Em 2018, em uma laje do complexo da Maré, nascia uma nova oportunidade para os estudantes da comunidade: um pré-vestibular social. Com um quadro improvisado, Laerte Bruno, professor de história em formação, dava uma das primeiras aulas do projeto que viria a se tornar pioneiro da educação comunitária do Rio de Janeiro.
“Eu lembro que a primeira aula era a minha e ainda não tinha quadro. Escrevemos as anotações em um tapete branco e não deu muito certo. Até que a gente conseguiu, por meio de doação, um quadro bem pequeno. E durante um ano fizemos as anotações ali”, conta.
Foi assim que o UniFavela surgiu, de forma despretensiosa, após Laerte e uma amiga ajudarem uma estudante na Lona Cultural Herbert Vianna, na Maré, em questões de história para o vestibular da UERJ.
O crescimento de pré-vestibular social: como o UniFavela se expandiu
Depois de tirarem as dúvidas da estudante na Maré, outros colegas foram surgindo para fazerem mais perguntas, e o encontro se tornou recorrente. Com o tempo, o espaço foi ficando pequeno para acomodar a todos e as atividades tiveram de ser suspensas. Até que um aluno ofereceu a laje de sua casa para continuarem com as aulas. E durante todo aquele ano letivo, o projeto do pré-vestibular social se manteve lá, sobrevivendo por meio de um trabalho totalmente voluntário e arcando com os materiais necessários por meio de doações e vaquinhas.
Mesmo com todas essas dificuldades, o grupo alcançou um feito impressionante: todos os seus alunos passaram para alguma faculdade. O índice de aprovação foi de 100%.
Hoje, batizada oficialmente como UniFavela, a iniciativa de educação popular na Maré faz parte de um movimento cada vez mais crescente de ampliar o acesso ao ensino superior. Mesmo com importantes ferramentas de democratização da universidade, como a lei de cotas e o ProUni, ainda existem inúmeros obstáculos na vida dos vestibulandos. Dificuldades financeiras para pagar um curso preparatório, problemas em conciliar o trabalho com as aulas, e até mesmo falta de tempo para se dedicar aos estudos são os mais comuns.
Essas iniciativas de educação popular ganham ainda mais força em espaços marginalizados pelo estado. “Nós não somos um pré-vestibular social, e nem comunitário. Somos um pré-vestibular favelado”, nos conta Laerte Bruno, hoje coordenador do UniFavela, que cresceu e se tornou uma ONG socioeducativa atuante no complexo da Maré. “A gente lida com dinâmicas no território que um pré-vestibular comunitário não enfrenta: além do índice de violência armada, por exemplo, tem a questão do saneamento básico, o desemprego no complexo, entre diversas outras questões territoriais e estruturais que enfrentamos”, completou.
A importância do UniFavela para os estudantes periféricos
Após o sucesso do ano de estreia, o projeto mudou de lugar e, em 2021, conquistou, além do título de ONG, um espaço próprio. Hoje, o pré-vestibular social conta com 30 alunos matriculados e, por conta da pandemia, trabalha com o ensino híbrido. Contudo, a crise epidemiológica obrigou os coordenadores a encararem de frente problemas que já existiam, mas ganharam ainda mais força, como evasão, desempregabilidade e o próprio luto.
“Perda de emprego, fome, discrepância no ensino… tudo isso sempre existiu. A pandemia só deixou isso mais claro, acendeu as luzes praticamente”, afirmou Laerte. Antes de pensar em soluções para dar continuidade às aulas, a equipe precisou se reestruturar internamente. Com a ajuda de psicólogas voluntárias, os professores tiveram a oportunidade de fazer terapia para lidarem com os problemas psicossomáticos que enfrentaram durante a quarentena.
Hoje, alternando entre aulas presenciais e on-lines, o UniFavela ainda busca formas de combater a evasão, que talvez seja um de seus maiores problemas, mas já consegue lidar com a pandemia de forma mais segura. Conseguiram doações de frascos de álcool em gel e todos os professores vão ao trabalho com a máscara do tipo PFF2.
Quando perguntado sobre a importância do UniFavela para o Complexo da Maré, Laerte compreende que entrar em uma universidade não é uma prioridade de moradores favelados. “A gente sabe que, infelizmente, é muito habitual terminar o ensino médio e procurar um trabalho braçal, porque hoje em dia vale mais um prato de comida na mesa do que um certificado da faculdade”.
Apesar disso, ele afirma que não podemos ignorar os sonhos de quem deseja fazer um curso superior: “A gente tem a UFRJ que é do lado da Maré e a Maré que é do lado da UFRJ, uma das maiores faculdades da América Latina. E mesmo assim há uma distância enorme”. E é por esse caminho que os pré-vestibulares sociais e favelados vão muito além de ensinar conteúdos do Enem e vestibulares. Com um papel político-humanitário, eles podem transformar e “favelizar” espaços de conhecimento antes elitizados.
Projeto Pré-Vestibular Expresso
Para estimular a democratização do acesso ao ensino superior, que a Fundação CECIERJ, órgão vinculado à Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e Inovação do Rio de Janeiro, lançou em julho de 2021 o projeto Pré-Vestibular Expresso, um piloto que busca ampliar essa proposta de cursos preparatórios gratuitos.
