Por Isabella Codognoto – Fala! Cásper
Dor não rima com amor
Desde as grandes guerras mundiais até a vida íntima, os quadrinhos discorrem por temas contemporâneos agindo como um espelho da sociedade, refletindo ações e impactando a vida do público, chegando até a mudar o pensamento de alguns leitores ao fazê-los perceber que algo não está correto. Quando a violência doméstica virou assunto pela primeira vez em Vingadores – A Corte Marcial do Jaqueta Amarela, em 1981, um tabu foi posto à prova e Hank Pym ficou para sempre marcado como agressor de esposa.
“A partir dos anos 60, as HQs têm trazido à baila assuntos como luta pelos direitos civis, racismo, religião, luta pela equidade de gêneros, ética e problemas que assolam nossa sociedade. As HQs são a Ilíada dos novos tempos”, disse Gabriela Franco, formada em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, fundadora do coletivo Minas Nerds e colaboradora da revista Mundo dos Super-Heróis, defendendo a ideia de que quadrinhos demonstram o comportamento social através de alegóricas fantasias.
Vespa e o Homem Formiga são um dos casais mais importantes da Marvel. Um dos mais duradouros, mas também um dos mais problemáticos. Janet van Dyne, longe de Hank Pym, é uma personagem incrível. Enquanto humana, uma estilista renomada e ótima agente publicitária; depois, como super-heroína, ela foi fundadora dos Vingadores e uma grande guerreira. Sempre uma mulher forte, de personalidade e, ainda assim, gentil. Mas, nos quadrinhos em que retratam o relacionamento deles, Janet é dispensável e esquecida, muitas vezes usada como uma escada para as histórias do marido.
“No universo Ultimate da Marvel, a Vespa é uma super-heroína muito mais poderosa, interessante e bem-sucedida, enquanto Hank Pym foi mostrado como inseguro, vaidoso e ciumento, e num ataque de ciúmes acabou agredindo violentamente a esposa, tanto que deixou várias sequelas e quase a matou nessa agressão”, relembra Rino Félix, formado em desenvolvimento de jogos digitais e produtor de conteúdo para seu canal, Nerd All Stars.
O relacionamento deles foi delineado por brigas e violência, tudo isso atribuído aos problemas psicológicos do personagem. Nos anos 80, enquanto Hank assumiu o manto de Jaqueta Amarela, o casamento ficou marcado pelos ataques de ciúmes: ao presumir que sua esposa estava se cansando dele, após uma discussão, Vespa é agredida pelo marido. Já em 2003, na revista Marvel Ultimate, a cena piora: durante um ataque de ciúmes e insegurança, Hank bate em sua mulher; Janet se encolhe para fugir da agressão, mas ele a atinge com inseticida, e depois comanda as formigas para devorá-la. A moça acaba em choque anafilático no hospital.
“Se o seu computador não está funcionando direito, você dá uma balançada e até uns soquinhos no monitor para ver se funciona. Essa é a lógica da violência doméstica”, compara Rebeca Puig, repórter do portal Nebulla e apresentadora da Rádio Geek, citando como a normalização da violência contra a mulher é derivada, e condicionada, pela sociedade machista. Ela completa: “É essa visão desumanizada e objetificada da mulher que proporciona a banalização da violência contra ela”.
Hank Pym é descrito como um homem com muitos distúrbios psicológicos, dentre eles dupla personalidade e um complexo de inferioridade em relação a sua esposa. Quando questionada pela culpa do personagem, Gabriela Franco comentou: “Hank Pym sempre foi abordado como um personagem extremamente machista que se sentia rebaixado ou nutria sentimentos de ódio pelos avanços, força moral e inteligência de Janet Van Dyne”. Gabriela terminou a questão trazendo também o condicionamento do homem no patriarcado como um dos determinantes da agressão: “Pode ter sido um pouco de ambos: sem-vergonhice e sim, um distúrbio mal-tratado ou desconhecido que a própria condição de hétero-machista talvez o tenha impedido de tratar”.
Jim Shooter, escritor da série durante a primeira agressão física mostrada, declarou que sua intenção era fazer com que a violência parecesse acidental, mas o desenhista, Bob Hall, exagerou na reprodução. E pela falta de tempo para editar as imagens, tiveram que assumir o acontecido; mas, na verdade, por estarem num universo considerado heróico, eles preferiram suavizar e explicar a história através da possessão por uma entidade maligna. Já na versão de 2003, os roteiristas Mark Millar e Brian Hitch optaram por mostrar o acontecido de um jeito mais realista, na medida do possível, aumentando a violência física e psicológica sofrida pela personagem.
Rino Félix destaca as consequências para o personagem que ficou para sempre marcado como agressor de mulheres: “Você não espera que um super-herói tenha uma atitude tão horrenda como foi o caso de Hank Pym. Mas esse caso teve consequências, foi duramente julgado pelos companheiros e até mesmo expulso dos Vingadores na época. Não é algo que ele se orgulha, muito pelo contrário”, essa forte marca foi um dos motivos para o personagem não ser escolhido para representar o Homem-Formiga no Universo Cinematográfico da Marvel.
Analisando a utilização do tema violência doméstica nos quadrinhos, pode-se pensar em dois pontos distintos, um alerta para a sociedade ou a banalização da agressão contra a mulher. Tudo depende da forma como o abuso é mostrada e também as consequências desses atos. “Quando você faz uso dessa temática, mesmo que inconscientemente, você mergulha nela e faz disso uma discussão interessante, ou normaliza, justifica e colabora para a sustentação de um modelo violento e opressor”, Rebeca destacou a forma como o assunto pode ser absorvido pela sociedade, e completou relembrando a seriedade do assunto: “Claro, Hank Pym e Janet van Dyne são personagens ficcionais em um mundo ficcional, mas não há nada ficcional em violência doméstica”.