Como o período ditatorial no Brasil foi, também, estímulo às produções intelectuais de artistas de diversas áreas
O 1° de abril de 1964 foi marcado na história do país pela derrubada do então presidente da República, João Goulart, e a tomada do poder pelos militares, que tinham o apoio dos Estados Unidos e o argumento do extermínio da ameaça comunista no Brasil. No período da Guerra Fria, apresentar propostas de reforma de base e apoio à população mais carente significava estar ao lado do comunismo, e foi o suficiente para que houvesse um golpe de Estado.
Assim, assume Ranieri Mazzilli, que logo é substituído por Humberto de Alencar Castelo Branco, ainda em 1964. Os próximos 21 anos seriam marcados pela violência no país e perseguições a quaisquer indivíduos que apresentassem indícios de resistência ao regime.
De fato, a censura durante a ditadura militar no Brasil foi marcada por diversos símbolos, sejam eles a substituição de artigos vetados em jornais por receitas de bolo ou poemas de Camões; o desligamento de microfones em uma apresentação; ou a prisão, tortura e morte de milhares de pessoas.
Foi a partir de 1968, com o Ato Institucional 5 (AI-5) em vigor, que houve o maior enrijecimento dos membros censores do governo. Conhecidos como “anos de chumbo”, o período marcado entre dezembro de 1968 e março de 1974, foi, majoritariamente, o momento no qual quem estava no poder era Emílio Garrastazu Médici, que representou o ápice do Milagre Econômico (crescimento econômico acelerado devido ao aumento da dívida externa) mas, ao mesmo tempo, manifestou o estágio de maior violência por parte dos órgãos de repressão policial e ideológica.
DOPS e DOI-Codi
Carlos Fico da Silva Júnior, professor titular de História do Brasil na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), estruturou esses órgãos em duas comunidades: a de informações e a de segurança.
A chamada comunidade de informações seria o conjunto de órgãos responsáveis pela imagem violenta do Estado, centrados no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), criado ainda nos anos 1920, mas utilizado com mais vigor a partir do Governo Castelo Branco (1964–1967), com sua reinauguração como aparelho repressor da “Operação Limpeza”, que perseguia inimigos políticos da ditadura. A partir disso, o DOPS passa a ser o principal órgão de repressão do período.
Já a comunidade de segurança tinha como objetivo a vigília, a espionagem e a censura. Ainda que já houvesse ação repressora desde 1964, foi em 1969 que ela passa a ser organizada pelo Destacamento de Operações de Informações e pelo Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). Nos anos 1970, entretanto, as funções dessas duas comunidades se confundem, com o DOPS realizando espionagens e o DOI-Codi, sob comando de Carlos Alberto Brilhante Ustra, executando prisões e torturas.
Um dos episódios mais marcantes da ditadura que envolve o DOI-Codi é a prisão, tortura e morte do jornalista Vladimir Herzog, na época, diretor de jornalismo da TV Cultura. Convocado por agentes do II Exército para prestar depoimento sobre as ligações que mantinha com o Partido Comunista Brasileiro, o qual atuava ilegalmente durante o regime, compareceu no dia seguinte ao DOI-Codi. Ficou recluso com outros dois jornalistas, George Benigno Jatahy Duque Estrada e Rodolfo Oswaldo Konder.
No dia 25 de outubro de 1975, o Serviço Nacional de Informações recebeu a seguinte mensagem em Brasília:
Cerca de 15h, o jornalista Vladimir Herzog suicidou-se no DOI-Codi/II Exército.
Era comum, na época, que muitos dos presos dados como mortos tenham sido notificados como casos de suicídio, fuga ou atropelamentos, quando tinham sido assassinados pelos militares. No caso de Herzog, a imagem dele em sua cela, já morto, fotografada por Silvaldo Leung Vieira, mostrava condições em que um suicídio seria improvável, tendo em vista a altura — menor que a de seu próprio corpo — de onde estaria pendurado.
Artistas plásticos
O caso chocante de Vladimir Herzog causou reações em diversos campos das artes, principalmente das visuais.
