A nova minissérie alemã da Netflix, Nada Ortodoxa, está conquistando o público não só pela sua história, mas também pelas reflexões que traz aos espectadores.
O conjunto de 4 episódios narra a história inspirada no livro Unorthodox: The Scandalous Rejection of My Hasidic Roots, lançado em 2012, da autora Deborah Feldman.
A adaptação conta a história de Esther Shapiro, uma menina judia que, em resumo, foge de um casamento arranjado, mas há diversas reviravoltas de caráter positivo e negativo que essa decisão gera tanto na personagem principal quanto em todos que estão ligados à ela.
Para representar esse drama nas telas, é possível reparar na fórmula da jornada do herói que a diretora alemã Maria Schrader utilizou para traçar o caminho que Esther trilha até chegar onde quer.
Mas o que é jornada do herói?
A jornada do herói é um conceito que pode ser usado para contar histórias, criado pelo professor Joseph Campbell a partir da análise de narrativas greco-romanas.
Ele observou um padrão cíclico em todas elas e essa técnica acabou servindo como base para vários filmes de grande bilheteria e de livros com storytelling cativante que prendem o leitor a cada capítulo.
De acordo com o ciclo observado por Campbell, para o personagem se tornar um herói, é necessário passar por 12 fases e, para explicar cada uma, utilizarei passagens da série Nada Ortodoxa como exemplos.
Atenção: esta matéria contém spoilers.
1. Mundo comum
A 1ª fase da história do herói é apresentar a sua vida comum.
Entre idas e vindas de suas memórias é possível compreender a rotina de Esther na comunidade ultraortodoxa hassídica em Williamsburg, Brooklyn.
Com 19 anos, a judia teve que se casar com um homem que foi arranjado para ela, e que não conhecia até pouco tempo antes de trocar alianças.
O mais importante nessa relação é que Esty (como sua avó a chamava) engravide, mas a jovem demora para se sentir confortável e ter relações sexuais com seu noivo.
Ela vive de acordo com os padrões da comunidade em que vive, mas rejeita e refuta constantemente essas práticas.
2. O chamado à aventura
Nessa fase do ciclo, podemos ver o motivo que a personagem tem para largar a vida comum. O modo de vida regrada de Esty não a agrada, então ela decide fugir e começar do zero.
Com os documentos entregues por sua mãe (que teve que abandoná-la quando ainda era bebê) a judia pode ter cidadania alemã, então, decide escapar para Berlim.
A escolha do destino é questionada por sua família, que ficou em Nova York, mas Esther escolhe essa cidade porque sua mãe mora lá.
3. Negação ao chamado
Antes do personagem mudar seu destino, às vezes, há alguns obstáculos.
Pouco antes de viajar, a judia descobre que finalmente está grávida, e isso até poderia ser um motivo para pensar em desistir da fuga, mas ela nem consegue contar a novidade, já que a relação com seu marido não estava das melhores.
No dia que Esty descobriu a gravidez, a mãe de seu noivo recomenda ao filho que deixe a mulher, pois desaprovava a demora do casal de conseguir gerar uma criança, que para a comunidade, é a regra número 1 de qualquer casamento.
Yanky conta à Esther da sua possível decisão e é a partir desse possível término que a jovem decide ir embora.
4. Encontro com o mestre
O “mestre” é alguém que dá conselhos à personagem principal e serve como guia da história. Na série, a figura do mestre pode ser representada pela professora de piano e pela mãe.
Antes de se casar, Esty tinha aulas de piano com a moradora de um apartamento alugado por seu pai. A judia teve que largar as aulas quando se casou, mas sua relação com a musicista foi o ponto-chave da sua fuga.
Esther pediu para a amiga arranjar os documentos alemães para ela finalmente conseguir fugir. A pequena bússola dada pela musicista serviu como amuleto para Esty e foi bem representativa na cena final da minissérie.
Durante a trama, a mãe da judia também deu dicas e ajudou a filha a se livrar das perseguições do marido e do primo, que foram até Berlim para levar Esty de volta para a comunidade.
No último episódio, o encontro entre as duas e a ajuda da mãe foram situações decisivas para o desenrolar da trama.
5. Cruzamento do limiar – Mudança
Com a ajuda do mentor, o personagem já está preparado para enfrentar o novo mundo e mudar suas percepções de vida.
A principal cena da narrativa que remove Esty da vida regrada para sua nova jornada é o mergulho no lago Wannsee, que tem importância histórica para alemães e judeus.
Quando a jovem toma coragem de entrar na água e tirar a peruca que usava desde que casou (uma tradição desta religião é de que as mulheres raspem os cabelos antes de casar), ela afunda o corpo todo no lago como se se desvinculasse da Esther ultraortodoxa, e está finalmente livre para ser quem realmente é.
Outra passagem importante da mudança é quando Esty compra roupas novas e começa a usar calças, por exemplo, que antes era proibido na sua comunidade.
