“A gente estava no auge. E, de repente, um banho de água fria”, diz Jani Freitas sobre o adiamento das Olimpíadas. A jogadora de vôlei sentado fala sobre a preparação para os Jogos Paralímpicos durante a pandemia. O técnico e a fisioterapeuta da seleção destacam os principais desafios
Terça-feira, 10 de março de 2020. A seleção brasileira feminina de vôlei sentado retornava ao país após uma série de amistosos disputados na cidade de Denver, no Colorado, Estados Unidos. Apesar da derrota para as equipes estadunidense e russa, as expectativas das atletas só aumentavam ao contar os cinco meses que as separavam do evento mais importante de suas carreiras: os Jogos Paralímpicos de Tóquio. Na semana seguinte, as primeiras medidas de enfrentamento do então desconhecido coronavírus eram tomadas, e, consequentemente, uma nova fase de desafios para as desportistas era iniciada: “A gente estava no auge, prontas, e de repente fechou tudo, todo mundo dentro de casa”, relembrou Jani Freitas.
Jani Freitas Batista conheceu o vôlei após um grave acidente de moto em 2006, aos 21 anos, quando precisou amputar a perna esquerda. Como destaca, “depois do acidente, eu tive a oportunidade de ser uma atleta profissional”. A trajetória no vôlei sentado começou em Goiânia, na Associação dos Deficientes Físicos do Estado de Goiás (ADFEGO), onde conheceu José Guedes, atual técnico da seleção feminina de vôlei sentado, responsável por lhe apresentar o mundo do esporte para a pessoa com deficiência.
E as quadras do Centro-Oeste do país significaram o início de uma carreira marcada por momentos históricos. Em 2012, Jani participou de sua primeira paralimpíada, em Londres, conquistando ao lado da seleção brasileira o quinto lugar do ranking. Quatro anos depois, em 2016, os jogos do Rio trouxeram uma emoção ainda maior: a conquista da medalha de bronze. “Mais uma vez, fiz parte dessa história. É inexplicável estar no pódio e ouvir o seu hino”, ressaltou.
Jogos Paralímpicos e desafios dos atletas
Mas os notáveis resultados obtidos pelo time brasileiro foram frutos de uma rotina intensa de treinos. Com a conquista da vaga para as Paralimpíadas de Tóquio 2020 nos Jogos Pan-Americanos de Lima, no Peru, as cobranças e as responsabilidades aumentaram para as candidatas ao ouro. Antes da pandemia, Jani Freitas treinava quatro vezes por semana durante três horas e meia, na Associação dos Deficientes Físicos de Aparecida de Goiânia (ADAP), seu clube atual. Com a seleção, os encontros mensais aconteciam em São Paulo, no Centro de Treinamento Paraolímpico Brasileiro, onde passavam uma semana. Mesmo que o vôlei sentado seja a sua prioridade, a atleta já conciliava outra carreira em sua agenda: a fisioterapia, na qual tem especialidade em Ortopedia Desportiva.
No entanto, com as restrições sociais e o crescente registro do número de casos de infecção pelo coronavírus, manter os jogos de Tóquio para o ano de 2020 se tornou uma opção inviável. No dia 24 de março, então, o Comitê Olímpico Internacional (COI) anunciou o adiamento das Olimpíadas e Paralimpíadas para o verão japonês de 2021, posteriormente confirmadas de 23 de julho a 8 de agosto, e de 24 de agosto a 5 de setembro. Como um choque, a mudança e a necessidade do preparo da delegação mesmo que remotamente passaram a andar lado a lado de um questionamento: os jogos ainda aconteceriam?
“Eu estava muito triste, era muito ruim. Atleta gosta de estar na ativa e, de repente, dentro de casa presa.” Assim, Jani Freitas relembrou como foi mudar a rotina drasticamente por conta da pandemia. A quarentena limitou os treinos e impôs desafios jamais esperados. As atletas da seleção brasileira ficaram dois meses sem treinar, até que a comissão técnica optou por fazer lives de treinamento aos sábados de manhã.
“A gente fazia toques na parede, manchete, treino físico, tudo em casa. Eu moro em apartamento, é pequeno, mas dá para fazer”, relatou. Esse cenário estendeu-se até outubro, quando foi autorizada a volta aos treinos, graças aos esforços do técnico José Guedes. “Ele fez de tudo para que pudéssemos treinar pelo menos um pouco”, comentou.