Logo em seguida às notícias sobre a morte do jornalista, o artista plástico Antonio Henrique Amaral representa o assassinato de Herzog com sua série de obras denominada A Morte no Sábado, de 1975/1976, reúne 4 pinturas que representam, alegoricamente, a violência militar sobre o corpo dos presos políticos que foram torturados.
Jardel Dias Cavalcanti, doutor em História da Cultura pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em um artigo, mostra que o contraste feito entre o metal de garfos e um amontoado de carne ensanguentada reforça a violência e a disparidade de poder na cena. Ao apresentar essa simbologia, revela-se a verdadeira causa da morte de Herzog: a tortura.
Os quadros não foram expostos assim que finalizados. Após um ano completo da morte de Vladimir, Antonio os doa para o Sindicato do Jornalistas para, aí sim, serem postos em exposições, mas sem acesso do público mais popular, cuja atenção era, segundo o próprio Antonio, direcionada ao futebol, o qual tinha apoio total da elite, que se protegia à sombra do noticiário futebolístico.
Ainda questionando as condições da morte de Vladimir Herzog, em 1976, o artista Cildo Meireles realizou uma intervenção em notas de cruzeiro, moeda vigente na época. Carimbando a indagação de “Quem matou Herzog?”, driblou a censura e levou a provocação ao público que não tinha acesso às mostras de arte, focando em notas de menor valor, pois tinham maior circulação.
O projeto nasceu de um convite para participar da exposição Information no Museu de Arte Moderna de Nova York. Cildo enviou duas propostas: Projeto coca-cola e Projeto cédula, cujo objetivo era gravar informações e opiniões críticas e, assim, devolvê-las à veiculação popular.
Inspirado em obras de Marcel Duchamp, Cildo Meireles se esquivou do controle das informações pelos órgãos da mídia, fazendo circular informações que, na televisão, rádio e imprensa, seriam censurados. Nas palavras do próprio Cildo, a pergunta, tão incômoda ao regime quanto a uma população amedrontada, circulava livremente em cédulas, porque ninguém guardaria ou destruiria dinheiro para esconder a dúvida.
Inserções em circuitos ideológicos: projeto cédulas se tornou uma série do artista. Mais recentemente, ele denuncia, também, os casos de Amarildo Dias de Souza (2013) — homem abordado por policiais militares na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, preso, torturado e cujo corpo é ausente até hoje — e de Marielle Franco (2018) — vereadora do Rio de Janeiro morta a tiros com seu motorista Anderson Gomes, em seu carro.
Para Victor Creti Bruzadelli, mestre em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Cildo Meireles expõe um projeto de arte que torna a obra como pertencente mais ao público que ao próprio artista, uma vez que opta pelo anonimato ao liberar suas cédulas. Com Cildo, a arte se torna uma espécie de portadora da verdade.
A década de 1970 foi permeada pelo aumento das torturas, dos assassinatos e dos sumiços. Nessa mesma época, o artista plástico luso-brasileiro Artur Barrio realizou a obra Trouxas Ensanguentadas, que consistia em preencher trouxas de pano com material orgânico e dejetos, cortadas a golpes de faca, inserindo, ainda, pedaços de carne, de onde saía sangue, dando forma a eles de modo que se assemelhassem a corpos ensanguentados. Por fim, colocou-os em terrenos baldios do Rio de Janeiro e no principal rio que corta Belo Horizonte, o Ribeirão das Arrudas. Barrio soube expor o que estava acontecendo criando provas falsas de casos reais.
O objetivo do artista era denunciar o “desovamento” de corpos de pessoas assassinadas pelo regime militar, observando a reação do público de longe. Sua obra surpreendia quem passava por ela, gerando aglomeração — proibida em primeira instância pelo regime — e concentrava o horror do ato de ver e pensar que aquilo poderia ser um conhecido, falando diretamente com as pessoas que perderam entes queridos que saíram de casa e simplesmente sumiram, mas também com a força policial, que se via perguntando como poderiam ter deixado escapar um corpo daquela forma.
Ainda brincando com a força militar, que adora monumentos, o grupo 3Nós3 realizou uma série de intervenções nos principais monumentos da cidade de São Paulo, colocando sacolas plásticas nas cabeças das estátuas, fazendo questão de registrar com fotografias a fim de denunciar o lado mais desprezível da pátria.
