é necessário analisar o uso que as pessoas fazem delas. Ele também alega que tudo é muito recente e que a sociedade ainda está aprendendo a lidar com a exposição de informações digitais e com como isso é introduzido para as novas gerações.
Com base na experiência na clínica de atendimento da UFMS, o psicólogo afirma que muitas pessoas relatam esse sofrimento por não conseguirem se desconectar, assim como uma preocupação sobre algo que foi publicado (a repercussão que um post teve, o número de likes, se teve relevância, etc).
“Ouvimos relatos de pessoas que se sentem mal, atualmente temos um caso de uma paciente que fica muito chateada quando publica coisas e essas publicações não têm comentários, não têm curtidas, isso gera um sofrimento”.
exemplifica o psicólogo.
Refúgio digital
Os jovens que costumam compartilhar fotos nas redes sociais podem ter a autoestima afetada. Foram quase unânimes os relatos de estudantes da Escola Estadual Manoel Bonifácio Nunes da Cunha que afirmaram se sentir insuficientes quando viam fotos de pessoas que julgavam ser mais bonitas.
“Às vezes fico triste, pois vou lá no Instagram e vejo várias meninas bonitas. Olho para mim e ‘putz’, me dá uma tristeza”.
comenta uma das alunas.
Além disso, existem pais que usam a tecnologia para “suprir” a necessidade de atenção dos filhos. Segundo Ronaldo Teixeira, a situação faz com que as crianças e os adolescentes cresçam em uma realidade na qual o uso excessivo de equipamentos eletrônicos é normalizado.
Caso a criança seja incentivada a se entreter a todo o momento com o uso do celular, pode se habituar a sempre utilizar o dispositivo como uma fonte de atenção e essa prática se mostra muito difícil de ser controlada.
Comportamentos assim, explica o psicólogo, surgem de condições vivenciadas pelo indivíduo. Avaliar as situações às quais as pessoas são expostas na internet apresenta-se fundamental.
O ambiente das redes sociais pode ser usado como forma de “refúgio” da realidade, como para se isolar ou preencher espaços vazios. É o caso da estudante Núbia Lemes Fernandes Rocha, que sentia muito a ausência de seu pai e da família em uma fase importante de sua vida.
A jovem acostumou-se a aliviar esse sentimento pelas interações nas redes. “Eu fiz 15 anos e dizem que essa é a idade em que uma menina mais está com a família. Meu pai nunca ligou para mim, me formei no ensino fundamental e ele não estava comigo. Foi o auge, eu ficava triste, com um vazio muito grande, tentava preencher isso nas redes sociais. Pegava meu celular e via fotos do pessoal com a família, queria ter isso, mas não tinha”, desabafa.
Comportamento abusivo
Não é raro encontrar pessoas com alta popularidade nas redes que não possuem o mesmo grau de aprovação na vida pessoal. Na internet são muito hábeis em propagar e divulgar notícias e comentar os assuntos, mas podem ter dificuldades nas relações interpessoais.
Outra característica comum são os comportamentos tóxicos ou abusivos, facilitados no ambiente da Internet, onde o feedback de sentimentos não é direto.
“Para você responder algo de forma educada, polida, sem ir para um grau de impulsividade ou agressividade, precisa ter sido educado. Você precisa ter passado por situações em que alguém chegou e falou assim: ‘olha, você se excedeu’, e às vezes na rede não se vê isso”.
esclarece o psicólogo Ronaldo Teixeira.
A estudante Laisa Taísa de Arruda Ferreira, 16 anos, diz que já presenciou muitos homens que são abusivos por meio das ferramentas digitais. “Ficar comentando nas fotos, beleza, tudo bem, só que às vezes são comentários abusivos e eles ficam mandando mensagem várias vezes por dia. É preciso bloquear”, comenta.
De acordo com o professor de Psicologia, algumas pessoas se exaltam muito. Teixeira enfatiza que tudo isso fica registrado, podendo gerar danos por vezes irreparáveis. “Se você xinga alguém pessoalmente, tem espaço depois para se retratar, pedir desculpas. Mas hoje não, se você xinga online já toma uma proporção gigantesca e a pessoa às vezes nem quer saber de desculpa, já foi produzido um dano muito complicado”, argumenta.
E qual seria uma recomendação para evitar todas essas situações? Ronaldo Teixeira orienta que em certos momentos as pessoas podem simplesmente ficar desconectadas. “A pessoa pode ir à academia sem levar o celular. De repente, em uma confraternização com amigos, ela pode priorizar o contato pessoal ao invés de ficar falando online”, aconselha.
Apesar disso, o pesquisador diz que é necessário analisar caso a caso. “Todo comportamento em alta frequência tem uma função. Se a pessoa está olhando o celular frequentemente, isso pode estar mascarando alguma coisa que está faltando. Se precisa olhar tantas vezes a rede social, talvez esteja privada de outras coisas na vida”, conclui.
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Por Gabriela Dalago e Guilherme Correia – Fala! UFMS
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