“Eu fui merecedor de estar com minhas atletas num pódio”: José Guedes não mede esforços pela seleção brasileira
Desde os anos 2000, o técnico José Agtonio Guedes tem papel importante no esporte paralímpico. Não apenas porque participou de importantes momentos no esporte e foi o primeiro treinador do Brasil a ganhar uma medalha em Paralimpíada com o vôlei sentado, no Rio, em 2016, mas porque foi fundamental para garantir a preparação das atletas para Tóquio mesmo em um cenário de pandemia.
“Elas poderiam estar longe do voleibol, mas o voleibol não poderia estar longe delas”, comenta José. O técnico diz que propor desafios às atletas foi importante para mantê-las em contato com o esporte. Nos treinos semanais, eram recomendadas atividades que as desafiavam a fazer algo mais, o que gerava um fator motivacional para que elas conseguissem superar, não o outro, mas as exigências do trabalho.
Por outro lado, a pandemia colocou uma barreira particular ao técnico Guedes. Ele diz que o uso de máscaras dificultou a identificação das reações das atletas, não permitindo que ele soubesse como cada uma delas se expressava a cada movimento:
Enquanto treinador, eu gosto muito de observar as reações das atletas durante o treino, as expressões. Elas nos dizem muito como a atleta está se sentindo, como ela reage a uma informação, como ela reage a uma orientação mais ríspida, a chamada bronca. E com a máscara, a gente não consegue ver. Então fica tudo muito impessoal.
Muito além das quadras
O preparo das atletas é um “trabalho a várias mãos”, como destaca Ana Paula Ferreira, fisioterapeuta da seleção brasileira feminina de vôlei sentado e professora do curso de Fisioterapia da Universidade Federal de Pernambuco. Anteriormente à pandemia, a maior parte de sua supervisão já era feita de forma remota. Durante o encontro mensal no Centro Paraolímpico, Ana Paula gravava os exercícios para que as atletas pudessem reproduzi-los em suas casas. No entanto, a suspensão dos treinos presenciais também significou readaptação para o seu ofício.
Ao longo de 2020, Ana Paula orientava a seleção nas reuniões semanais da comissão técnica. Mesmo separadas, as atletas recebiam instruções de aquecimento coletivo e contavam com a ajuda de aparelhos para a realização das atividades, como o elástico e a bola, pois as academias dos clubes permaneciam fechadas. “É impressionante, a gente vai se reinventando, porque eu nunca imaginei que um treino pudesse ser dado por um técnico dessa forma virtual”, conta.
Entre fevereiro e março, o Centro de Treinamento Paraolímpico Brasileiro voltou a receber os desportistas, mas suspendeu novamente as atividades no mês de abril em decorrência do avanço crítico da doença. Com a retomada dos treinos presenciais em maio e as medidas rígidas de proteção, que impossibilitam os encontros entre as delegações e a utilização dos espaços de lazer do local, a fisioterapeuta ressalta que o refeitório é uma de suas principais lembranças no que diz respeito à integração e saudade: “Esse momento da comida, do almoço e do jantar era um momento de festa, onde todo mundo conversava”.
A resiliência por trás do pódio
Os Jogos Olímpicos são o maior evento esportivo do mundo. Chegar até a competição significa para os atletas e comissão técnica maior visibilidade e mais portas abertas. Para Jani Freitas, “tudo muda. A pressão é maior, é mais cobrança. O esporte paralímpico cresce nessa época”. Mas lamenta: “O pessoal só nos enxerga em grandes eventos”.
Quem vê em um pódio atletas de alto rendimento celebrando uma vitória, não imagina os obstáculos na trajetória de cada um deles. Na beira da quadra, o técnico José Guedes transmite a força que o levou até a seleção brasileira. Ele conta que não tinha perspectiva de ascensão social e econômica até seus 21 anos.
Nascido no interior da Paraíba, José relata as dificuldades para praticar esportes: “Eu acordava às 5h30 para pedalar até a escola e fazer um treino de handball das 6 às 7h da manhã e participar de jogos escolares”. Tais impedimentos não foram suficientes para afastá-lo do esporte. Quando descobriu os paradesportos, a identificação foi instantânea: “É aqui que eu vou trabalhar, é aqui que eu vou me desenvolver, é aqui que eu vou me encontrar”, relembra. Hoje, com 20 anos de atuação na área, José Guedes se considera um vencedor. “É possível modificar o cenário em que você está inserido e fazer um bom trabalho”, disse.
