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Salvador Dalí e García Lorca: um amor trágico e erótico

Conheça a relação entre os dois gênios da vanguarda espanhola, construída e, em parte, escondida em meio ao caos e à guerra

Foi numa Madrid de 1922 que Salvador Dalí ingressou na Real Academia de Belas Artes de San Fernando e iniciou a sua trajetória como artista, que, no futuro, seria consagrada como a de um dos principais pintores surrealistas. Os resultados dessa carreira muitos sabem, Dalí faz sucesso até hoje com suas obras de combinações gráficas inusitadas, porém, parte de sua história – pessoal, mas que influenciou a sua arte – esteve por muito tempo às escuras.

Salvador Dalí
Real Academia de Belas Artes de San Fernando. | Foto: Reprodução.

Ali, na mesma academia, Dalí conheceu Federico García Lorca, poeta, letrista e dramaturgo surrealista espanhol, estabelecendo uma relação que iria moldar a carreira dos dois. No começo da amizade, Lorca se encantou com o estilo inconvencional de Dalí, enquanto o pintor dizia que Lorca era um “fenômeno poético em sua totalidade”.

De 1925 a 1927, a relação se intensificou, crescendo junto à admiração e à influência que um tinha sobre o outro, inclusive em seus trabalhos. Dalí representou Lorca em suas obras La academia neocubista e La miel es más dulce que la sangre e colaborou na construção da peça teatral Mariana Pinedra, de autoria de Garcia Lorca. O poeta, por sua vez, escreveu a Ode a Salvador Dalí, poema publicado em 1927, que reúne elogios tanto à arte quanto à pessoa de Dalí.

obras de Salvador Dalí
La academia neocubista – Salvador Dalí, 1925. | Foto: Reprodução.

Esse relacionamento foi tão emblemático durante esse período, que ele foi chamado de “Período Lorca” por Santos Torroella, estudioso da obra de Salvador Dalí, especialista neste período da vida e da obra do pintor. A partir de 1928, houve certo afastamento entre os dois, marcado por turbulências causadas pela parceria entre Dalí e o cineasta espanhol Luis Buñuel, além de demais complicações em suas vidas pessoais. Porém, juntos ou afastados, foi percebido posteriormente que essa relação nunca, de fato, deixou de fazer parte da vida dos artistas.

Os dois foram apontados pela mídia e pela história como amigos e artistas parceiros, já que trabalharam muitas vezes juntos em criações do movimento surrealista. Até que, em 2013, um compilado de cartas de amor trocadas pelos artistas no período entre 1923 e 1936 foi divulgado no livro Querido Salvador, Querido Lorquito, do jornalista Víctor Fernández, e levantou a dúvida se aquilo se tratava apenas de uma amizade.

Dalí e Lorca
Dalí e Lorca, em Barcelona, nos anos 20. | Foto: Reprodução.

As cartas

“Você é uma tempestade cristã que precisa do meu paganismo. Eu vou te dar a cura para o mar. Será inverno e vamos acender o fogo”, Dalí, em carta para Lorca, verão de 1928.

As linhas recuperadas por Fernández dizem muito sobre uma longa relação de altos e baixos, mas, acima de tudo, representam “um amor erótico e trágico, pelo fato de não poder compartilhá-lo”, como retratou o próprio Salvador Dalí, em 1986. As cartas expostas no compilado, apesar de ilustrar essa relação com toda a sua complexidade, não são todas. Isso porque muitas sumiram com o tempo.

Especialmente as cartas de Lorca para Dalí foram perdidas, e o jornalista explica que o motivo envolve duas mulheres: Ana Maria Dalí, irmã de Salvador, que vendeu arquivos pessoais do pintor após a Guerra Civil Espanhola, e Gala, a esposa e musa de Dalí, que destruiu muitas por ciúmes. Posteriormente, foi descoberto que Lorca não era um assunto bem-vindo na casa do casal, enquanto, por outro lado, foi encontrada uma nota escrita “Eu não gosto de Gala” em documentos de García Lorca. 

As correspondências, segundo Fernández, são um “jogo de sedução: Lorca dá o melhor de si mesmo, usando suas palavras para tentar ganhar Dalí, que, por outro lado, quer estar no mesmo nível intelectual que o poeta. Um está tentando capturar o artista em sua teia de aranha, e o outro está deixando isso acontecer, até certo ponto”. 

Retrato de Dalí
Retrato de Dalí por Federico García Lorca, 1925. | Foto: Reprodução.

O fim repentino

Seria ilusório desvencilhar a história de dois artistas tão emblemáticos do século 20 aos eventos políticos e culturais que lhes eram contemporâneos. Afinal, eles fizeram parte da vanguarda espanhola, além de que García Lorca era abertamente homossexual, fator que o tornava condenável para os conservadores, representados por grupos fascistas paramilitares que ganhavam força num cenário de ascenção da Guerra Civil.

Assim, em agosto de 1936, Federico García Lorca foi preso por dois dias e, logo depois, morto a tiros de fuzil por uma milícia fascista. Os motivos certos dessa brutalidade ainda são nebulosos, uma vez que Lorca era considerado apolítico por muitos de seus companheiros. Em vida, o poeta evitou se vincular a bandeiras, ainda que já havia demonstrado tendências democratas.

O assassinato causou a revolta de muitos ao redor do mundo, mas, especificamente para Salvador Dalí, ele trouxe à tona um sentimento de culpa. O pintor confessou ter se arrependido de não ter insistido o suficiente para Lorca o acompanhar para a Itália. Em suas Confissões Inconfessáveis, Salvador Dalí comenta a notícia: “fuzilado por engano. O caos espanhol me transtornou e os monstros da guerra civil invadiram minhas telas”.

Após sua morte, Lorca passou a ser representado novamente nas pinturas de Dalí. Para além dos quadros, o pintor o citou em seu livro Confissões Inconfessáveise e interveio no trabalho do historiador de Lorca, Ian Gibson, o acusando de subestimar a relação dos dois.

Nos últimos anos de vida de Dalí, exclusivamente após a morte de sua esposa Gala, o pintor regressou mentalmente para o período em que conheceu Lorca e Buñuel, na Academia de Belas Artes, morando nas residências estudantis com os novos amigos artistas. Já, no final, quando ele se recusava a comer e pesava apenas 34kg, uma de suas cuidadoras disse que, durante todo o tempo que passou com ele, as suas únicas palavras que ela pôde entender foram “meu amigo, Lorca”.

Sobre a relação mascarada dos artistas, a Doutora em História da Arte pela Universidade de Granada, Espanha e Professora de História da Arte na Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Angela Brandão, diz em um de seus artigos: “Talvez uma das faces mais verdadeiras de Dalí seja a do personagem que mantém contato com Lorca, não ainda o Dalí lacaniano ou o surrealista, e não ainda o Dalí de Paris e Nova Yorque – seus cenários, nem mesmo o Dalí de Gala – sua interlocutora.”.

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Por Elisa Rabelo – Fala! UFMG

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