Mostrando um método de tortura bem comum na América Latina, a sufocação com sacolas plásticas, também chamada de “o submarino”, o assunto chamou a atenção da mídia, causando confusão e sendo publicado em diversos jornais, dando voz pública aos artistas.
A arte do povo
A resistência contra o regime militar no Brasil acabou sendo mais perceptível na música que em outras áreas. Segundo Carlos Heitor Cony, autor do livro O ato e o fato, de 1964, foi um período de muita efervescência intelectual.
Houve muita reação intelectual sem recorrer às armas. Apesar da repressão, se analisarmos Caetano, Gil, Vandré e o pessoal do teatro, vemos que quem tinha coragem de dizer alguma coisa, disse.
Carlos Heitor Cony.
O imaginário acerca da geração de músicos que permeou a ditadura foi moldada pelo atrito com o regime e amplificada pelo fortalecimento da indústria cultural. Com o crescimento econômico ocorrido entre os anos 60 e 1973 e o avanço do capitalismo, gravadoras, emissoras de TV e editoras também se expandiram nesse processo de urbanização.
Afinal, de certa forma, não foi a arte que enfrentou a ditadura, mas sim, o oposto. De acordo com um estudo denominado Isto não é uma obra: Arte e ditadura, realizado por Julia Buenaventura Valencia de Cayses, mestre em História e Teoria da Arte e da Arquitetura pela Universidade Nacional da Colômbia, no Brasil dos anos 1950 e 1960, estava a semente de qualquer revolução e um questionamento profundo da propriedade privada. Os artistas, naquela época, ao dissolverem a fronteira entre a arte e a vida, estavam boicotando a relação capitalista entre produção e consumo.
O projeto era liberar o homem, e quando esse é o projeto, quem está no poder tem de tomar providências.
Julia Buenaventura Valencia de Cayses.
Dessa forma, apesar da relativa liberdade do início da ditadura, o rigor da censura foi crescendo e se tornando, cada vez mais, uma relação de poder, mais que o simples ferimento dos ideais do regime militar. A partir de 5 de dezembro de 1968, com a vigência do AI-5, a censura estaria oficializada e toda peça cultural deveria ser submetida ao crivo dos censores, reprimindo artistas e intelectuais brasileiros.
[Os censores] não tratavam a arte como forma de revolução. Mas os laudos da censura eram, muitas vezes, justificativas para vetos que já estavam definidos para determinados autores, atores e temas. A censura, antes de tudo, é uma relação de poder entre pessoas, e não do censor quanto ao texto. O texto é só um pretexto. O Estado precisava achar algo para demonstrar que tinha poder. Então, nem sempre faz sentido porque não é o que importa. É a relação de poder, o medo da repressão e do prejuízo econômico.
Cristina Costa, diretora do Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura da USP.
Como o tipo de conteúdo que seria censurado era muito relativo — não só um posicionamento contra o governo, mas também todo e qualquer termo ou situação que atentasse contra a moral e os bons costumes — a estrutura de poder criada entre os censores e os artistas se mostrava cada vez mais presente. Alguns membros do Departamento de Censura de Diversões Públicas (DCDP), órgão oficial de censura na ditadura, consideravam a linguagem padrão algo incluso nos bons costumes.
Algumas das composições de Adorinan Barbosa, compositor paulista, foram barradas por utilizar a forma coloquial da fala. Expressões como “tauba” (tábua), “revorve” (revólver) e “artomove” (automóvel) já foram motivo de veto com justificativa de serem de “péssimo gosto”, ou de “gosto duvidável”.
Mesmo assim, compositores, dramaturgos, escritores, cineastas e jornalistas, então, tiveram de usar recursos cada vez mais criativos para driblar os censores e disseminar suas obras. Nos anos de chumbo, a utilização das metáforas ficou cada vez mais frequente, tornando-se ainda, um recurso linguístico da época: a chamada linguagem de frestas.
Muitos dos protestos contra o regime vinham cobertos por ironia, ambiguidades e outras estratégias linguísticas, pelos quais os censores encarregados de lidar com as sutilezas das letras, muitas vezes, deixavam passar o que seria barrado, caso tivessem interpretado melhor o texto.