A Fundação, desenvolvedora de políticas públicas na área da educação, em parceria com a tecnologia, oferece gratuitamente aos alunos inscritos acesso a uma plataforma de estudos online com videoaulas, exercícios e simulados, além de fornecer material impresso gratuito. Enquanto isso, as prefeituras parceiras ficam encarregadas da distribuição das apostilas e de oferecer suporte aos alunos. Foram oferecidas mais de 1.600 vagas, divididas entre dez cidades do estado: Rio de Janeiro, Paraty, Tanguá, Iguaba Grande, Búzios, Angra dos Reis, Valença, Cabo Frio, Bom Jardim e Arraial do Cabo.
A Fundação destacou que uma das missões do programa é interiorizar a educação pública e de qualidade para além da capital, levando a oportunidade para outros municípios afastados dos grandes centros urbanos. Foi por isso que o Pré-Vestibular Expresso foi pensado para ser on-line, para que pudesse chegar a mais lugares. Além disso, a sala de aula virtual permite que os alunos possam adaptar melhor seus horários de estudo, tornando mais fácil conciliar com uma rotina de trabalho, se necessário.
Gabriela Gibrail, secretária da educação de Paraty, um dos municípios beneficiados com o projeto, reitera que o Pré-Vestibular Expresso é uma forma de trazer justiça social aos estudantes menos favorecidos “Há muitos anos, eu, como professora de escola pública, sempre via a necessidade de que se tivesse quase como uma reparação para que os nossos estudantes tivessem a mesma oportunidade de ingresso na universidade pública que os estudantes de escola privada.”
Só na cidade de Paraty, cerca de 400 jovens foram inscritos no Pré-Vestibular Expresso. E, apesar de existir sim uma seleção para adentrar no programa, além da exigência de que os inscritos estivessem cursando ou concluído o ensino médio, Gabriela afirma que todos os interessados conseguiram uma vaga, o que foi celebrado como um ótimo resultado. Além disso, o município conta com uma central, que funciona em uma escola, para que os estudantes que não tenham pleno acesso à internet possam assistir às aulas e fazer os exercícios.
As tentativas institucionais de promover cursos preparatórios gratuitos não são novas, mas têm se fortalecido a cada ano. Gabriel Henriques, graduado em História através do programa Prouni, nos conta que, concomitantemente com o terceiro ano do Ensino Médio da rede pública de educação, fez parte do projeto Pré-Vestibular Social do Consórcio CEDERJ, criado em 2003, na cidade de Volta Redonda-RJ. Por meio da indicação de um tio, Gabriel conheceu o projeto em sua cidade e foi atrás de sua meta, que era entrar em uma universidade privada pelo ProUni.
“Na época eu cursava o ensino médio em uma escola estadual. Os professores e todo o sistema de ensino não estavam preparados para preparar os alunos para a prova do Enem. No pré-vestibular social, os professores possuíam uma dinâmica completamente diferente, o que foi muito importante pra mim. Sem falar que o material distribuído era muito bom e facilitava minha rotina de estudos”, falou Gabriel.
Além disso, ele relatou que o curso em questão era totalmente gratuito e que pôde contar com professores excelentes, o que foi determinante para sua aprovação na faculdade. Ele também fez questão de ressaltar que o Pré-Vestibular Social pode ser um divisor de águas na vida de um estudante com baixa renda e limitado pelo ensino público regular.
Sérgio Alves, professor de geografia, que trabalhou no mesmo projeto Pré Vestibular Social, nos conta um pouco sobre sua experiência como educador popular durante 7 anos em cidades do Sul Fluminense. Ele conheceu essa proposta através de colegas da área da educação e relatou que há um processo seletivo bem rigoroso para lecionar pela Fundação. “O ensino do Pré-vestibular (desse projeto) é muito bacana no que diz respeito ao interesse do aluno, porque diferente do estudante do Ensino Básico, o aluno que está no preparatório tem o objetivo de entrar em uma universidade. A aula rende muito mais com esse aluno interessado”, explicou Sérgio.
Ademais, um dos pontos interessantes é que, além de o curso ser totalmente gratuito, os alunos também recebiam alimentação, e vinham professores da capital do Rio de Janeiro para dar aulas nessas cidades do interior do estado. O desafio, porém, foi a continuidade e regularidade desses investimentos. Apesar desses benefícios aos estudantes, o salário dos docentes deixou de ser reajustado, o que refletiu diretamente na qualidade do ensino oferecido. Segundo Sérgio, o sucateamento foi o principal motivo pelo qual ele deixou de lecionar no programa, em 2016.
Por fim, Sérgio nos conta que o curso dava grandes resultados. A combinação da oportunidade de estudo gratuita com alunos empenhados no seu objetivo era a receita perfeita para uma aprovação em uma universidade pública ou uma conquista de bolsa por meio do Prouni. “Se tivesse harmonia entre o interesse do aluno, a qualidade do professor e do material, o resultado era certo”, relembra.
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Por Maria Alice Freire – Fala! UFRJ