Mais do que um tempo litúrgico de conversão que antecede a Páscoa, principal celebração cristã em memória à ressurreição de Jesus, a Quaresma nasceu da necessidade de mergulharmos em águas mais profundas. Deus nos presenteou com um tempo de conversão, um período no qual o Espírito Santo nos exorta a nos voltarmos para Trindade e aprofundarmos nosso relacionamento com Deus orando, jejuando e exercendo o dom da caridade (Mt 6.1-18).
“Quadragésima die Christus pro nobis tradétur.” (Daqui a 40 dias, Cristo será entregue por nós)
O ano litúrgico foi instituído pela Igreja no Concílio de Niceia (325 A.D.), no século IV da era cristã. Contudo, o Ciclo da Páscoa, surgiu volta do 350 A.D, quando os cristãos decidiram ampliar o tempo de preparação para Páscoa de três dias, o Tríduo Pascal, para quarenta dias, a Quaresma, por perceberem a insuficiência de dias para uma adequada consagração para celebração da Ressurreição do Senhor.
Desse modo, o ciclo tem início na (i) Quaresma, e inclui a (ii) Semana Santa, o (iii) Tríduo Pascal e a (iv) Páscoa; celebrações introduzidas pelas comunidades cristãs apostólicas como memória e testemunho do ministério, da morte e da ressurreição de Jesus Cristo, o Filho de Deus. Outra perspectiva histórica que justifica o surgimento da Quaresma é detalhada por John D. Witvliet, assim ele descreve o cenário social e eclesial que fomentaram o nascimento do tempo litúrgico quaresmal:
No ano 313, o imperador romano Constantino converteu-se ao cristianismo e tornou legal (ou mesmo preferível) que os cidadãos romanos se tornassem cristãos. De repente, a Igreja tinha muitos Batismos de adultos para celebrar! Mas isto criou um desafio: como a Igreja poderia se assegurar de que as pessoas que queriam ser batizadas estavam levando Jesus a sério? E o que ela precisava fazer para moldar estas novas vidas cristãs? O Batismo, sozinho, não era o suficiente. Era preciso mais para formar estes novos cristãos como discípulos de Jesus. Assim, a Igreja desenvolveu um curso de preparação para o Batismo em 40 dias; um tempo de estudo da Bíblia, dos Catecismos, e disciplinas espirituais que incluíam jejum e oração. Era um programa intensivo de “40 dias de aventura espiritual”, ou “40 dias de propósitos”. A lógica era que, durante esses 40 dias, os crentes deveriam estar ou se preparando para seu próprio Batismo, ou encorajando alguém que estava se preparando.
De todo modo, o simbólico número 40 perpassa ao longo das Sagradas Escrituras como sinal de provação e luta espiritual. O jejum e a provação de Jesus no deserto ocorreram em 40 dias (Mt 4.1-11; Mc 1.12-13; Lc 4.1-13); o dilúvio do qual Noé e sua família sobreviveram levou 40 dias e 40 noites (Gn 7.4,12,17); a travessia realizada por Moisés e os hebreus no deserto ocorreu em 40 anos (Dt 8.2-4); e Elias andou por 40 dias até chegar ao Monte Horebe, o monte de Deus (1Rs 19.8), dentre outros episódios narrados na Bíblia.
Recordar-te-ás de todo o caminho pelo qual o Senhor, teu Deus, te guiou no deserto estes quarenta anos, para te humilhar, para te provar, para saber o que estava no teu coração, se guardarias ou não os seus mandamentos.
Deuteronômio 8.2
A perspectiva protestante
É comum destacarmos o período da Quaresma como uma estação de conversão, penitência e arrependimento, estranhamento entre os protestantes. Em primeiro lugar pela cicatriz no coração de muitos irmãos, o anticatolicismo, um sentimento que permanece no seio das comunidades protestantes como uma espécie de dose exagerada de remédio contra o monopólio da religião cristã.
Todavia, sabemos que o exagero na dosagem do “remédio” se torna veneno para aqueles que o consomem exageradamente, sem prescrição bíblica, mortificando uma tradição cristã anterior a Reforma Protestante do século XVI.
Um segundo aspecto se refere a um problema de linguagem, provação e penitência não são palavras populares para a sociedade de consumo, de modo generalizado o sistema de corrupção da humanidade tem seduzido os cristãos a ideia de uma vida de sucesso e individualismo, em contraposição ao itinerário materialista, a Quaresma reconhece nas provações da existência uma oportunidade para o aperfeiçoamento do caráter cristão.
