Um dos sonhos mais vendidos à sociedade é a tranquilidade na vida. Conceito que pode ser representado, de maneira errada por: estabilidade financeira, trabalhar para ter sucesso financeiro, conquistar outros sonhos que provavelmente têm ligação com o lucro individual. Assim é a comunidade ocidental na qual fomos forjados, onde desde os tempos de colégio somos direcionados a essa lógica de se pensar o mundo e o ganho individual para fora dos nossos corpos. Lógica, esta, que induz-nos a pensar que o equilíbrio emocional e a paz de espírito emanam daí, da conquista externa.
A paz de espírito é um termo trazido de boa parte das religiões, embora cada uma guie o termo ao modo do seu sistema de crenças. O conceito se refere ao estado de serenidade e sensatez que o ser humano deve conquistar para que consiga viver uma vida plena. Vale dizer que essa serenidade advinda dessa paz não é sinônima de uma vivência sem problemas ou sem conflitos, mas sim, a capacidade daquele que conquista em permanecer estável o máximo possível das suas emoções. Não se trata, também, de ser estático e agir sempre do mesmo modo. Trata-se de ter a tranquilidade de admitir e aceitar as oscilações da vida, tal qual um barco que permanece sobre a água, ainda que as ondas variem. E é dessa capacidade a que nos referimos paz de espírito aqui.
Pois fica evidente para nós que a criação deste lado do globo é esta a qual a busca por enriquecer-se corpo adentro nunca foi tomada como prioridade. E, então, um vírus põe toda essa construção de valores em questão: o sonho de tranquilidade deu lugar à ansiedade, a frustrações, medos e inseguranças. O caos se instabilizou na mente de muitos, Brasil adentro e, agora, a necessidade de uma estabilidade sem relação com o mercado é demanda corrida em boa parte dos lares.
Ao nos questionarmos: “Como manter a paz de espírito durante a quarentena?”, pressupõe-se que já exista uma paz de espírito para ser mantida, Logo:
Já havia paz de espírito em você antes da quarentena?
É incoerente a cobrança pela manutenção de algo que não foi desenvolvido, é como cobrar de uma criança de dois anos que ela fale como um apresentador televisivo, por exemplo. Ora, é incoerente pedir algo que ela não tenha tido tempo e condições para fazer ainda. Acontece que muitos de nós (seja lá qual for a faixa etária) somos crianças de dois anos no que tange à paz de espírito. Também, não será necessário travarmos uma aventura psicanalítica para responder os porquês dessa conquista não ter sido possível ainda. Por isso, respeite seu tempo e encare o agora desta leitura apenas.
Chamada a atenção para este pequeno grande detalhe, surge outra questão: se não conquistei até agora, como vou fazer isso em meio a este cenário? É uma demanda simples, porém complexa, profunda e trabalhosa. Já, se o leitor tivera começado esse desenvolvimento antes da situação de pandemia, sabe o quanto teve que dispor de coragem e garra para conseguir ver algum desenvolvimento. Também deve ser sentida a falta do equilíbrio que tanto investiu tempo e, agora, se sente desajustado e também um tanto frustrado.
Como tem tratado de suas angústias? Tem se sentido num mar de incertezas sobre tudo e não consegue deslocar seus pensamentos sobre? O quão as notícias têm lhe gerado ansiedade?
Para quem começa, o que fazer?
Se você gosta de tomar banho de rio, praia, piscina…qualquer coisa que envolva água fria, muito provável que essa metáfora lhe ajude a entender como funciona o processo:
Ao entrarmos num desses ambientes, será pouquíssimo provável que os mais frientos se joguem de cabeça na água. Ora, está um gelo! A maioria entra devagarinho: põe um pé só na beirada da piscina ou toma uma ducha; vai entrando sorrateiramente na água salgada esticando a coluna como quem foge ou, até foge…molha os pés, volta, molha as pernas, volta, até entrar o corpo inteiro. É certo que o desconforto do gelado é um choque, não é prazeroso no primeiro momento, porém, à medida que imergimos o corpo na água, ele se tranquiliza lá a ponto de sentir falta ao sairmos. Quem nunca saiu batendo os dentes do mar?
A ideia dessa curta metáfora é ilustrar sobre como o processo de desenvolvimento de paz de espírito se desenvolve. Assim, o primeiro contato com a água significa os primeiros contatos com quem você é e o que você sente. Exigindo muito mais da aceitação do que quando o corpo já se acostumou a estar naquele ambiente de puro contato. Mas tornemos isso palpável e exequível nessa quarentena:
Começar por práticas mais disciplinares como o Yoga e meditação, talvez, não funcionem com você. Talvez até lhe ajudem a ampliar sua procrastinação e autocobrança, caso essas atividades nunca tenham sido feitas por você. Há atividades anteriores a essas, que podem ser o início de uma construção para elas:
Fale sozinho
Se parece coisa de louco, não ligue para as aparências. A atitude de falar sozinho é, talvez, um grande primeiro passo na pré-produção do que está em jogo aqui. Isso porque, ao se permitir, a conversa consigo mesmo para fora, muitas coisas podem sair: sentimentos, assuntos aleatórios, assuntos espinhosos e, principalmente, temas que gerem dúvidas. E há dúvida maior do que quem sou eu?
Desta forma, a mente irá se dispor a tentar solucionar essas questões, não é à toa que essa técnica é utilizada para formar opinião sobre assuntos diversos e grandes figuras como Gandhi e Albert Einstein o faziam. Começar por aí, pode trazer elucidações mais claras sobre as nossas angústias.
