Após a viralização do vídeo de Darnella Frazier, em que denuncia o assassinato de George Floyd e a violência policial na cidade de Minneapolis, Minnesota, nos EUA, o mundo decidiu que, agora, “Black Lives Matter“. Digo “agora” porque os movimentos negros e manifestações da população negra perante a brutalidade sofrida no cotidiano sempre esteviveram presentes, mas, agora, está em voga na mídia.
Enquanto ao redor do mundo dezenas de cidades mostravam sua revolta e o movimento antirracista dominava as redes sociais, uma pergunta foi levantada ao mesmo tempo: por que no Brasil não há revoltas como no EUA, perante o assassinato de pessoas pretas?
Para começar esta discussão, é preciso entender a construção do negro nos EUA e no Brasil, e isso começa na escravidão.
Escravidão estadunidense e brasileira
Assim como no Brasil, nos Estados Unidos foi utilizada a mão de obra escrava, principalmente negra provinda da África, durante o período que vai do século XVI ao século XIX. Contudo, a primeira diferença entre ambos países já começa aí: enquanto, no Brasil, tivemos cerca de 5 milhões de africanos trazidos e comercializados como escravos, nos EUA, o número chega a cerca de 400 mil.
A abolição americana ocorreu em 1863, após uma guerra civil em que o lado sul e norte disputavam sobre a liberdade dos escravos. Enquanto os estados do norte já possuíam uma economia industrializada que utilizava a mão de obra assalariada, em que o fim da escravidão seria mais interessante economicamente, os estados do sul ainda se mantinham através do sistema colonial conhecido como “plantation”, onde a mão de obra escrava era mais lucrativa. No fim, os estados do norte venceram o que ficou conhecido como Guerra da Secessão e a abolição da escravidão foi ampliada para todo o país.
O Brasil, por outro lado, nunca teve uma economia industrializada, significativa, até o século XX. Desde sua colonização de exploração, o Brasil usou da mão de obra escrava para que os engenhos funcionassem e a economia fluísse. Isso quer dizer que, diferente dos EUA, nunca houve uma elite branca que visse a liberdade dos negros como algo interessante, muito pelo contrário.
Durante todo o período que engloba a escravidão brasileira, as revoltas de escravos estiveram presentes. Qualquer pessoa que estudou o mínimo de história sabe que os escravos de engenho constantemente criavam revoltas e fugas, o que acabou pelo surgimento de quilombos. E quilombos eram nada mais do que comunidades negras que, muitas vezes, acolhiam escravos fugitivos. O mais notável quilombo foi o chefiado por Zumbi, o Quilombo dos Palmares.
Junto com quilombos, revoltas organizadas – como a Revolta dos Malês -, sabotagens, suicídios, entre outras, eram formas dos negros escravizados se rebelarem contra os senhores brancos. Essas revoltas aumentaram com a Revolução do Haiti, que serviu de inspiração e fomentação para os movimentos negros já existentes, com a pressão política dos abolicionistas e a pressão externa da Inglaterra – que já tinha proibido o tráfico humano pelo Atlântico. Tudo isso culminou na lei Áurea, assinada em 1888.
Com isso, fica claro que, no Brasil, a revolta do povo negro sempre esteve presente e ativa – assim como nos EUA.
O fim da escravidão
Com o fim da escravidão, ambos os países reagiram de formas diferentes aos novos integrantes da sociedade. Enquanto no sul dos Estados Unidos, na segunda metade do século XIX e início do século XX, leis de segregação racial foram adotadas, separando negros e brancos em todos os ambientes possíveis, no Brasil, os ex-escravos eram deixados à própria sorte.
Nos EUA, com a segregação racial – e criação das leis “Jim Crow” e o surgimento da Ku Klux Klan – foi natural que surgisse uma comunidade negra mais unificada. Ficava claro, para eles, que negros e brancos não usufruíam dos mesmos privilégios e direitos. É importante frisar, também, que a escravidão não acabou com a lei abolicionista. Muitos negros continuavam no mesmo estado socioeconômico de antes, ou até pior – principalmente no Brasil.