Em alguns casos, uma obra poderia ser liberada, e depois de algum tempo, vetada porque perceberam alguma irregularidade após a popularidade obtida — como a música Apesar de Você, de Chico Buarque — , ou vice-versa, alegando que o povo brasileiro não seria capaz de entender a obra — como o filme Terra em Transe, de Glauber Rocha.
A gente contava com dois fatores, um a favor e outro contra. O a favor era o seguinte: os censores eram muito burros, então não percebiam certas nuances. Por sua vez, por serem muito burros, muitas vezes cismavam com coisas que não tinham nada demais e proibiam uma peça ou uma música.
Carlos Heitor Cony
Houve casos, ainda, em que os censores nem chegavam a avaliar o conteúdo das obras, apenas conferindo o artista e vetando direto, como é o caso de Chico Buarque, que já torcia os narizes da censura apenas pelo seu nome. Para se esquivar e ter seu conteúdo aprovado, adotou o pseudônimo de Julinho da Adelaide, sendo, inclusive, entrevistado para algumas revistas com o “disfarce”.
Com o pseudônimo, lançou músicas como Jorge Maravilha, com o famoso trecho “Você não gosta de mim / Mas sua filha gosta”, que causou polêmica, pois, apesar de parecer apenas uma relação conflitante entre um sogro e um genro, o episódio ao qual se refere pode ser tanto o de que a filha de Geisel, o presidente da época, teria assumido que gostava das músicas de Chico Buarque, quanto o de que, quando foi preso, um dos agentes do DOPS foi pedir o autógrafo de Chico para sua filha.
Além dessa música com tom mais bem humorado, gravou, também, Acorda Amor, que narra uma situação em que o eu lírico tem um pesadelo no qual policiais estavam à porta de sua casa para o arrastarem para a tortura. Um dos trechos mais famosos da música é “Chama o ladrão”, que denuncia o fato de que a polícia, ao invés de defender a população, acaba atacando-a, sugerindo que a autoridade da época era mais criminosa que os próprios bandidos.
Sob seu nome real, Chico Buarque e Gilberto Gil compuseram, em 1973, a música Cálice, cheia de referências bíblicas e de peso crítico ao regime vigente. Escrita para um show da gravadora Phonogram, Phono 73, a música foi barrada e impedida de ser apresentada.
Contudo, desafiando mais uma vez a autoridade, Chico e Gil apresentaram a música mesmo assim, mas apenas murmurando algumas palavras e evidenciando a palavra “cálice”, chegando a um ponto em que se gritava a palavra por cima da melodia. No meio da apresentação, um dos microfones foi cortado, impossibilitando a continuidade da apresentação, que ficou marcada na história por sua força política.
Cálice faz referência a um trecho de Marcos 14:36 (“Pai, se queres, afasta de mim este cálice”) e, ao mesmo tempo, faz paralelo com “cale-se”, denunciando a censura imposta pela ditadura. A música só pôde ser gravada 5 anos depois de concluída, mas pelas vozes de Chico Buarque e Milton Nascimento, pois Gil havia trocado de gravadora. A música se tornou um dos mais famosos hinos de resistência ao regime militar.
E hino de resistência daquela época não falta. Pra não dizer que não falei das flores (ou Caminhando, como ficou conhecido popularmente), de Geraldo Vandré é uma verdadeira chamada à luta contra a ditadura. Escrita e cantada pelo artista em 1968, conquistou o segundo lugar no Festival Internacional da Canção daquele ano. Em uma entrevista a um dos jurados do concurso, entretanto, foi revelado que a música teria ocupado o primeiro lugar, mas foi colocado em segundo por conta das pressões políticas aos organizadores do evento e à TV Globo, emissora que transmitia o evento.
Com sonoridade de hino e esquema de rimas simples, com letra fácil de decorar e de transmitir a outras pessoas, fazendo, ainda, referência às canções de passeatas, protestos e manifestações contra o regime. Foi utilizada como instrumento de combate, divulgando mensagens ideológicas e de revolta, criticando o pacifismo proposto pelo chamado Flower Power, movimento simbolizado pelas flores com ideais de “paz e amor” promovidos pela contracultura hippie.