Fale sozinho no espelho
Paz de espírito é saber lidar encarar e aceitar o mundo, principalmente o interno. Ao falar sozinho no espelho, uma nova fase está liberada: se enfrentar cara a cara. Claro que as primeiras conversas não precisam ser sobre seus traumas de infância ou o quanto a pandemia pode se agravar no Brasil. Deixe fluir temas mais leves para que possa observar seu rosto e feições, assim, começando a trabalhar a aceitação de si mesmo. Tenha em mente que você dificilmente aceitará o mundo seja ele como estiver, se não se aceitar. Aos poucos, se permita entrar em assuntos mais espinhosos e complexos, mas sem pressão: no seu tempo.
Escreva sobre qualquer coisa
Se falar é fácil e fazer é difícil, vejamos um exercício que avança no nosso processo. Escrever aquilo que sabemos é uma das melhores formas de materializar nosso conhecimento. Então, porque não tentar materializar suas dúvidas?
Claro que não estamos falando de uma redação de Enem ou tese de pós-doutorado, certo? Esteja tranquilo de escrever sobre o que quiser e como quiser: desde se arriscar na poesia ou um fichamento de algo que esteja lendo. A ideia aqui é desenvolver essa habilidade de conseguir montar ideias sobre algo.
Escreva sobre você
Você é um universo de temas, então, calma! Não se trata de entrar em uma corrida para escrever uma autobiografia. Trata-se, aqui, de pegar qualquer tema pequeno que envolva uma parcialidade muito forte sua. Como, por exemplo: o que eu penso sobre o amor? A que me serve a vida? Do que eu verdadeiramente gosto de fazer? Como seria o mundo do meu jeito?
Levar essas atividades a sério pode, sim, desenvolver as ferramentas necessárias para, enfim, adentrar nas disciplinares atividades de paz de espírito e suas correntes.
E quem já começou, como manter?
Talvez o maior desafio nessa conjuntura atual para quem já tenha passado pelas fases iniciais seja a não aceitação das condições do momento. Despertar sobre essa postura perante as intempéries da vida não vem com um manual de instruções, muitas filosofias de vida se baseiam em alimentar um sistema de crenças onde a concretude dos fatos até então não necessitava de tanta provação como agora. Ou seja, tudo que tem acontecido fomenta as incertezas do ser humano sobre profundas questões da experiência de viver.
É como se a paz de espírito até então desenvolvida, por exemplo, não estivesse dando conta de tanta informação negativa e real. Tal qual uma represa rachando aos poucos e já deixando escapar água. Essas escapadas podem ser tomadas como os surtos, as inflamações e brigas, a falta de paciência.
Então, para melhorar a situação desse corpo é bom que você:
Aceite retornar a níveis anteriores
Você bem sabe o quanto é difícil trabalhar com o ego e o orgulho. Nesse momento de angústias, nos apegamos a versões de como estávamos antes disso tudo: aquela produtividade, aquela rotina e aquele eu. Aceite que você não é inabalável e que não há nada de errado em retornar às tarefas que exigem menos. Está tudo bem em não conseguir meditar todos os dias e cumprir com seu yoga. Por que não repensar posturas para ter o resultado que é necessário agora?
Esteja perto de pessoas que buscam a paz
A pandemia nos trouxe uma dicotomia: ou estamos sozinhos ou, muito provavelmente, com pessoas que nos despertam gatilhos e nos tiram do sério. Uma pequena parcela se privilegia de ter alguém sereno no momento de agora. Então, o que pode ser feito é procurar se relacionar com pessoas que estão na mesma lida que você, utilize das redes sociais para estreitar laços e formar pontes com essas pessoas. Infelizmente, estamos testemunhando que muitos dos nossos próximos estão perdidos sobre este tema e teremos de aceitar isso também. Afinal, só podemos ajudar efetivamente quando estamos bem para fazê-lo.
Trabalher a sua aceitação com novas linguagens
Precisamos, agora, de doses extra de distrações para suportar o contexto. Por conta do acirramento da procrastinação, o atraso de leituras produtivas e de desenvolvimento pessoal no geral é inevitável. Por isso, uma boa forma de conseguir o mesmo ganho, mas de forma minimizada, é assistir a filmes diversos – todo filme tem um propósito, até os besteiróis; é ouvir músicas letradas e com poesia trabalhada à medida que escuta um brega funk só para balançar o corpo. Enfim, utilizar das linguagens para se perceber.
Ajude alguém a despertar o interesse pela paz
Sabemos da compaixão que a busca pela paz de espírito nos permite sentir e, por isso, pode estar crescendo uma necessidade de fazer algo por alguém. Alguém que você avalia está numa situação mais complicada que a sua. Tenha em mente que ceder essa energia para ajuda pode ser um gasto, mas pode também ser um investimento. Caso tenha condições e através de uma análise, perceba que com diálogos e atividades em comum seja possível criar essa ponte: faça! Tenha só em mente que a satisfação dessa atitude deva estar no ato de criar a ponte e alternativas à pessoa escolhida, e não em fazer incessantemente que ela atravesse-a.
Concluímos que, mesmo com a complexidade do que estamos vivendo, é possível travarmos atividades para amenizar as nossas questões à medida que acontece o desenvolvimento ou a manutenção dessa paz de espírito. Tenha uma crença ou não, lidar de forma serena com a vida é um destino de várias estradas. Então, tenha calma, respire. Pois venceremos mais essa!
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Por Mateus Anjos – Fala! UFBA