6. Teste, parceiros e grandes reviravoltas – A primeira mudança
A partir deste ponto, a história começa a ficar mais emocionante.
Por ser uma narrativa sem ordem cronológica, os pensamentos de Esty sobre sua vida passada em comparação com a atual traçam a trajetória para o clímax.
Desde que encontrou um grupo de jovens musicistas, ela aprende e repensa muitas das suas tradições e ensinamentos que foram dados pela sua antiga comunidade.
Há alguns conflitos entre ela e uma das violinistas, mas há também parceiros e até rola um “crush”.
Talvez um dos principais problemas de Esty, em Berlim, é de onde ficar, mas a jovem consegue abrigo com esses músicos e decide se candidatar para conseguir uma bolsa de estudos e ficar em definitivo com eles nos dormitórios.
Ao chegar na cidade, a jovem até tenta contato com sua mãe, mas a raiva que sente por lembrar que ela a largou ainda bebê, faz Esty desistir.
Enquanto vivia uma nova aventura, seu marido e o primo, Moische, viajam até Berlim para procurar a judia.
Há uma narrativa paralela à história que mostra alguns costumes desses judeus. É interessante e até surpreendente os detalhes das tradições hassídicas e seus confrontos com o mundo “exterior” que vemos na trama.
7. O esconderijo – Preparativos para a mudança
Nesse momento, é apresentado o lugar para onde a personagem vai para se preparar para sua batalha final. Lembrando que ele pode ser físico ou subjetivo.
Além do alojamento do Conservatório de Música, Esty encontra abrigo na casa de sua mãe quase no final da minissérie.
Essa fase é a principal em que a personagem se prepara para a grande mudança da sua trajetória que, nesse caso, é a audição de piano.
Robert, o musicista por quem Esty desenvolve alguns sentimentos, a ajuda na preparação para o teste e sua mãe a encoraja e evita que o primo de Yanky, Moische, atrapalhe a audição.
8. Provação – Tentativa de mudar
Nessa etapa, a personagem enfrenta sua prova para eliminar o inimigo. A principal “batalha” da personagem foi a audição que, no final, Esty optou por cantar, e o inimigo era sua limitação em fazer o que gostava.
Cantar em público sempre foi proibido nas tradições da sua antiga comunidade, então, estar ali, na frente de seus amigos, sua mãe, os jurados e até seu próprio noivo, que consegue chegar escondido a tempo, prova a reviravolta na vida da judia.
Outra mudança significativa é de quando Robert a vê sem camisa no quarto do alojamento e eles se beijam. Antes desse acontecimento, ninguém a tinha beijado ou encostado em seu corpo como ele fez, já que as tradições hassídicas eram restritivas nesse quesito.
9. Recompensa – Consequências de tentativas
A partir desse momento, as consequências das escolhas da personagem principal podem ser boas ou ruins. Não é falado se Esty consegue a bolsa de estudos, mas pelo seu desempenho na audição, já fica subentendido que sim.
Um ponto negativo é a morte de sua avó que, após receber a ligação da Esty e desligar sem falar nada por vergonha da ação da neta, tem um derrame e morre no chão da cozinha.
10. Caminho de volta – Dedicação à mudança
É comum que o personagem das histórias de heróis que estamos acostumados voltem ao mundo de que saíram após a batalha, mas, neste caso, não acontece dessa forma.
A decisão de Esty de ficar em Berlim e abandonar as tradições ultraortodoxas da sua antiga comunidade é vista como a recusa ao caminho de volta e o início de uma nova vida.
A reconciliação com a mãe e a oportunidade de começar do zero dá à personagem a satisfação de ter enfrentado o seu maior medo e decidir sua própria história.
11. Ressurreição – Última grande mudança
A ressurreição é vista como a hora da batalha decisiva. Quando sai da audição, Esty encontra com Yanky, e ele tenta convencer a esposa a voltar para a comunidade no Brooklyn.
A judia, finalmente, fala tudo que a desagradava e toma a decisão de permanecer em Berlim e deixar para trás tudo que viveu com ele durante um ano de casamento.
Essa foi a maior batalha que a personagem enfrentou durante toda a história.
12. Retorno final – Resolução final do problema
Como toda boa história, é necessário um começo, meio e fim, mas a de Esty, por ser baseada em uma parte da vida real de uma mulher que continuou a trajetória, não há um desfecho.
A minissérie deixa um final meio em aberto, já que não mostra a conclusão definitiva das decisões tomadas pela personagem principal, mas deixa a reflexão de que devemos seguir nossos sonhos independente das dificuldades.
Vale a pena assistir a minissérie e pensar em todas as fases da jornada do herói.
Por fim, é preciso lembrar que nem todas as grandes histórias são baseadas no ciclo da jornada do herói e, às vezes, mesmo que a usem, podem pular algumas etapas, mas, definitivamente, a maioria utiliza esse padrão que agora ficou fácil de você identificar.
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Por Beatriz Morgado – Fala! Mack