Segundo Vandré, a flor é insuficiente perante o canhão, ou seja, a paz e o amor se mostram fracos frente ao poder militar, reforçando que a única maneira de vencer o sistema seria a partir da união e do movimento organizado, pois, assim, viria a revolução.
Por conta dessa obra, Geraldo Vandré começou a ser vigiado pelo DOPS e teve que fugir do país, passando pelo Chile, Alemanha, Argélia, Grécia, Áustria, Bulgária e França. Só voltou ao Brasil em 1975, mas preferiu abandonar a carreira de músico para se dedicar ao Direito.
Já em 1979, João Bosco e Aldir Blanc compuseram O Bêbado e a Equilibrista, gravado na voz de Elis Regina. A música fala sobre os exilados e é um retrato do Brasil no final do período ditatorial. Mães choram pela falta de seus filhos que tentam sobreviver em meio à violência militar (são as Marias e Clarices que choram). Mesmo assim, a equilibrista, alusão à esperança do povo brasileiro, ainda sobrevive tentando se equilibrar apesar do sofrimento que tanto se via. O bêbado, “trajando luto”, refletia a confusão e a tristeza do desse mesmo povo, que sofria com o final da liberdade.
E apesar desse tom mais disfórico que a composição tem, as suas últimas estrofes trazem mensagens de encorajamento, principalmente aos artistas, que precisam seguir com suas vidas esperando que dias melhores virão.
Ainda sobre Elis, sua personalidade foi intensa e relevante durante o período por interpretar canções como O Bêbado e a Equilibrista, citada acima, Cartomante (de Ivan Lins e Vitor Martins) e Como nossos pais (composição de Belchior), sempre com letras e significados irreverentes ao momento e com melodia marcante. Seja pedindo pelas Diretas Já e provocando o governo ao propor a queda do presidente ou dando voz aos jovens que viram suas liberdades confiscadas, Elis foi grande e não se calou.
Outros nomes como Caetano Veloso, a banda Secos & Molhados, importantes para o movimento do Tropicalismo também tiveram forte presença na cultura do país e foram censurados diversas vezes, seja pela letra de suas músicas ou pela imagem que propunham apresentar ao público.
Alegria, alegria, de Caetano, que marcou a Tropicália, foi enorme sucesso entre o público. Escrita durante os anos de chumbo, a canção cita diversos elementos da cultura popular, formando um retrato da época e propunha movimento organizado e resistência, caminhando contra o vento. Muitos nomes estrangeiros são citados, caracterizando o movimento do Tropicalismo em si, que era a antropofagia de elementos culturais de fora do Brasil a fim de implementar a cultura nacional. Nessa canção, é feita uma apropriação da alta cultura para o popular, configurando um manifesto político e social de uma geração inteira de jovens marcados pela ditadura.
Secos & Molhados, de Ney Matogrosso, contava com composições fortes e um visual igualmente instigante. Primavera dos dentes, por exemplo, fala que para resistir, é necessário ser forte, corajoso e consciente do que está acontecendo ao redor.
Além disso, as apresentações da banda sofriam com certa censura. Devido ao ar andrógino e transgressor dos integrantes, as transmissões de seus shows só eram permitidas pelos censores quando o recorte da imagem era feito apenas em seus rostos, retirando o corpo e as vestimentas.
Raul Seixas, Os Mutantes (banda formada por Sérgio Dias, Arnaldo Baptista e Rita Lee), Milton Nascimento, Maria Bethânia, Taiguara, Gonzaguinha, Gal Costa e Martinho da Vila ainda são nomes que compõem a rede de resistência ao governo militar da época, compondo através da linguagem de frestas e driblando a censura como puderam. Muitos tiveram composições e até mesmo capas de álbuns censurados na época — alguns que só chegaram a vir à tona mais recentemente, já nos anos 2000.
O cinema também foi alvo da opressão. O documentário de Eduardo Coutinho, Cabra Marcado para Morrer teve sua produção interrompida pela ditadura e só pôde ser concluída 20 anos depois. Um filme que falasse de reforma agrária e ligas camponesas naquele momento não teria espaço e seria um risco de prisão e tortura.
