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Ponderações sobre o autoritarismo estatal em tempos de pandemia

“É tão fácil estar errado – e persistir em estar errado – quando os custos de estar errado são pagos por outros.” (Thomas Sowell).

Com os efeitos destrutivos da expansão da atual pandemia, diversas medidas estão sendo tomadas pela administração pública com o intuito de conter a proliferação do vírus e atenuar suas consequências negativas nos setores da saúde e economia. Contudo, a população está fechando os olhos para a crescente ascensão de um perigo extremamente nefasto e potencialmente destrutivo: a idolatria do Estado e, por conseguinte, a desconfiança em relação aos preceitos da liberdade humana.

A cosmovisão majoritária que está ganhando espaço na política contemporânea entende que o Poder Público é capaz de solucionar crises com medidas econômicas completamente reducionistas, tais como impressão de dinheiro, expansão dos tributos, estatizações e prorrogação de dívidas públicas.

Entretanto, é óbvio que tais providências apenas protelam a destruição completa do sistema econômico, pois a riqueza não é fruto do intervencionismo estatal ou de gastos públicos, mas da própria liberdade humana.

autoritarismo
Com a pandemia, a idolatria do Estado tem crescido. | Foto: Reprodução.

Não se trata de uma opinião completamente parcial ou de uma “ideologia fascista”, mas do entendimento comum dos economistas e da própria Constituição Federal, cujos princípios procuram valorizar a dimensão axiológica da livre iniciativa, compreendida enquanto um dos fundamentos da ordem econômica e da própria República Federativa (arts. 1º e 17° da CF).

Infelizmente, a pandemia despertou nas diversas nações um sentimento de profundo desprezo e amargura em relação aos pressupostos da liberdade econômica. Clamores estatizantes ganham forças e a desconfiança em relação à liberdade abrem espaço para o Estado adquirir uma força inimaginável sobre a ordem econômica. Não é do meu intuito demonstrar a necessidade da liberdade econômica, uma vez que a tradição da filosofia política já o fez.

Desde o século XVII, pensadores já afirmavam categoricamente o valor inegociável da livre concorrência. John Milton, John Stuart Mill, Adam Smith, Edmund Burke, Thomas Paine, William Godwin, Alexis de Tocqueville, John Rawls, Robert Nozick, Milton Friedman, Friedrich Hayek e Ludwig Von Mises são apenas alguns dos grandes teóricos defensores dos princípios do livre mercado.

Tamanha importância da livre iniciativa que segundo o entendimento doutrinário dos juristas clássicos é considerada um direito fundamental de primeira geração. Contudo, tal preceito constitucional está à beira de sua destruição sistemática. Nem mesmo no período entreguerras, com a crise de 1929 e ascensão dos regimes nazifascistas, a liberdade econômica esteve tão próxima de um perigo tão explícito. Segundo alguns especialistas, a crise atual oriunda dos efeitos da pandemia é maior que a Grande Depressão[1].

“A pandemia do novo coronavírus terá efeitos muito negativos sobre o crescimento global em 2020, desencadeando a maior recessão desde a Grande Depressão de 1929”, afirmou a diretora-gerente do FMI, Kristalina Georgieva. “Para 2021, a previsão é de ‘recuperação parcial’, mas apenas se a Covid-19 for controlada no segundo semestre deste ano”.

Os efeitos econômicos da pandemia de coronavírus fizeram o fundo fazer revisões extraordinárias nas suas projeções. A expectativa dos economistas do FMI é de que atividade econômica mundial caia 3% em 2020. Para o Brasil, a previsão é de que a economia encolha 5,3% neste ano e cresça 2,9% em 2021.[2]

De acordo com informações do Sebrae, no Brasil, até o início de abril, aproximadamente 600 mil micros e pequenas empresas fecharam as portas e 9 milhões de funcionários foram demitidos.