Nesse tempo de conversão, o Senhor nos convida para o desenvolvimento da maturidade espiritual, temos que seguir o exemplo corajoso do Filho do Homem, no deserto, que ao ser guiado pelo Espírito Santo, resistiu às propostas diabólicas e alcançou a providência do Pai. No deserto, a Trindade age mutuamente. O Espírito Santo guia o Filho para o Deserto (Mt 4.1), e o Pai socorre o Filho enviando anjos para servirem Jesus (Mt 4.11).
Essa colaboração divina nos ensina que precisamos trabalhar em conjunto, engana-se quem supõe que Jesus retirou-se para o deserto sozinho, Ele e o Pai são um (Jo 10.30); a santa Trindade não nos pede aquilo que ela mesmo não faz, Deus é Comunhão, por isso, nas provações diárias Ele nos desperta para percebermos com mais intensidade a presença de Deus.
Nesse sentido, o objetivo das provações não é outro senão corromper o coração do ser humano, gerando uma inimizade entre a criatura e o Criador. No relato da tentação de Jesus pelo diabo, é possível identificar essa estratégia maligna com as perguntas que o tentador faz para Jesus. O diabo conhece as Escrituras Sagradas e procura manipular o sentido dos textos bíblicos para justificar suas intenções perniciosas. Porém, Jesus responde às tentações com a sabedoria e a coerência da Palavra de Deus. Ele disse:
[…] Está escrito: Não só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus.
Mateus 4.4
[…] Também está escrito: Não tentarás o Senhor, teu Deus.
Mateus 4.7
Então, Jesus lhe ordenou: Retira-te, Satanás, porque está escrito: Ao Senhor, teu Deus, adorarás, e só a ele darás culto.
Mateus 4.10
Um aspecto extraordinário das tentações se revela nas respostas de Jesus, o discernimento para lidar com os desafios espirituais brota na medida que resistimos ao mal; Cristo é coerente, sua leitura das Leis e dos Profetas não era superficial. Ele mergulhou nas águas profundas do conhecimento de Deus, não era um surfista, mas sim um mergulhador experiente no rio que desce do trono de Deus. Nessa perspectiva bíblica, podemos identificar o deserto como um lugar de provação, mas também como o local em que experimentamos uma intimidade mais profunda e fecunda com o Senhor.
O deserto como um bioma de baixa umidade, predominantemente seco, é um espaço geográfico de fácil reconhecimento. Ter a percepção do nosso deserto interior é mais desafiador.
A Quaresma que antecede o Tríduo Pascal como um tempo de preparação, nos ajuda a seguirmos numa estrada que tem início na Quarta-Feira de Cinzas e finaliza na Quarta-Feira da Semana Santa, sendo movidos em direção ao Senhor, logo, ocorre um confronto entre as demandas das nossas vidas com a mensagem cristã revelada nos Evangelhos. Essa confrontação deve nos conduzir ao doar de si; aprofundando o nosso relacionamento com o Senhor.
Em função disso, o roxo utilizado na Quaresma simboliza o luto dos crentes pelo sofrimento de Cristo na via dolorosa. Roxo é a cor da espiritualidade, e lembra-nos da necessidade de preparação, penitência e conversão. De igual modo, é importante destacar que a Quaresma é um tempo litúrgico dividido em dois movimentos. Inicialmente nas quatro primeiras semanas realizamos as leituras de conversão, jejum, abstinência, conversão e oração.
Se a nossa esperança em Cristo se limita apenas a esta vida, somos os mais infelizes de todos os homens. Mas, de fato, Cristo ressuscitou dentre os mortos, sendo ele as primícias dos que dormem.
1 Coríntios 15.19-20
E a partir do Quinto Domingo da Quaresma, a ênfase muda para a Paixão de Cristo. Nesse sentido, a arquitetura litúrgica consiste em preparar o nosso coração para semeadura do Evangelho, a semente é o núcleo da fé cristã, o anúncio de que Cristo foi crucificado e venceu a morte, ressuscitou, ensinando que “Semeia-se em fraqueza, ressuscita em poder.” 1 Cor. 15.43.
A importância da Quaresma
Afinal, por que a Quaresma é importante para a espiritualidade cristã? É significante que como servos de Deus, tenhamos um período dedicado ao auto-exame, arrependimento, jejum e oração. Ao longo da Jornada Pascal trilharmos o caminho da santificação, ou seja, da separação e da renúncia das tentações. Dedicando nossa devoção ao Senhor, consagrando nossas vidas a Deus na esperança da ressurreição do seu Filho bendito.
Para iniciarmos esse caminho é preciso examinarmos as intenções do nosso coração. E orarmos ao Senhor como o salmista:
Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração, prova-me e conhece os meus pensamentos; vê se há em mim algum caminho mau e guia-me pelo caminho eterno.
Salmos 139.23-24
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Por Guilherme Damasceno – Fala! PUC