Jogos Paralímpicos Tóquio estão logo ali
Os Jogos Paralímpicos são repletos de boas histórias. Em 2021, não será diferente. A incerteza sobre a realização dos Jogos ficou para trás e deu lugar à grande expectativa para Tóquio: “Eu acho que o sentimento é: que bom que vai acontecer’’, comenta Ana Paula. Eventos internacionais são ótimas oportunidades para trocas de experiências entre profissionais de diversos países, mas, neste ano, o sentimento é oposto. “Acredito que não vou ter. Vai ser bem diferente mesmo, é bem triste”, lamenta a fisioterapeuta.
Para o técnico José Guedes, a meta é fazer a final da competição. Ele diz que a seleção está cada vez mais preparada para este momento: técnica, tática, física e psicologicamente. “Nós não estamos preparados para chegar à final. Estamos preparados para fazer a final. Esse talvez seja o grande diferencial desse grupo hoje.” Guedes explica que uma final Paralímpica é um jogo atípico por diversos fatores que podem interferir no desempenho das atletas, mas garante: “Nós estamos preparados para fazermos o melhor jogo de nossas vidas nesta final paralímpica. O outro time pode até sair campeão, mas eles vão ter que jogar muito, porque nós iremos dar o nosso melhor”. Para a atleta Jani Freitas, é uma oportunidade ímpar: “Eu só vou cair na real quando eu tiver lá (em Tóquio)”.
O espírito dos Jogos Olímpicos é marcado fortemente pelo público. Neste ano, no entanto, os mais de 11 mil atletas não contarão com o calor que vem das arquibancadas. “Eu gostaria muito que tivesse público, é um fator motivacional importante para um atleta. A interação do público com a modalidade deixa o espetáculo mais bonito. A torcida é que motiva e nos faz tirar energia e força que a gente às vezes não sabe de onde vem”, ressalta Guedes. Jani Freitas também enxerga como um desafio a mais: “É uma oportunidade que as pessoas teriam de acompanhar e estar perto de um atleta paralímpico. E, infelizmente, não vai ser possível televisionar todas as modalidades”.
Ninguém imaginava que a pandemia do coronavírus completaria mais de um ano. Porém, mesmo com a linha tênue entre as dificuldades e o otimismo da seleção, Jani destaca que o adiamento dos jogos significou aprendizagem e mais respeito pelo próximo. Ana Paula, por outro lado, enfatiza o acometimento emocional: “Foi um processo bem frustrante tanto para mim, mas principalmente para as atletas. É muito difícil porque, por exemplo, elas correm o risco de na véspera da viagem de Tóquio terem um teste de Covid positivo e não poderem viajar”. Mas as perspectivas do cenário esportivo começam a apontar para um futuro melhor. No dia 14 de maio, o Comitê Olímpico Internacional iniciou a vacinação dos atletas olímpicos e paralímpicos.
Enquanto técnico, José Guedes considera que o isolamento social trouxe legados muito importantes: o da diversificação da capacidade de treinamento, da tomada de decisões e das formas de lidar com os seres humanos. “É possível treinar em ambientes que não estão 100% preparados, desde que você sistematize esse seu treinamento para que atenda àquelas necessidades mínimas”, conta.
Com o planejamento pessoal traçado a partir desse evento, Guedes pretende concluir a sua trajetória na seleção brasileira nos Jogos de Tóquio 2021. Depois das Paralimpíadas, o técnico deseja se dedicar inteiramente ao cargo recém-assumido de Secretário Nacional de Paradesportos no Ministério da Cidadania. O tão esperado pódio em Tóquio poderá significar o encerramento de um ciclo com chave de ouro (ou prata, ou bronze).
“Todas (as competições) a gente quer ganhar. Mas a Paralimpíada é o maior evento. Enche os olhos do público, das atletas. Não é todo mundo que tem uma medalha olímpica, paraolímpica. Eu, enquanto fisioterapeuta, é um sonho para mim também.” Essa declaração de Ana Paula indica a importância dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos para todos os profissionais envolvidos na competição, além do público que o acompanha. Apesar do adiamento de um ano, Tóquio dará a oportunidade de resgate, mesmo que por algumas horas, da vida pré-pandemia; isso porque veremos os cinco continentes unidos pelos anéis olímpicos novamente. “Eu trabalho com fisioterapia e com movimento. E o movimento de um deficiente de alto rendimento é uma coisa espetacular, é maravilhoso poder participar disso”, conclui a fisioterapeuta.
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Por Isabella Fonte de Carvalho e Giovanna Dias Afonso – Fala! Cásper