A pesquisa também mostra que 30% dos empresários tiveram que buscar empréstimos para manter seus negócios, mas o resultado não tem sido positivo: 29,5% destes empreendedores ainda aguarda uma resposta das instituições financeiras e 59,2% simplesmente tiveram seus pedidos negados. Mais da metade (55%) dos micros e pequenos empresários terão que pedir empréstimos para manter os negócios funcionando sem gerar demissões. O levantamento foi feito de forma on-line e ouviu 6.080 microempreendedores individuais, micro empresas e empresas de pequeno porte entre os dias 3 e 7 de abril.[3]

O que há de mais assustador e ameaçador é a maneira como o Estado está lidando com a atual conjuntura. Suspensão de direitos e garantias fundamentais, prisões compulsórias, estatizações, propostas de confisco e prorrogação de dívidas públicas. O Poder público está agindo como um verdadeiro opositor da livre iniciativa, violando de forma holística todos os preceitos axiológicos e valorativos de um sistema econômico estável.

Em última instância, quem irá arcar realmente com a dívida pública será a população impotente e já incapaz de garantir a subsistência própria. “O governo deveria liberar os recursos necessários para os vulneráveis, preservação do emprego e empresários cortando severamente seus gastos. Não há uma única palavra e nem sinalização sobre isto” (Antônio Cabrera).

Estamos abrindo mão de nossos direitos bovinamente, acreditando que os políticos podem gerir melhor uma crise do que aqueles que produzem. Isto é uma ilusão gigantesca já provada pela história. Dívidas públicas são prorrogadas, confiscos estão sendo executados e, pasmem, aumento de impostos já caminham pelo Congresso. Até estatizações já são autorizadas pelo STF. (…) Estamos deslizando para uma farra de gastos fiscais em altíssima velocidade. Mas lembre-se, déficits e endividamento governamentais são também uma questão moral crucial para a vida de cada brasileiro. (…) Estamos repetindo a receita catastrófica da estatização da vida produtiva. Se continuarmos assim, tenha a certeza de que a “cura” do governo para esta pandemia será muito pior do que a própria doença. (Antônio Cabrera Mano Filho).

Acreditar que o endividamento do governo é a solução e até mesmo uma forma de aumentar gradativamente a riqueza equivale a acreditar que burocratas são gastadores mais sábios do que os próprios detentores do capital. A defesa das liberdades individuais consiste na afirmação categórica da soberania individual no autogerenciamento da vida, e não em atribuir ao Estado a responsabilidade pela gestão dos projetos financeiros dos cidadãos. Friedrich Hayek já alertava sobre os perigos da mentalidade que depositava no Poder Público a autoridade sobre a ordem econômica.

Friedrich August von Hayek (1899-1992), ao escrever o seu livro O caminho da Servidão, teceu pesadas críticas aos regimes autoritários e coletivistas (de esquerda e de direita) que beberam das fontes da Revolução, pois, segundo ele, tais regimes buscavam subjugar o indivíduo em benefício de supostos valores coletivos que confeririam às sociedades ares de eficiência e superioridade. O planejamento central seria fundamental para a criação da sociedade dos sonhos e para isso valores e direitos humanos individuais seriam sacrificados[4].

Infelizmente, o Brasil já começou a trilhar o caminho da servidão. A prova mais concreta encontra-se na recente proposta de lei complementar PLP 34/2020, segundo a qual confiscos e empréstimos compulsórios/arbitrários deveriam ser realizados para que novos recursos sejam utilizados no combate ao Covid-19. Conforme disposto no próprio projeto:

Institui o empréstimo compulsório para atender às despesas urgentes causadas pela situação de calamidade pública relacionada ao coronavírus (COVID19).

§1º Fica o Governo Federal autorizado a cobrar dos sujeitos passivos definidos no caput valor equivalente a até 10% (dez por cento) do lucro líquido apurado nos doze meses anteriores à publicação desta lei a título de empréstimo compulsório.

Diante de medidas arbitrárias, penso na máxima kantiana, “O indivíduo é um fim em si mesmo”. Esse ideal foi considerado por muitos como um axioma a ser seguido na vida política a fim de proteger a individualidade de cada cidadão, pois ninguém é um mero instrumento nas mãos do governo.

Dando continuidade ao pensamento de Kant, Robert Nozick era categórico na defesa do ideal prescritivo-normativo, segundo o qual ninguém pode ser sacrificado em prol da sociedade. Contudo, em tempos de Covid-19, alguns pensam que violações sérias aos direitos alheios são justificáveis, mas se esquecem da autoridade que estão dando “bovinamente” ao Poder Público.

