O filme de suspense O Poço, do diretor espanhol Galder Gaztelu-Urrutia, tem sido um dos filmes mais assistidos no Brasil em 2020. O longa retrata um sistema prisional dividido em níveis, cada nível possui dois detentos, os que estão em níveis abaixo comem as sobras de comida dos que estão acima. A cada mês, os detentos são sorteados para um novo nível e precisam se adaptar à fartura, aos restos, ou à fome.
A principal crítica e/ou reflexão da produção audiovisual é o egoísmo do ser humano e, quando aplicada na realidade política, a perversidade dos sistemas econômicos que prezam pelo acúmulo de riquezas e o lucro, mas não somente, também propõe críticas a sistemas que se opõem a isso. O filme é o retrato da desigualdade que privilegia alguns enquanto mata outros.
O cenário de O Poço possibilita uma reflexão extremamente importante. Ao retratar a desigualdade entre os níveis, nos permite traçar um paralelo com as disparidades entre classes no Brasil, mais especificamente, uma comparação do longa com a obra Elite do Atraso, livro do sociólogo Jessé Souza, que classifica uma estrutura de classes hierárquica, antidemocrática e desigual no Brasil.
O paralelo entre O Poço e estrutura de classes no Brasil
Primeiramente, podemos relacionar o filme com o modelo econômico capitalista, isso é “óbvio”. Mas sobre a representação dos sistemas econômicos, O Poço tem como protagonista Goreng, um homem que possui uma visão idealista, que se opõe à perversidade e ao egoísmo do sistema da administração. Mais além, o filme contrasta a idealização do protagonista com a realidade em que vivem os outros presos, cujas as condições subumanas os tornam frios, assassinos e canibais.
Nesse aspecto, há uma crítica ao idealismo revolucionário de Goreng: ninguém (ou quase ninguém) abdicaria de seus momentos de fartura enquanto estivesse favorecido, mesmo que já tivesse passado fome em níveis inferiores (o oprimido que se torna o opressor). Nesse aspecto, o filme retrata uma utopia no movimento de revolução de Goreng que, no início, utiliza como ferramenta principal a solidariedade e a empatia. Afinal, como poderiam pensar no outro enquanto lutam para se manter vivos? De fato, é difícil.
Não somente o impacto de uma idealização utópica muda o personagem, que tentava alcançar a distribuição igualitária de alimento comovendo os outros prisioneiros – assim como a ex-funcionária da administração. Ao falhar nessa tentativa, seu movimento de revolução passa a usar a violência como um instrumento. Desse modo, o filme faz uma reflexão/provocação sobre o modo de operação dessa oposição ao capitalismo: tendo em vista que só foi atribuída por meio do autoritarismo, foi eficiente?
O longa não possui apenas uma reflexão política, pelo contrário, há muito mais, como as referências bíblicas. Assim como dito no filme, Goreng poderia ser visto como um Messias. Mas essas referências são muito abertas à interpretação e levam em consideração a fé do telespectador, por isso, vou me atentar à política.
Sendo assim, utilizo a estrutura de classes estudada por Jessé, em Elite do Atraso, para fazer uma comparação com O Poço. Jessé argumenta que o Brasil possui uma hierarquia de classes, quem está no topo é o mercado financeiro e a grande elite empresarial. Abaixo estão os políticos, “fantoches” do mercado, utilizados para guiar a classe média rumo aos interesses burgueses do mercado e contra a ralé brasileira, a base da estrutura.
Essa hierarquia é vista facilmente no filme: a administração do poço é o mercado; os funcionários são os políticos; as pessoas nos níveis superiores são a classe média e as condenadas à fome são a ralé. A diferença é que, no poço, as pessoas transitam entre os níveis, mas, na realidade política brasileira, isso é raro, e a maioria permanece em seus status sociais durante toda a vida.
No entanto, uma coisa é igual, quando alguém consegue transitar a um status mais elevado é, muitas vezes, sujeito a se tornar o opressor que o oprimia anteriormente. No filme, o melhor representante disso é Trimagase, ao cuspir na comida dos que estão abaixo, ele se torna o opressor, mesmo já tendo sido o oprimido. No Brasil, quem mais representa essa mudança de papéis é a polícia, que mesmo tendo grande parte de seus funcionários vindos de classes baixas, é uma das mais opressoras do mundo, principalmente, para negros e pobres.
Além disso, no filme, mesmo Trimagase, naquele momento, estando no lugar do opressor, iria voltar ao posto de oprimido. No caso da polícia brasileira também, mesmo sendo uma das polícias que mais mata no mundo, também é a que mais morre.
Trimagase fala a Goreng que não é um assassino, mas sim, alguém que tem medo. Esse medo é a ferramenta de manutenção da administração do poço, assim como é o medo a ferramenta da elite do mercado brasileiro para manter a estrutura de classes e a ralé em função de seus interesses.
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Por Beatriz Oliveira Abrahão – Fala! UFMG