Durante a ditadura, as produções cinematográficas, em geral, sofreram com os ataques à cultura como forma de denúncia. Criando um distanciamento entre as produções norte-americanas e as brasileiras, muitos diretores da década de 1950 iniciaram um movimento chamado de Cinema Novo, que deixava de lado os obstáculos causados pela falta de recursos técnicos e financeiros para realizar um cinema de apelo popular, que discutiria problemas e questões relacionados à realidade nacional, utilizando uma linguagem mais familiar ao povo.
Na etapa inicial do Cinema Novo, que vai desde a sua origem em meados da década de 1950 até 1964, surgiam os primeiros trabalhos dos diretores Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Luiz Carlos Barreto e Leon Hirszman. Destacam-se os filmes Vidas Secas (1963) e Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964).
A partir desse mesmo ano, em sua segunda etapa, que vai até 1968, o Cinema Novo se aproxima do contexto da ditadura com um discurso político engajado, perdendo força após a vigência do AI-5, aproximando-se cada vez mais do Tropicalismo. Terra em Transe (1967) e O Bravo Guerreiro (1968) são destaque desse período.
A censura sobre os filmes do Cinema Novo também pesava. Muitos diretores chegavam a colocar cenas “censuráveis” propositalmente para que o resto do conteúdo passasse sem maiores alterações. Era o cinema de resistência que acabava explorando o erotismo, afrontando os padrões morais vigentes. Aqui, também se observa a relação de poder entre o artista e o pode militar.
Eles achavam que poderiam permitir a exibição de certos filmes porque eram incompreensíveis para o povo brasileiro, em um claro menosprezo pelo povo e pelos cinéfilos. Terra em Transe, de Glauber, lançado em agosto de 1967, chegou a ser proibido, mas a censura voltou atrás com base nessa justificativa, a de que o povo brasileiro não entenderia o filme.
Fabiano Canosa, um dos responsáveis pela programação do Cine Paissandu, símbolo de resistência cultural do Rio de Janeiro nos anos 1960 e 1970
No teatro, não foi diferente. Peças como Liberdade, liberdade (1965), de Millôr Fernandes e Flávio Rangel, e Roda Viva (1967), de Chico Buarque, foram duramente censuradas e desprezadas pelos militares e apoiadores do governo, chegando ao ponto de Teatros inteiros serem destruídos e atores das peças agredidos física e verbalmente. A peça de Chico Buarque foi considerada pela censura como “degradante” e “subversiva”, que “não respeita a formação moral do espectador”.
Segundo do documentário britânico Beyond Citizen Kane, um teatro que apresentava o espetáculo chegou a ser bombardeado após a edição do AI-5.
Arte viva
A arte produzida durante a ditadura é uma arte viva, politicamente comprometida.
Alguns artistas plásticos enfatizam que muitas de suas obras, principalmente as intervenções, não são mais obra, mas uma reprodução do que um dia já significou. Isso porque elas carregam muito significado e estavam diretamente associadas ao momento em que foram produzidas e mostradas ao mundo.
Exposições mais recentes, como a Resistir é Preciso…, organizada pelo Instituto Vladimir Herzog em 2014, e realizada pelo Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) do Rio de Janeiro, que fizeram questão de relembrar esses momentos de dor a fim de mostrar às pessoas, principalmente aos jovens, a violência do período da ditadura militar no Brasil, acabam mostrando apenas uma reprodução da obra em si, mesmo contendo as peças originais, pois seu afronte ficou no passado, mas sem deixar de carregar sua força até hoje.
Os hinos da revolução e de protesto podem levar o mesmo peso. No momento em que foram compostos, carregavam a própria revolta em si. É a arte viva.
Em momentos tão turvos, pesados e de aflição, a arte se mostra como válvula de escape. Quando a censura agiu sobre a expressão artística, a solução encontrada foi atuar clandestinamente. Os artistas brasileiros não pararam em momento algum suas produções. Exilados, presos ou torturados continuaram sendo resistência. Resistência essa que pode até ter sido escondida, mas que foi encontrada pelo povo, que os apoiou e, com eles, tornou-se símbolo da resistência no país.
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Por Fernanda Tiemi Tubamoto – Fala! UFMG