Peter Earle afirma: “Toda ação governamental que reduz a liberdade a partir de qualquer ponto de partida gera custos líquidos, sejam eles praticados em circunstâncias calamitosas ou idílicas. A liberdade não é uma proposta apenas para os bons tempos. Prezamos e defendemos a liberdade porque ela funciona em tempos normais e em tempos de crise”[5].

Já dizia Benjamin Franklin: “Aqueles que abrem mão da liberdade essencial por um pouco de segurança temporária não merecem nem liberdade nem segurança”. A negação dos direitos fundamentais representa, a longo prazo, uma medida extremamente prejudicial, pois abre prerrogativas para abusos arbitrários do Estado, seja em nome da sociedade, do bem comum e da segurança da nação.

Não sou contra as devidas precauções frente à uma pandemia como esta, mas nós esquecemos desta preciosa lição e sempre estamos dispostos a intervir na economia sem levar devidamente em conta os custos desta ação. O dia macabro de ontem no petróleo foi uma maneira extremamente dolorosa de relembrar o gosto amargo do intervencionismo ao extremo. A economia também se vinga, e “acreditar que um governo pode mudar as leis da economia é como acreditar que nós podemos mudar as leis da física”. (Antônio Cabrera Mano Filho).

A defesa intransigente do intervencionismo é extremamente fácil quando os custos da dívida pública irão ser arcados pelo próximo. Infelizmente, somente quem está sentindo na própria pele os efeitos do autoritarismo crescente percebem as consequências nefastas dos atuais rumos políticos e econômicos. Como diria Thomas Sowell: “É tão fácil estar errado – e persistir em estar errado – quando os custos de estar errado são pagos por outros.”

A longo prazo, outra consequência desastrosa da mentalidade estatizante consiste na ascensão das chamadas “religiões políticas”. Trata-se de um conceito definido pelo filósofo Eric Voegelin. Em seus escritos, o autor em questão se propôs a analisar a maneira como as pessoas enxergam no Poder Público e na esfera política soluções quase que “divinas” para os mais variados problemas.

A confiança depositada por alguns indivíduos na política governamental é uma espécie de religião secularizada, uma ideologia “gnóstica” essencialmente materialista de imanentização escatológica, ou seja, do ideal de implantar o Paraíso terrestre no tempo e no espaço e, para isso, violações aos direitos individuais e práticas de eugenia até seriam justificáveis. Certamente, a atual pandemia está fomentando o crescimento das religiões políticas, cujos objetivos suplantaram os princípios. Como diria José Ortega y Gasset:

O mais grave perigo que hoje ameaça a civilização é a intervenção do Estado, a absorção de todo esforço social espontâneo pelo Estado; isto é, da ação histórica espontânea, que no longo prazo sustenta, nutre e impulsiona os destinos humanos.

Enfim, a reflexão está lançada. Quais são as medidas prudentes a serem adotadas para combater o Covid-19? As violações aos direitos fundamentais são moralmente legítimas? Gastos públicos representam soluções plausíveis? O intervencionismo salvará a nação? Para contribuir com possíveis respostas aos questionamentos supramencionados, uma breve consideração de Fernando Pessoa:

É pois evidente que quanto mais o Estado intervém na vida espontânea da sociedade, mais risco há, se não positivamente mais certeza, de a estar prejudicando; mais risco há, se não mais certeza, de estar entrando em conflito com leis naturais, com leis fundamentais da vida, que, como ninguém as conhece, ninguém tem a certeza de não estar violando. E a violação das leis naturais tem sanções automáticas a que ninguém tem o poder de esquivar-se. Pretendendo corrigir a Natureza, pretendemos realmente substituí-la, o que é impossível e resulta no nosso próprio aniquilamento e no do nosso esforço. Os riscos, e pois os prejuízos, da administração de Estado estão evidentemente na razão direta da extensão com que essa administração intervém na vida social espontânea.


[1] Valor Econômico

[2] Estadão

[3] CNN Brasil

[4] Mackenzie

[5] Mackenzie

___________________________________
Leonardo Leite – Reaviva Mack – Universidade Presbiteriana Mackenzie

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