Assim, enquanto nos EUA há uma clara distinção entre negro e branco, no Brasil, cria-se, no fim do século XIX e início do século XX, a ideia do mestiço.
A partir da década de 20 do século XX há, no Brasil, a ideia e propagação de que todos somos iguais. Com os movimentos culturais do Modernismo, tentou-se criar uma identidade brasileira. Foi quando começou a consolidação do imaginário do mulato.
Em um país em que todos são miscigenados, em que nunca houve segregação racial, cuja imagem no exterior é de uma população mulata/mestiça festeira e feliz, não há racismo. Todos possuem as mesmas oportunidades e podem ocupar os mesmos espaços políticos e sociais. O mito da democracia racial no Brasil criou o que hoje chamamos de “racismo velado”. São pequenas ações racistas do cotidiano de uma sociedade que se recusa a aceitar que é, sim, racista.
Resposta ao racismo no Brasil
Depois desta breve contextualização histórica da construção do negro nos EUA e no Brasil, podemos mostrar como, na verdade, as manifestações da comunidade negra – e favelada – são deslegitimadas no Brasil por causa do racismo que, supostamente, não existe.
Assim como nos EUA, no Brasil, sempre que um homem, uma mulher, uma criança são assassinadas pela violência policial, manifestações tomam as ruas. Mas por que, agora, as pessoas insistem em levantar essa pergunta tão cruel com um movimento que existe há séculos no país? Porque aqui, no nosso querido Brasil, as manifestações são chamadas de “atos de vandalismo” quando ultrapassam o “limite”.
Como exemplos, temos casos famosos, que não poderão fugir da memória de qualquer brasileiro. Em 2013, os jornais foram tomados pela pergunta: “Cadê Amarildo?”. O ajudante de pedreiro desapareceu após uma ação da polícia do Rio de Janeiro, chamada, ironicamente, de “Operação Paz Armada”, e o corpo nunca voltou para a família.
As ruas da capital carioca ficaram repletas de manifestantes indignados com o acontecido. Temos, então, uma demonstração de que, no Brasil, as pessoas não ficam caladas perante a violência sofrida pelas minorias.
Quando, em 2019, Evaldo Rosa foi assassinado pelo exército, tendo 80 tiros disparados contra seu carro, também no Rio de Janeiro, mais uma vez houve manifestações, inclusive fora do estado fluminense.
Quando Marielle Franco foi assassinada em 2018, no Rio de Janeiro, as redes sociais foram tomadas pelas perguntas: “Quem matou Marielle?” e “Quem mandou matar Marielle?”. Novamente, manifestações tomaram as ruas do estado.
E esses são apenas alguns dos mais famosos casos de manifestações e revoltas da população preta e pobre contra o genocídio da população negra no Brasil. Vale ressaltar que não é coincidência que todos os citados tenham acontecido no estado do Rio de Janeiro, uma vez que a Polícia Militar carioca é a que mais mata e mais morre – ou seja, a mais violenta.
Antes de se perguntar: “por que não temos revoltas no Brasil contra o racismo?”, se pergunte quantas vezes você já leu notícias sobre avenidas interditadas por causa de protestos, de ruas fechadas com pneus queimados, de ônibus queimados após o assassinato de algum jovem negro. Pense em quantas vezes você já viu a foto de um jovem negro morto pela polícia e logo se esqueceu do nome, porque havia outro para tomar o lugar. Pense em quantos atos foram taxados como vandalismo e quantas vezes você não pensou que aquelas pessoas estavam erradas porque atrapalhavam o seu trânsito pela cidade.
Antes de fazer essa pergunta e jogar anos de luta no lixo, pense em quantas vezes o racismo velado brasileiro tratou morte de preto como algo banal e sua dor e luta como ilegítima. “Black Lives Matter” (“Vidas Negras Importam”, em português), e importa também no Brasil. Antes de parabenizar o que ocorre no exterior, olhe para a sua cidade e veja se o mesmo não acontece aqui, mas noticiado com outros nomes e tratado de forma diferente.
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Por Paloma Soares – Fala! UFRJ